Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Mann – O Religioso e o Secular em “A Montanha Mágica”

Depois de ilustrar este espaço com as contribuições de renomados ensaístas, acerca das dimensões filosófica, histórica, política e, obviamente, literária da obra máxima de Thomas Mann, trazemos agora um longo e detalhado estudo do Professor Emérito da Universidade de Washington (EUA), Eugene Webb, sobre os intercursos religiosos e seculares não somente manifestos em “A Montanha Mágica”, senão também em outras obras de Mann, como “Doutor Fausto” e “José e Seus Irmãos”.

As referências que Webb emprega são de tal importância – desde Sófocles até Eliade, de Nietzsche a Lévi-Strauss –, que arrisco-me em afirmar de que se trata do mais exaustivo exame sobre o tema no vasto corpus literário do autor alemão.

Ótima leitura!

J.A.R. – H.C.

Referência:

WEBB, Eugene. A perigosa viagem rumo à totalidade em Thomas Mann. In: __________. A pomba escura: o sagrado e o secular na literatura moderna. Tradução de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações. 2012. p. 175-209.

Eugene Webb
(n. 1938)

A Perigosa Viagem Rumo à Totalidade em Thomas Mann

A Montanha Mágica é, de acordo com a descrição de seu próprio autor, “um romance de iniciação” [1]. A iniciação é um processo de amadurecimento espiritual que consiste numa série de experiências pelas quais o indivíduo toma conhecimento dos mistérios fundamentais da vida. O enredo do romance é visivelmente trivial – a estada de sete anos de um jovem vindo de Hamburgo num sanatório suíço para tuberculosos –, mas, ao longo de seu desenvolvimento, o protagonista Hans Castorp penetra regiões da experiência interior que raramente são vislumbradas por quem vive naquilo que o romance chama de “a planície”. Segundo Mircea Eliade, o processo de iniciação “geralmente abrange uma revelação tripartira: a revelação do sagrado, da morte e da sexualidade” [2]. Em seus sete anos de “inventariação” no Sanatório Internacional Berghof, Hans conhece intimamente todas as três e descobre como dar conta dos desafios impostos por cada uma.

O ponto de partida da jornada espiritual de Hans é o mundo dessacralizado do final do século XIX, um mundo materialmente próspero, mas espiritualmente subnutrido. Hans é um membro típico, ou até mesmo arquetípico, desse mundo, e a fraqueza interior que dá origem a seu retiro meditativo é na verdade uma espécie de cova redentora que a vida impõe a alguém que está longe de ser especial, mas que é representativo até mesmo ao ponto da mediocridade:

O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e de seus contemporâneos (...); mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta (...) pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e todo esforço – então será inevitável (...) o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não tinha nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso. (p. 32) [3]

O mundo descrito pelo romance é um mundo que perdeu as raízes na tradição religiosa que, outrora, lhe oferecia ao menos respostas incompletas acerca do sentido da vida do homem. Era grande parte, os vestígios remanescentes dessa tradição estão ou completamente secularizados ou espiritualmente moribundos. Quando Hans se prepara para comer, por exemplo, ele esfrega uma mão na outra “como era seu hábito ao sentar-se à mesa, talvez porque seus antepassados costumassem rezar antes de tomar a sopa” (p. 13 [23]); e, embora tanto os hóspedes quanto a direção do sanatório se esforçassem ao máximo para “dignificar e distinguir o domingo” (p. 110 [152]), eles só o fazem por meio de pratos especiais, de apresentações musicais e de outras formas festivas puramente seculares: “(...) o médico-chefe [dr. Behrens], em homenagem ao domingo, exibia ao sexo forte o seu truque dos cordões de botina” (p. 112 [155]). Mesmo onde a religião tradicional ainda vive, ela em geral se mostra definhada – como no caso da enfermeira que “era evidentemente uma irmã protestante, sem verdadeira dedicação ao ofício, curiosa e irritada de tanto tédio que pesava sobre ela” (p. 10 [19]) – ou pervertida, como no caso tanto do sr. Naphta, o terrorista jesuíta, quanto do miserável sr. Wehsal, com seu pietismo lúgubre e seu fascínio por instrumentos de tortura.

É relevante que sejam a bacia e a bandeja batismal de sua família – instrumentos de iniciação – os elementos da velha tradição que significam algo ao Hans dos tempos de criança, tal como o fato de o intérprete desse significado ser o avô do protagonista, sujeito que parecia estrangeiro no mundo moderno, sendo “homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista” (p. 23 [36]) e alguém desconfiado dos “ímpios” progressos económicos (p. 24 [36]). A Hans, o verdadeiro eu do avô só parecia transparecer quando ele trajava o hábito cerimonial de seu ofício como vereador –­­ “trajes dos cidadãos austeros e até piedosos de uma era desaparecida” (p. 25 [38]): capa negra, punhos de renda, rufos engomados e “o tradicional chapéu de aba larga”. A bacia e a bandeja não cumprem mais adequadamente a sua função, e assim a verdadeira iniciação de Hans acaba por ser feita de um modo que pareceria altamente questionável ao seu piedoso avô. Aderir a uma tradição religiosa que não mais satisfaz seu objetivo seria um erro capaz de impedir uma experiência religiosa autêntica e válida no presente – o tipo de erro cometido pelos pais de Potifar em José e Seus Irmãos [4], obra posterior de Mann –, e por isso Hans precisa deixar esses elementos de seu passado na planície, com o restante de sua vida pregressa. No entanto, o fascínio infantil pelo que aqueles objetos representavam é ao menos um sinal de sua aptidão para a iniciação genuína, podendo até mesmo exercer influência sobre sua receptividade posterior a ela. Eles remetiam a uma tradição que o vinculava aos mistérios religiosos e a uma perspectiva diferente daquela do materialismo burguês. Enquanto ele ouvia o avô falar sobre seus bis, tris, tetravôs etc., aquele som parecia lhe reverberar nas profundezas do tempo, num efeito sonoro que infelizmente se perdeu na tradução para a língua inglesa – o alemão é “Ur-Ur-Ur-Ur” [5]: “sons obscuros de tumba e de tempos soterrados, que todavia expressavam uma ligação piedosamente mantida entre o presente – a sua própria vida – e aquele mundo submerso” (p. 22 [34]). Poderia ser até mesmo para ouvir esse som, diz o narrador, que Hans tantas vezes pedia para ver a bacia; e, quando enfim o escutava, “sensações devotas mesclavam-se com a ideia da morte e da história”.

Como essa tradição deixou de funcionar direito, e como não há qualquer outra que possa assumir seu lugar, Hans precisa se submeter à iniciação de sete anos sem as diretrizes e o amparo normalmente proporcionados pela tradição religiosa, o que torna sua aventura mais perigosa do que de costume. Se a experiência deve ser necessariamente vital, os riscos que um iniciado deve enfrentar nunca são apenas simbólicos, mas a tradição religiosa da iniciação tem como uma de suas funções controlá-los e, em alguma medida, substituí-los por perigos metafóricos, para que o iniciado possa se proteger da verdadeira morte física ou da completa desintegração psicológica. Deixado por conta própria, ele teria de enfrentá-los mais ou menos no escuro, e o resultado bem-sucedido do processo não seria nada mais do que uma questão de sorte. O próprio Hans afirma, na parte final do livro, que foi “o acaso – dize que foi o acaso –” o que o conduziu por esse caminho de “pedagogia alquimístico-hermética (...) rumo ao mais sublime” (p. 596 [818]) – embora talvez pudéssemos dizer que ele também tivera a abrangente orientação do genius loci, do espírito da montanha mágica, da vida que lhe envia uma série de armadilhas, epifanias e pedagogos: muitas vezes, fala-se dele como uma Sorgenkind des Lebens, expressão que sugere não apenas que ele necessita de cuidados – sua tradução é “delicada criança da vida” –, mas também que a vida de fato o nutre e acalenta por meio da doença que pauta seu processo de renascimento.

No ensaio “The Making of The Magic Mountain” [A Criação da Montanha Mágica], Mann mostrou-se favorável àquela visão crítica do livro que o vê como um paralelo moderno à busca do Santo Graal, vinculando “as provações aterradoras e misteriosas” da Capela Perigosa aos ritos de iniciação [6]. Na lenda do Graal, um “tolo ingênuo” chega, por meio de uma série de acidentes providenciais que engloba pecados, à recuperação do símbolo da saúde, da completude e da santidade – três termos que estão etimológica e conceitualmente relacionados e que são capazes de livrar tanto a terra desolada quanto a comunidade de cavaleiros do Graal da doença espiritual e física em que definham. Mann afirmou que, embora não tivesse essa correspondência em mente ao escrever o livro – “(...) era, ao mesmo tempo, algo maior e menor que o pensamento” –, ele mesmo não passava de um “tolo ingênuo (...) guiado por uma tradição misteriosa”; além disso, “não apenas o tolo herói, mas o próprio livro” buscava aquilo que o Graal representa: “a ideia do ser humano, a concepção de uma humanidade futura que suportou e sobreviveu ao conhecimento mais profundo da doença e da morte”. Mann não chegou a definir qualquer objetivo além desse, mas o livro deixa claro, e de formas que exigem certa investigação, que o homem completo produzido por essa busca ou por essa iniciação é uma coincidentia oppositorum consciente, unindo em si, num equilíbrio harmônico, todos os contrários que compõem a vida e, assim, elevam-na a um plano sagrado proporcional à “reverência diante do mistério humano” – reverência da qual, segundo Mann, toda a humanidade depende.

Além da analogia com a procura do Graal, temos ainda, na Montanha Mágica, outra série de paralelos místicos – com Odisseu, por exemplo, mas também com Eneias e Dante. Um que me parece particularmente esclarecedor, mas que, até onde sei, ainda não foi discutido por nenhum crítico, é aquele estabelecido com Édipo. Desde o desenvolvimento da teoria do complexo de Édipo por Freud, os críticos têm se mostrado tão interessados no aspecto psicanalítico da história que tendem a não dar muita atenção aos seus outros traços. Ela, porém, está longe de se reduzir à psicanálise, e sua estrutura mais abrangente se aplica à história de Hans Castorp de várias formas diferentes e interessantes.

Na mesma fala em que Hans diz a Clawdia Chauchat, mulher pela qual permanece apaixonado ao longo de quase toda a estada na montanha, que fora o “acaso” (Zufall) aquilo que o levara “muito alto, até essas regiões geniais”, ele também lhe diz que existem dois caminhos para a vida (de maneira significativa, não dois caminhos na vida, mas para a vida [zum Leben]): “(...) um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e este é o caminho genial” (p. 596 [819]). Em “The Making of The Magic Mountain”, Mann citou esse trecho e identificou o segundo caminho com o caminho de iniciação que Hans atravessa. No original alemão, a expressão final é der geniale Weg [7]. A tradução que no ensaio o próprio Mann propõe para ela é “o caminho do gênio” [8], versão que, se comparada com a da sra. Lowe-Porter [“caminho espiritual”], provavelmente faz transparecer um pouco mais que esse é um caminho de inspiração no qual se está sujeito a forças sobre-humanas – talvez divinas, talvez demoníacas.

No Édipo em Colono, de Sófocles, Édipo também fala de dois caminhos. O primeiro é aquele da “realeza”, o caminho honrado da razão, do autocontrole e da honestidade representado por Teseu, a quem Édipo descreve como “homem que não traz consigo qualquer mancha do mal” [9] e a quem ele, corrompido como se encontra, não se sente apto a tocar; o segundo é o do próprio Édipo, no qual “o sofrimento e o tempo, / vasto tempo” [10], são os guias e o conduzem por meio do mal a uma eventual apoteose. Em relação ao que Hans diz acerca da própria carreira, é igualmente interessante o fato de também Édipo falar (em Édipo Rei) do acaso (Túxn) como força que conduz sua vida: “(...) descrevo-me como filho da Fortuna, a benevolente fortuna. (...) Ela é a mãe de que provenho; os meses, meus irmãos, a mim marcaram quando pequeno e novamente agora, quando poderoso” [11]. De fato, o destino de Édipo provém de diversas fontes, todas podendo ser chamadas de mãe à sua maneira – Tique, Jocasta e a Esfinge.

Como Parsifal e Hans Castorp, também Édipo é uma espécie de “tolo ingênuo” que depara seu destino por meio de uma ousadia bem-intencionada, mas insensata. Em determinado momento, acusando- o de ser incapaz de responder ao enigma da Esfinge, ele ridiculariza o profeta Tirésias e se vangloria: “Eu solucionei o enigma valendo-me apenas de minha inteligência” [12]; no entanto, como Tirésias é claramente representado como um verdadeiro vidente, é bem provável que seu silêncio diante do enigma fosse fruto de sua prudência, e não de ignorância. Tradicionalmente, dizem que o enigma solucionado por Édipo foi: “Que criatura tem quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia e três à noite?” Essa é uma descrição do ciclo da vida humana, no qual a estatura máxima do homem é logo sucedida por uma queda. Quando Édipo soluciona a charada, a Esfinge, suicidando-se, concede-lhe a vida descrita pelo enigma e, em certo sentido, transforma-se na mãe da vida espiritual que ele leva como rei, como violador de sua mãe física e como pária. Por meio do que podemos chamar de “tolice”, Édipo soluciona o enigma e experimenta a vida humana em sua totalidade, ultrapassando as alturas alcançadas por outros homens e descendo a profundezas que estão igualmente além do ordinário.

A questão do que a Esfinge representa na lenda é bastante complexa. Sófocles não descreve nem ela, nem seu encontro com Édipo, fazendo tão somente alusão a algo que é de conhecimento prévio da plateia. Originalmente, a Esfinge era uma figura da mitologia egípcia que ostentava uma cabeça humana e um corpo de leão, representando provavelmente o rei. Ela foi assimilada muito cedo pela mitologia grega, que fez dela uma imagem feminina. Sua mãe supostamente foi Equidna (palavra grega para “víbora”), figura metade mulher, metade serpente. Diferentes versões explicam a linhagem de Equidna, mas uma que, se relacionada ao uso que Mann dá ao símbolo da Esfinge na Montanha Mágica, se mostra particularmente interessante é aquela que a representa como filha de Gaia e Tártaro, isto é, da terra e do submundo. Equidna teria se unido a seu irmão Tifão para dar origem à Esfinge [13], que nesse caso seria claramente um símbolo da autoctonia, do nascimento da vida a partir das profundezas da natureza. Parte animal e parte humana, a Esfinge representaria aquele lado do homem que ainda tem vínculos com sua fonte sub-racional e, por meio de seu aspecto ameaçador, representaria também o risco que o homem corre de ser engolido mais uma vez pela escuridão da qual ele, talvez apenas em parte, emergira. Recentemente, Claude Lévi-Strauss interpretou todo o mito de Édipo de maneira semelhante, referindo-se a ele como uma “tentativa de escapar da autoctonia” e demonstrando “a impossibilidade de ser bem-sucedido nessa tarefa” [14]. A claudicância de Édipo – que dá origem a seu nome (“pés inchados”) – é, segundo Lévi-Strauss, símbolo disso: sua exposição no monte Citerão com os pés pregados no solo representa o afastamento perfeito – dele e do homem – de sua origem na terra.

Se levarmos essa linha de interpretação adiante e, assim, seguirmos uma direção capaz de esclarecer o recorrente uso do tema do incesto em muitas obras de Mann [15], a união incestuosa de Édipo com Jocasta, sua mãe física, torna-se um paralelo ou um microcosmo de sua relação com as outras fontes de sua vida, a Esfinge e a terra – tal como se daria com a semelhante origem da Esfinge a partir das uniões incestuosas de Equidna com Ortros e Tifão e, em última análise, da terra com suas próprias profundezas.

Mann não tinha uma metafísica ou uma cosmogonia cautelosamente desenvolvida, mas aquela que ainda assim possuía tendia ao monismo autóctone que poderíamos esperar de sua leitura do mito de Édipo. Se interpretada à luz dessa teoria, a relação da consciência espiritual do homem com a natureza da qual ele nasce se torna uma relação que poderia ser corretamente vista como uma união incestuosa da vida consigo mesma. Um pouco dessa maneira de pensar pode ser vislumbrado na descrição do relacionamento entre o homem e a natureza que Mann incluiu num ensaio sobre sua filosofia pessoal publicado em I Believe, volume organizado por Clifton Fadiman:

Por acaso falei demais ao dizer que o ser humano é um grande mistério? De onde vem ele? O ser humano nasce da natureza, da natureza animal, comportando-se inequivocamente de acordo com sua espécie. Nele, porém, a natureza torna-se ciente de si. Ela parece ter-lhe dado origem não apenas para fazer dele senhor da própria existência – e essa é apenas uma expressão que indica algo cujo significado é muito mais profundo. Nele ela se abre ao espiritual; ela se questiona, se admira e se julga nele, como se estivesse num ser que, de uma só vez, é ela própria e uma criatura de ordem superior. (...) Foi tendo em vista sua própria espiritualização que ela deu origem ao homem [16].

Expressando essa ideia a partir das palavras do “majestoso” Mynheer Peeperkorn – o amigo, pai espiritual e rival sexual de Hans que, como personificação da “figura de um rei” (p. 590 [810]), é uma combinação de Édipo, Laio e Esfinge –, o homem “é o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza seu enlace com a vida despertada e ébria” (p. 603 [828]). A contemplação da vida por parte do homem é a contemplação da vida por parte da própria vida; do mesmo modo, seu amor pela vida é o amor que o espírito sente por suas próprias profundezas trevosas, pelo abismo do qual ela nasce.

Essa união entre a vida como espírito e a vida como natureza é, de acordo com uma expressão recorrente na Montanha Mágica, uma atividade “muito problemática”. Ela é uma autointoxicação narcisista capaz de afastar o indivíduo do mundo do trabalho e da organização política – de modo geral, da vida da razão e do serviço à comunidade. Não é surpreendente que o racionalista Settembrini, guia pedagógico de Hans, julgue “politicamente suspeito” o gosto musical dos alemães e sinta aversão pela referência do católico Naphta ao terceiro estágio de contemplação mística de São Bernardo de Claraval, visto como “‘leito de repouso’ (...), lugar da coabitação do amante com a amada” (p. 376 [513-14]).

A Montanha Mágica faz diversas alusões à Esfinge. Uma delas, aquela de Mynheer Peeperkorn, acabou de ser mencionada, mas por ser ele a principal coincidentia oppositorum da obra, devemos esperar que ele una em si essa figura com muitas outras, e não que ela seja o seu aspecto mais importante. O personagem mais próximo da figura esfíngica é a felina Clawdia Chauchat, que, a exemplo da Esfinge, tem descendência oriental (russa, para sermos mais exatos). No livro, tudo o que vem do Oriente simboliza o irracional e o caótico
e induz à desintegração moral e psicológica, ao mesmo tempo que, por meio da obsessão que suscita, tende a atrair o que seria um intelecto árido e desarraigado a uma união vivificante com o lado mais sombrio da vida, o emocional e o místico. Certo dia, enquanto Hans e Joachim Ziemssen, seu primo, visitam o apartamento do dr. Behrens e discutem os traços asiáticos da sra. Chauchat – as maçãs de seu rosto e seus olhos orientais –, Behrens diz: “É o que o senhor pensa! (...) É um verdadeiro quebra-cabeça” (p. 257). Em seguida,
usando um moedor “de origem indiana ou persa” que lhe fora dado por uma princesa egípcia e que trazia estampadas imagens obscenas, Behrens prepara um pouco de café para os jovens e lhes oferece alguns de seus cigarros especiais, outro presente da mesma mulher: “Hans Castorp serviu-se e fumou o cigarro extraordinariamente grosso e comprido, adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de fato era maravilhoso” (p. 262 [358-59]).

Tabaco, café e várias outras drogas são empregados no livro como símbolos do lado sedutor e perigoso da natureza. Behrens, no início dessa conversa, falava dos deleites dos charutos e da melancolia potencialmente letal que o abuso do tabaco pode suscitar. É significativo que, mais para o fim da obra, quando Hans já sucumbira por completo à influência dissolutiva da atmosfera da montanha mágica – e isso ao ponto de não mais carregar um relógio ou um calendário –, ele também deixe de encomendar os charutos Maria Mancini, marca originária de Bremen, para adotar em seu lugar um produto local: Rutlischwur (p. 708 [976]). Se relacionada aos cigarros da princesa egípcia que o diálogo sobre Clawdia Chauchat menciona, a referência à imagem da Esfinge se torna um sinal do possível perigo que acompanha o encantamento dessa mulher esfíngica – em especial se tal passagem for lida à luz de uma descrição posterior, e mais extensa, da princesa:

Recentemente chegara até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao conselheiro aquele notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma esfinge; era uma personagem sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e, exceção feita das refeições principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava casaco de homem e calças bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus favores mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia romena, que se chamava simplesmente Landauer (...). (p. 548 [749])

Como poderíamos dizer, existem coincidentiae oppositorum e coincidentiae oppositorum, algumas das quais são “muito problemáticas”.

As maneiras e o estilo de vida de Clawdia são completamente diferentes daqueles que Hans aprendera a valorizar em seu lar alemão civilizado e bürgerlich. Quando ele a nota pela primeira vez, é por causa do ruído que ela produz ao deixar bater a porta da sala de jantar do sanatório, prática que acaba se mostrando comum e que o repele, a exemplo do que se dá com sua negligência geral e com sua má postura à mesa. No entanto, essas mesmas qualidades também o atraem; como afirma a srta. Englehart, com quem ele secretamente partilha de seu fascínio por Clawdia: “Todas as mulheres russas têm no seu modo de ser qualquer coisa de liberdade e desembaraço” (p. 137 [188]). De fato, é a atração que sente por Clawdia que, num momento crucial, se torna fator decisivo para sua permanência no sanatório. Ele fora para lá apenas no intuito de visitar seu primo, quando então pegou um resfriado e decidiu se consultar com o dr. Behrens. Sem o exame, que revelaria o que Behrens chama de “lugar úmido” (p. 181 [249]), Hans teria voltado para casa ao fim das três semanas planejadas. Então, quando ele está prestes a ser examinado e, sentindo-se melhor, cogita cancelar o compromisso, Clawdia, com quem o protagonista jamais falara, lança-lhe um olhar esperançoso, como se soubesse da consulta que se aproximava: “Pois, quando os olhos falam, tratam-nos por ‘você’, ainda que a boca não tenha sequer empregado a terceira pessoa” (p. 176 [241]). Esse olhar, diz o narrador, “transtornara e enchera de espanto o âmago do coração de Hans Castorp”. Como consequência, sua ideia de faltar ao exame se esvai e se transforma em “puro tédio dos mais repulsivos”, e assim ele segue “vacilando interiormente, se bem que de passo firme”, para a sala de consultas.

O tipo de perigo em que a influência de Clawdia pode culminar caso ele se entregue completamente a ela é sugerido, de maneira mais clara, pelas próprias palavras que a personagem dirige a Hans na festa de carnaval realizada na noite anterior, antes da primeira saída dela do sanatório. Aquela é a primeira conversa entre ambos, e para travá-la Hans precisa aproveitar tanto a licenciosidade geral quanto o abandono das normas civilizacionais proporcionados por uma ocasião como aquela – o que é simbolizado por seu afastamento de Settembrini, que lhe avisa que o que ele está fazendo é loucura; pelo emprego de uma língua estrangeira no diálogo; e pelo uso da forma tu, íntima. Quando ele pergunta a Clawdia o que ela acha da moral, ela responde:

La morale? (...) il nous semble [ela está se referindo a conversas travadas com um amigo russo] quil faudrait chercher la morale non dans la vertu, cest-a-dire dans la raison, la discipline, les bonnes moeurs, l’honnetete, – mais plutot dans le contraire, je vetix dire: dans le peche, em s’abandonnant au danger, a ce qui est nuisible, a ce qui nous consume. II nous semble qu’il est plus moral de se perdre et meme de se laisser dépérir que de se conserver. (p. 340 [465])’’ [17]

[A moral? (...) parece-nos necessário buscar o ético não na virtude, isto é, na razão, na disciplina, no bom comportamento, na honestidade, mas em seus opostos – quer dizer, no pecado, no entregar-se ao perigo, ao que é nocivo, ao que nos consome. Parece-nos mais moral perder-se, e até mesmo deixar-se definhar, do que preservar-se].

Aqui ela está ecoando, claro, vários ditos do Novo Testamento sobre a necessidade de render-se ao crescimento espiritual e sobre o fato de que apenas aquilo que se permite morrer pode dar frutos ou alcançar a verdadeira vida; no entanto, existem diferentes maneiras de se submeter ao processo da morte metafórica, c algumas delas conduzem apenas à dissolução. O caminho a que Clawdia convida Hans é potencialmente fecundo e potencialmente destrutivo; ao segui-lo, ele deve descobrir como atravessar um labirinto no qual seria muito fácil se perder para sempre. Hans está pouco preparado para percorrê-lo sozinho, mas a vida felizmente envia à sua Sorgenkind vários tipos de ajuda que bastam para salvá-lo e para transformar essas experiências – tanto para Hans quanto para o leitor – numa história de crescimento e iluminação.

No momento do diálogo, Hans já estivera caminhando por alguns meses no caminho que Clawdia descreve. Durante sua conversa anterior com Behrens, os dois cavalheiros haviam travado, ao mesmo tempo que fumavam os cigarros da Esfinge, uma discussão sobre a fisiologia da carne e da vida orgânica. Behrens disse a Hans e seu primo que o corpo é constituído basicamente de água e que tende a dissolver-se na informidade. Essa tendência encontra sua satisfação na morte – “A gente se esparrama, por assim dizer. Não se esqueça de toda aquela água!” –, mas até mesmo durante a vida a dissolução é constante: “Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular. Trata-se de uma destruction organique” (p. 266 [364]). Na época, Hans estivera interessado pelo tema em virtude do que chamou de “a plasticidade das formas femininas” (p. 261 [357]) – de uma forma feminina em particular. Esse fascínio, porém, levou-o ao estudo do orgânico como um todo, de modo a fazê-lo comprar livros médicos e a ler “com insistente interesse o que os livros diziam sobre a vida e o seu sagrado e impuro mistério” (p. 274 [375]). Essa é uma mudança significativa de sua conduta anterior, exemplificada pela resposta dada a Behrens no dia em que ele e o primo foram saudados pelo doutor com uma pergunta sobre o funcionamento de sua “boa digestão”: “‘Boa digestão!’ Horrível! (...) Mas ‘digestão’ é termo puramente fisiológico, e fazer votos pelo seu desenvolvimento feliz parece-me pura blasfêmia” (p. 174 [239-40]) [18]. É claro que, à época, Hans era incapaz de notar o tom irônico da observação de Behrens; no entanto, é típico da ironia manniana que, após negar algo, ela depois o reafirme de maneira qualificada e reconhecendo a ambiguidade do que está sendo asseverado [19]. Desse modo, ao sentar-se em sua sacada e divagar com os estudos médicos, Hans passa a perceber os mistérios da carne como “sagrados” e “impuros”, simultaneamente. Ele também estendeu sua observação à vida como um todo e ao universo: “E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial?” (p. 285-86 [390]). Então, numa visão onírica, ele vê a própria vida tomar a forma de uma carne feminina:

Via ele a imagem da vida, a estrutura de seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a carne. (...) A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele, sobre ele. Hans Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma coisa quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele, descendo de volúpia e de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses braços, ali onde a pele granulosa, tensa sobre o tricípite era de esquisita frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo. (p. 286 [391])

E em virtude dessa preparação que ele, ao finalmente travar conversa com Clawdia, se mostra capaz de compreender o que ela lhe diz sobre la morale e de observar, por sua vez, que le corps, Vamour, la mort, ces trois ne font qu’un [“o corpo, o amor, a morte, os três não passam de um”] (p. 342 [468]).

Como Clawdia parte no dia seguinte, logo após a única noite que eles passam juntos, Hans não tem como explorar ainda mais o caminho a que a intimidade com ela conduziria. No entanto, Clawdia servira como introdução a esse aspecto do universo que ostenta o rosto dela em suas fantasias, e até mesmo em sua ausência ele encontra várias oportunidades para refletir sobre isso e lutar contra seus perigos. Ele pondera, por exemplo, sobre o mistério do tempo: “(...) visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade (...)” (p. 344 [470]). Essa é uma linha de pensamento potencialmente perigosa, pois, conduzindo a uma visão do tempo como mero “repouso” e “imobilidade”, poderia culminar num se laisser dépérir fatal. Como simples reflexão, ela poderia parecer abstrata demais para ser encarada como verdadeiramente arriscada, mas, num dos principais capítulos do livro – o capítulo “Neve” –, a tentação que ela contempla vem representada com uma seriedade mortal.

Nele, Hans, que passara a praticar esqui de fundo, percorre uma paisagem que parece a própria encarnação da morte: “Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o ‘nada’ brumoso em cuja direção Hans Castorp avançava penosamente (...)” (p. 478 [652]). A “absoluta simetria” e a “regularidade glacial” dos flocos de neve são feitas da mesma água que é a “substância inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem”; no entanto, em sua forma fria e precisa, elas estão para a água como o repouso e a imobilidade estão para o tempo, sendo descritas como algo “inquietante (...) antiorgânico (...) hostil à vida” (p. 480 [655]). Toda a aventura é um exemplo do verdadeiro perigo que a influência de Clawdia pode causar. A medida que ele prossegue, deixando para trás o sr. Settembrini, porta-voz da razão e da responsabilidade, Hans diz a si mesmo, citando Naphta “num latim de espírito nada humanístico”: Praeterit figura hujus mundi [“A aparência deste mundo é passageira”] (p. 478 [652]). Então, ao notar a luz azul refletida pelos buracos na neve, ele é levado a pensar no fascínio que o atrai: “(...) uma luz que o atraía misteriosamente, recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que o sr. Settembrini, do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente de ‘fendas tártaras’ e de ‘olhos de lobo de estepe’ (...)” (p. 479 [652-53]). Hans adentra mais e mais o “silêncio selvagem” e a “escuridão (...) crescente”, quando então é acometido pelo verdadeiro medo e percebe que “até agora se empenhara secretamente em perder o rumo” (p. 481 [656]). No entanto, mesmo depois de descobrir isso, ele ainda se sente instigado pelo sentimento de “desafio” e continua sua aventura imprudentemente: “Pode ser que essa palavra encerre sentimentos censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante que lhe corresponde ande acompanhada de muito medo sincero”. Quando Hans finalmente decide retornar, encontra uma tempestade que elimina quase toda a sua visibilidade e que o deixa irremediavelmente perdido. Ele percebe que, se optar por sentar-se, será “coberto por toda essa simetria hexagonal” (p. 484 [660]), mas a tentação é grande. É apenas contra uma poderosa resistência interior que ele segue adiante, e mesmo aí seu percurso apenas o leva de volta para onde estava, forçando-o então a perceber que, enquanto vagueia “em círculo, (...) tal qual a órbita falaz do ano” (p. 487 [664]), corre o risco iminente de ser devorado por sua Esfinge. Por fim, ele se abriga num galpão, estando tão cansado que passa diretamente do estado vigilante ao onírico.

Seu sonho o transporta a um cenário clássico, um parque composto de árvores sombrosas e chuva ensolarada, seguida por um arco-íris que parece música. Há pessoas por toda parte, “filhos do Sol e do mar (...), uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial” (p. 491 [670-71]). Alguns adestram cavalos, outros dançam ao som da música que sai da flauta pastoril de uma menina. Hans se deixa impressionar pela beleza daquela cena, ficando especialmente comovido com “as considerações iguais para todos”, com o “respeito natural (...) que demonstravam aos outros” e com a união de dignidade e leveza, uma “seriedade nada sombria” (p. 492 [672]). A postura ostentada por aquelas pessoas tem até um “lado cerimonioso”: quando os jovens passam por uma mãe que está a amamentar o filho, eles cruzam os braços “num gesto rápido e formal” e se inclinam; do mesmo modo, as moças esboçam “uma genuflexão, semelhante àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor” (p. 493 [673]).

Ali perto encontra-se um antigo templo. Quando Hans o adentra, vê a estátua de duas figuras femininas, mãe e filha: a mais velha, “muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas”, abraça a mais nova “maternalmente” (p. 494 [674]). Deixando para trás as figuras pétreas, o protagonista descobre no santuário uma cena que o enche de “pavor gélido”: “Duas mulheres grisalhas (...) esquartejavam uma criancinha”, simbolizando assim aquela destruction organique que se apresenta como complemento necessário à fecundidade da vida. Hans então acorda e se vê novamente na neve, tendo a tempestade já se abrandado.

Nesse momento do livro, o sonho é o que a vida revelou de mais importante à sua Sorgenkind. Há mais por vir durante a obra, mas a compreensão, por parte de Hans, do significado que lhe é revelado se torna a base de sua capacidade de abrir caminho entre a Cila e a Caríbdis representadas por Settembrini e Naphta, tal como de compreender suas experiências vindouras. Refletindo sobre essa revelação, Hans passa a encará-la como a exposição das profundezas não apenas de sua alma, mas também da alma do mundo da qual ele participa: “Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti (...) com coisas que sempre lhe enchem os olhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta” (p. 495 [675-76]). Partindo do necessário vínculo que ele vê entre a felicidade e a morte, assim como de seu apreço pela cortesia e pela amabilidade advindas da “recordação silenciosa daquela atrocidade” por parte dos “filhos do Sol”, ele chega à conclusão de que é preciso conservar equilibradas na mente a realidade existencial da morte e a beleza da vida, reverenciando ambas, mas jurando primordial lealdade à vida: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (p. 496-97 [678]). Hans percebe que Settembrini, que “não deixa de tocar a corneta da razão”, e Naphta, que agrupa Deus e o Diabo numa única bagunça, fogem da norma propriamente compassiva e religiosa: “(...) e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente” (p. 496 [677]). O segredo que Hans agora compreende é o de que “só ele [o amor], e não a razão, é mais forte do que ela [a morte]”.

Por mais importante que essa descoberta lhe pareça, contudo, ela ainda é basicamente uma visão e, portanto, algo bastante abstrato. Para assimilá-la por completo à sua vida concreta, Hans precisará encarar novos desafios e colocar em prática o amor que agora só contempla teoricamente. No entanto, quando ele retorna ao sanatório – e embora pense “agora a possuo. Meu sonho ma revelou com tanta nitidez, que sempre a guardarei na memória” (p. 497 [678]) –, os braços do costume o envolvem e, mesmo sem se esvair por completo, aquilo que ele vira segue o mesmo caminho da maioria dos sonhos: “Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do Berghof circundava-o com sua aura acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava em vias de apagar-se. O que pensara, já não o compreendia naquela mesma noite” (p. 498 [680]).

A próxima revelação importante chega a Hans não de forma onírica, mas encarnada na figura de Mynheer Peeperkorn, velho holandês de Java. Muitos críticos de Mann se mostraram incapazes de reconhecer, toda a relevância de Peeperkorn, mas seu papel é na verdade crucial para a obra; ele é a corporificação viva – a mais clara que Hans encontrará – do mistério sagrado que está no seio do universo do livro, a encarnação mesma da totalidade e, de acordo com a forma que Mann desenvolve, também da santidade [20].

No início, a chegada de Peeperkorn é causa de grande constrangimento e desgosto para Hans, uma vez que ele chega como companhia de Clawdia Chauchat, por cujo retorno Hans ansiava como se ambos fossem dar continuidade ao relacionamento iniciado na noite anterior à sua partida. Agora ele a encontra na posse de outro homem, um homem que ele tenta ao máximo desprezar à maneira dos rivais amorosos. Isso, porém, não lhe é exatamente simples. As coisas ficam um pouco mais fáceis por causa da incoerência discursiva do holandês – como em: “Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... (p. 551 [754]) –, mas a personalidade por trás de suas palavras é tão sensivelmente poderosa que até mesmo Hans deve se deixar impressionar. Um exemplo do que a força da personalidade de Peeperkorn pode provocar e das qualidades singulares que ele leva ao sanatório pode ser encontrado num incidente que ocorre no início de sua estada. Durante o café da manhã, ele acena para uma das garçonetes, uma anã que deixara Hans bastante assustado em sua primeira refeição e com quem ninguém jamais falara, exceto de maneira impessoal. Peeperkorn deseja fazer seu pedido, mas antes a trata como uma pessoa:

Minha filha! (...) Você é pequena. Não há de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e dou graças a Deus por você ser assim como é, e devido à sua baixa altura que é tão característica... Pois então! O que desejo da sua parte também é pequeno, pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama? (p. 552 [755])

“Hesitando e sorrindo”, ela responde que seu nome é Emerentia – em latim, “merecedora”, palavra usada especialmente para referir- -se a alguém que cumpriu seu tempo de serviço. Até esse momento, ela desempenhara um papel completamente silencioso, quando então Peeperkorn a liberta com sua pergunta e a conduz até a comunidade humana como uma pessoa reconhecida.

Aquilo mesmo que ele pede para a anã desencantada é um dos símbolos centrais da obra: “Pão, Rencinha, mas não pão cozido. (...) Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão claro (...). Uma genebrinha, querida!” Quando ela lhe traz o “pão” num cálice que transbordava, ele parece “mastigar [o líquido] rapidamente” (p. 553 [756]) antes de o engolir. A junção do sólido e do líquido nesse “pão” úmido faz dele um símbolo da vida encarnada descrita pelo livro, uma instável combinação entre água e forma; do mesmo modo, seu tratamento como o “pão de Deus” transforma-o num sacramento – embora este seja um sacramento não apenas do Deus cristão, mas também do deus da natureza e do vinho: Dionísio [21].

As implicações desse símbolo são desenvolvidas nos episódios que se seguem, quando Peeperkorn mostra a Hans, de quem logo se tornou muito próximo, “as coisas singelas, grandes, que têm sua origem em Deus” (p. 564 [773]) e explica-lhe, por meio de uma expressão muito repetida, que a grandeza da qual ele está falando é o “sagrado! Sagrado em todos os aspectos, no sentido cristão como no pagão!” (p. 570 [783]). Na ceia da meia-noite em que ele e Hans se tornam amigos, Peeperkorn se compara ao Cristo no Getsêmani e, depois, substitui essa postura pela postura de um sacerdote pagão: “Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial” (p. 570 [781]). Com uma “covinha de sibarita” em sua face, ele afirma “que está próxima a hora” e solicita a carta de vinhos.

Em conversa com Settembrini – que, de uma forma que não lhe era característica, censurara Hans por tornar-se tão amigo de seu rival sexual –, Hans descreve o magnetismo de Peeperkorn como o efeito da união entre a presença física e a presença espiritual:

Não é tampouco por causa das suas qualidades físicas. E, todavia, não há dúvida de que fatores físicos desempenham um certo papel no seu caso; não no sentido da força dos braços, senão num outro, místico. Cada vez que o corpo desempenha um papel, entra-se no terreno do místico. O elemento corporal confunde-se então com o espiritual, e vice-versa, de maneira que é impossível distingui-los. Mas nota-se o efeito, o dinamismo, e já nos achamos metidos num chinelo. Para explicar esse fato, dispomos de uma única palavra: personalidade. (p. 583 [800])

E ele de fato os coloca no chinelo com a sua chegada – em especial Settembrini e Naphta, que se valiam de sua erudição e eloquência para dominar toda e qualquer companhia. Peeperkorn é o equilíbrio vivo de seus extremos, de modo que, ao discutirem em sua presença, o debate dos dois se esvai, e suas perspectivas convergem naquela pessoa: “(...) nela [as coisas] pareciam anuladas a todos os que o viam; era isto e aquilo, um e outro” (p. 590 [810]). Vendo o colapso da loquacidade deles diante daquele “zero majestoso”, Hans percebe – numa descoberta e tanto para um “tagarela”, que é como Peeperkorn em determinado momento o chama (p. 573 [785]) – que “se deve expressar um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo” (p. 590 [809-10]). Quando Settembrini e Naphta tentam, em vão, manter o debate vivo, Peeperkorn lhes recorda: “Isto é... Isto são... Nesse caso, manifesta-se... O sacramento da volúpia”; em seguida, fala do ar montanhesco que respiram: “Não deveríamos aspirá-lo, só para soltá-lo em forma de... Insisto, senhores, não deveríamos fazer isso. É um insulto. (...) E o nosso peito que o respira deveria louvar irrestritamente” (p. 591 [810-12]).

Existem outras formas pelas quais Peeperkorn media extremos e une os vários opostos da vida. Até mesmo seu modo de se vestir – um “colete de peito alto” clerical e uma sobrecasaca xadrez (p. 550 [752]) – sugere a união do sagrado e do secular, e seu passado como agricultor holandês das índias Orientais representa ainda uma fecunda junção do Oriente com o Ocidente. Quando somos apresentados a ele, lemos que ele poderia parecer incolor se comparado à princesa lésbica e travestida dos cigarros esfíngicos (p. 548), mas no final das contas ele é tudo o que ela é, só que numa forma que não é perversa. A princesa egípcia une, por exemplo, as características de ambos os sexos, mas para tanto deve experimentar a inversão de sua identidade sexual natural. Peeperkorn, por sua vez, tem uma personalidade completamente masculina ao mesmo tempo que aprecia todo o lado feminino da vida. Seu característico gesto manual – “(...) sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar, para formar um círculo, ao passo que três outros dedos se esticavam para o alto” (p. 552 [755]) – parece simbolizar a união do masculino e do feminino, em especial se tivermos em mente as associações sexuais da lança e do cálice na lenda do Santo Graal, dos quais o próprio Peeperkorn é a verdadeira encarnação.

O contraste entre Peeperkorn e a princesa egípcia é importante porque revela os perigos do caminho rumo à totalidade e porque mostra ser necessária uma sabedoria superior à racionalista para que eles sejam vencidos com segurança e, assim, conduzam a vida a um plano sagrado, e não demoníaco. Settembrini é uma pessoa bastante limitada e, por isso, permanece sempre unilateral; no entanto, ele está alertando Hans para os verdadeiros perigos quando lhe diz, em determinado momento, que o mundo do sanatório é uma “ilha de Circe”: “O senhor não é bastante [Odisseu] para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!” (p. 247 [338]). Poderíamos dizer que Hans deu o primeiro passo rumo ao poder de Circe quando deixou a srta. von Mylendonck, enfermeira-chefe, vender-lhe um termômetro, versão da varinha da feiticeira. Em seguida, ele dá outro passo ao deixar que os olhos de Clawdia o motivem a encarar o exame físico e ainda outros quando começa a chamar Clawdia de tu, a buscar suas opiniões sobre la morale e, então, ao deixar-se perder, ainda que inconscientemente, na neve. Settembrini não menciona, porém, que o encontro com Circe terminara muitíssimo bem para Odisseu; ele desfrutou de grande prazer com a deusa na cama e também conseguiu uma informação – sobre a necessidade de visitar o reino dos mortos – que favoreceu sua viagem para casa. Hans pode não ser, como diz Settembrini, bastante Odisseu, mas Peeperkorn o é, sendo portanto capaz de ensinar-lhe coisas que lhe possibilitam desempenhar esse papel de maneira mais adequada do que desempenharia se deixado por conta própria.

Peeperkorn diz a Hans, por exemplo, enquanto faz seu característico gesto com “o anel da precisão e os dedos lanciformes”, que todas as substâncias são potencialmente perigosas e potencialmente benéficas: “(...) quanto às substâncias químicas, a verdade era esta: todas elas eram ao mesmo tempo medicamentos e venenos; a farmacologia e a toxicologia eram uma e mesma coisa; os doentes se curavam por meio de tóxicos, e o que era considerado como portador da vida podia, sob certas circunstâncias, produzir um espasmo que matava (...)” (p. 578 [792]). O importante é saber como usá-las. Peeperkorn utiliza tanto quinina, “um veneno medicativo”, quanto álcool e café, mas é relevante que, ao contrário de Hans e Clawdia, ele não fume: “Pelo que se podia deduzir das suas explanações, o consumo do tabaco já fazia parte de gozos por demais refinados, cujo cultivo representava um agravo à majestade das dádivas simples da vida, dessas dádivas e funções que a nossa sensibilidade mal e mal conseguia apreciar devidamente” (p. 564 [772-73]). Numa conversa posterior, ele explica ainda mais o que quer dizer, afirmando que as dádivas e funções da vida revelam ao homem “seu dever religioso de sentir” e que “o homem que fracasse quanto ao sentimento, aviltaria a Deus” (p. 603 [828]). É aqui que ele diz a Hans que o homem é o sentimento de Deus e o órgão pelo qual Deus realiza seu enlace com a vida. A vida que representa o ponto de união entre o espírito e a carne pode ser um veneno ou um elixir; utilizá-la adequadamente é transubstanciar tanto o amante quanto o amado num modo sagrado de existência.

O fato de Clawdia ainda ter um aspecto circeano potencialmente perigoso fica claro, durante o episódio de Peeperkorn, no momento em que ela faz cara feia para a amizade de Hans com seu amante. Parte dela gostaria que ele sentisse raiva de seu rival e permanecesse tão somente dela. Em certa medida, Hans de fato nutre esse sentimento, mas ceder a ele o privaria das grandes vantagens que a amizade com Peeperkorn lhe oferece e o reduziria a uma unilateralidade praticamente bestial na paixão sexual. Do mesmo modo, isso também transformaria sua relação com Clawdia e Peeperkorn, que chega a chamá-lo de “meu filho”, numa versão do triângulo edipiano de Freud. Hans, porém, está pronto para fazer frente à tentação. Em especial por meio do sonho na neve, a vida lhe ensinara muitas lições importantes durante a ausência de Clawdia, e é significativo que na primeira conversa dos dois após seu retorno ele repita a fórmula que ela utilizara ao falar sobre como é “plus morale de se perdre et mêtne de se laisser dépérir, que de se conserver”. Dessa vez, porém, ele emprega sua própria linguagem e a embebe num novo significado que purifica sua tendência à dissolução moral: “É, aliás, mais moral perder-se e perecer do que preservar-se” (p. 558 [764]) – sendo essa, dessa vez, uma referência ao fato de seu primo ter arriscado a vida para voltar à planície e ao seu regimento [22].

Como agora é capaz de encontrar sua Circe sem deixar que ela o reduza à bestialidade, Hans mostra-se apto a beneficiar-se da outra face do papel dela como corporificação do lado passional da vida: ela ama Peeperkorn e, apesar da vontade de ver Hans odiando-o, convida o protagonista a participar do amor que sente por ele. De fato, após um pouco de cara feia, ela revela que fora por isso que levara Peeperkorn de volta ao Berghof: “Queres que mantenhamos amizade? Que façamos uma aliança a favor dele, assim como normalmente se faz contra alguém? Queres dar-me a tua mão para selar isso? (...) Enfin, se te interessa saber, talvez seja por causa disso que voltei para cá com ele...” (p. 598-99 [822]). Ela agora é capaz de partilhar abertamente o amor que sente por ele porque percebe que Hans aprecia tanto o que ela é quanto o que Peeperkorn é; segundo afirma: “És inteligente” (p. 597 [820]). O que ele compreende talvez esteja ainda além do que ela percebe. Como Odisseu diante de Circe, Hans está pronto para apreciá-la e tudo o que ela representa e valoriza, ao mesmo tempo que mostra o seu valor e, assim, mantém o equilíbrio da norma compassiva. Quando ele lhe fala sobre os dois caminhos da vida – o “ordinário, direto e honrado”, tomado por seu primo, e o seu, der geniale Weg –, ela afirma que o que ele diz soa “humano” [mänschlich [23], em sua pronúncia] e bom (p. 596 [819]); no entanto, é significativo que ele acrescente isto momentos depois, tratando da ideia do menschlich:

Tu gostas dessa palavra, que arrastas com uma ênfase fanática. Sempre me interessa ouvi-la pronunciada pela tua boca. Meu primo Joachim detestava-a por motivos militares. Dizia que ela significava indolência e relaxamento geral, e quando a considero sob esse aspecto, como um irrestrito guazzabuglio de tolerância, também eu não posso deixar de fazer algumas objeções; isso admito francamente. Mas quando ela expressa liberdade, genialidade [Genialität [24]], bondade, é uma grande coisa, e, segundo me parece, não faz mal que a empreguemos a favor de nossa conversa sobre Peeperkorn (...). (p. 598 [821])

No fim das contas, não é com um aperto de mãos que eles selam seu pacto de amizade em prol do homem que amam – mit dir für ihn, como afirma Hans: “com você por ele” [25] –, e sim com um beijo que ela instiga e ele aceita: “Era um daqueles beijos russos, do tipo dos que se trocam nesse vasto país cheio de alma, nas mais importantes festas cristãs, como uma consagração do amor” (p. 599 [822]). Em seguida, o narrador comenta sobre a relevante ambiguidade dos sentimentos expressos por esse beijo:

Não será bom e grande o fato de a língua não possuir senão uma única palavra para tudo quanto aquilo pode abranger, desde o sentimento mais piedoso até o desejo mais carnal? O equívoco torna-se, pois, plenamente unívoco, uma vez que o amor não pode ser separado do corpo, nem sequer no auge da piedade, como não é ímpio nem nos momentos de carnalidade extrema. (...) Decerto há caritas até na paixão mais furiosa e na paixão mais reverente. (p. 599 [823])

Um amor que não buscasse mais do que seu próprio interesse – ao qual o lado negativo do fascínio de Hans por Clawdia talvez o tivesse tentado – conduziria apenas ao ódio; no entanto, equilibrado como aqui se apresenta e dotado de uma caritas dadivosa, o amor de Hans e Clawdia é capaz de alcançar seu ponto mais alto. Sendo ao mesmo tempo paixão e amizade, ele une os dois não à mercê da morte – a união entre le corps, l’amour, la mort da qual falara Hans na festa de carnaval –, mas na devoção à vida. Ao resistir ao lado perigoso de sua Circe, Hans não apenas impediu que ele próprio fosse reduzido à brutalidade, mas também a libertou da necessidade de ser apenas uma sedutora. Em vez disso, ela se torna aquela que Settembrini ironicamente dissera ser antes de seu retorno (p. 519 [709]): a “Beatriz” de Hans.

Por fim, a aliança que Hans estabelece com Clawdia em prol de Peeperkorn é coroada com uma aliança complementar entre Hans e ele em prol dela. Peeperkorn supõe que Hans estivera apaixonado por Clawdia e, por isso, ele mesmo fora causa de sofrimento para o protagonista. Ao lhe perguntar se isso é verdade, Peeperkorn tem suas suspeitas confirmadas por Hans, que acrescenta, porém, que esse sofrimento “não pode ser separado” do “enorme privilégio de conhecê-lo” (p. 609 [837]) e que ele não o encarou como um insulto: “quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clawdia, nem tampouco do senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da minha vida e do meu destino” (p. 610 [838]). Peeperkorn, por sua vez, propõe que eles se tornem irmãos em vez de rivais, adotando o “tu”: “A aliança que não lhe posso dar com a arma, devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a forma de uma aliança fraternal, (...) o que nós faremos no sentimento comum por alguém” (p. 611 [840]). Esse “alguém” por quem a aliança é criada é Clawdia, mas também se dedica à vida que Clawdia simboliza, à vida que faz “exigências sagradas, femininas, (...) à honra e ao vigor masculino” (p. 565 [774]). Peeperkorn já assinalara essa ideia ao falar, em seu primeiro encontro com Hans, da possibilidade de um dia os dois travarem uma relação fraterna: “Irmãos! (...) Está projetado... Projetado para breve, embora a ponderação, por enquanto... Bem, basta! A vida, meu caro jovem, é uma mulher (...) e reivindica todas as energias da nossa virilidade, que se deve confirmar ou perecer perante ela” (p. 566 [775]). O único grande medo de Peeperkorn – “o desespero do inferno, o fim do mundo” – é a possibilidade, que com sua idade e enfermidade se lhe torna enorme, de não ser capaz de corresponder a tal desafio: “Perecer, jovem! O senhor percebe o que isso significaria? A derrota do sentimento em face da vida, eis o que é a insuficiência” (p. 566 [775]). Desse modo, assim como Clawdia necessita de um amigo que o ajude a cuidar de Peeperkorn, ele mesmo necessita de um irmão para ajudá-lo a amar a vida e Clawdia.

Não é muito depois do estabelecimento dessa aliança que Peeperkorn comete suicídio com um dos venenos que sabia como utilizar. Embora possa parecer uma rendição à morte, esse na verdade foi um último ato de resistência. Como afirma Hans em seguida, dirigindo-se a Clawdia: “A envergadura dele era tamanha (...) que o fracasso do sentimento em face da vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um aviltamento de Deus” (p. 624 [859]). A própria Clawdia chama aquilo de uma abdication – ou seja, não uma derrota, mas a renúncia de sua coroa antes que lhe fosse impossível utilizá-la com dignidade.

Antes de despertar, por causa da deflagração da Primeira Guerra Mundial, de seu sonho de sete anos na montanha, Hans passa por outras experiências que lhe ensinam bastante. No entanto, o encontro com Peeperkorn continua sendo o ponto máximo tanto do protagonista quanto da obra. Peeperkorn é a corporificação do ideal mais sublime que o homem pode almejar no universo de Mann: o ideal de tornar-se o órgão da união de Deus com a vida e de permanecer fiel a esse ideal dentro das próprias possibilidades, ainda que o indivíduo saiba que, como produto da natureza – e a exemplo do grão que é destilado para tornar-se “pão de Deus” –, o homem está destinado a ser absorvido pela escuridão da qual emergira.

Hans nos oferece aquele que talvez seja o melhor enunciado da combinação de seriedade e pilhéria com que Mann apresenta a visão do sagrado imanente contida na Montanha Mágica: “ele [Peeperkorn] se considerava o órgão nupcial de Deus. Era uma fantasia de rei... Quando estamos comovidos, temos a coragem de empregar expressões que soam rudes e desapiedadas, mas são mais solenes do que as palavras da devoção convencional” (p. 624 [859]).

A Montanha Mágica foi publicada em 1924. O desenvolvimento de sua visão se estendeu a várias outras obras de Mann, cuja carreira esteve inteiramente preocupada com a possibilidade de compreender a vida humana unindo o sagrado e o secular. Sua próxima grande obra, José e Seus Irmãos, retomou o tema dando-lhe uma ênfase cômica – cômica nos dois sentidos da palavra, o humorístico e o otimista. Doutor Fausto tomou-o adotando um viés trágico, focando-se no lado “questionável” da união narcisista do homem com a vida e no aspecto demoníaco do sagrado. Mesmo o Doutor Fausto, porém, não se mostra desesperançado. Pelo contrário, e de maneira que evoca Joyce, ele representa o pecado como algo necessário à totalidade do ser; o dr. Schleppfuss, um dos instrutores de Adrian Leverkühn na teologia, apresenta-lhe o conceito de virtude de maneira tão ambígua que ela parece um convite ao pecado: “A piedade e a virtude consistiriam, então, em fazer bom uso da liberdade que Deus teve de conceder à criatura como tal, o que é o mesmo que não lhe dar uso algum; contudo, de acordo com o que se ouvia de Schleppfuss, era como se esse não uso da liberdade significasse, na verdade, certo enfraquecimento existencial, uma diminuição da intensidade do ser na criatura externa a Deus” [26]. Ao fazer seu pacto com o diabo, Adrian tenta completar a humanidade levando-a além dos confins da piedade religiosa convencional e do humanismo racionalista. De fato, ele está buscando der geniale Weg junto com Hans Castorp, e, embora seu fim seja mais sinistro do que o de Hans, há indícios de que sua busca pode, ainda assim, ser fecunda para o homem. O diabo, que no livro parece suficientemente sincero mesmo nas ocasiões em que é genuinamente mal, diz a Adrian: “À base de tua loucura eles crescerão em saúde, e neles tu serás sadio” (p. 243). A possibilidade de isso acontecer é insinuada ainda mais na narrativa sobre o papa Gregório Magno que Adrian descobre na Gesta Romanorum e musica. A história, que viria a ser desenvolvida por Mann no Santo Pecador, diz respeito ao lendário nascimento do papa Gregório a partir da união incestuosa de seus pais, bem como à sua relação incestuosa com a mãe e ao seu miraculoso chamado à sé de Roma. No fim da história, Gregório diz à mãe, que o procurara em busca da confissão e absolvição: “Ó, doce mãe, irmã e esposa! Ó, amiga! O Diabo desejou levar-nos ao inferno, mas o imenso poder de Deus o impediu” (Dr. Fausto, p. 319). O Santo Pecador manifesta a esperança de que isso venha a se aplicar à humanidade, e quando, nas Confissões do Impostor Félix Krull, último romance de Mann, o professor Kuckuck descreve a Félix o ideal da “simpatia universal” – desejando, ao despedir-se, que ele sonhe “com o Ser e com a Vida” –, essa esperança é mais uma vez estendida ao cosmos como um todo, como na Montanha Mágica:

Sonha com as galáxias torvelinhantes que, uma vez lá, encaram com paciência o esforço de existir. Sonha com o formoso braço e sua antiga estrutura óssea, com as flores do campo que, ajudadas pelo sol, dissolvem a matéria sem vida e a incorporam a seus corpos vivos. E não deixa de sonhar com a pedra musgosa de um riacho de montanha, ali repousada por milhares de anos, resfriada, banhada e polida pela espuma e pela corrente. Examina a sua existência com simpatia, o Ser mais vigilante olhando para o Ser no mais profundo sono, e a saúda em nome da Criação! Tudo está bem quando o Ser e o Bem-Estar em alguma medida se reconciliam [27].

E relevante, porém, que o professor Kuckuck esteja falando de um sonho. Félix Krull é a história de um vigarista, um impostor profissional, e o romance é tanto uma alegoria da arte quanto uma espécie de cultivo de sonhos. Tais sonhos podem ser nobres – o que de fato se aplica a este descrito por Kuckuck –, mas, até que se concretizem na realidade, devem permanecer como visões do que pode acontecer. Além disso, o fato de eles virem ou não a se concretizar é uma questão que, do ponto de vista da obra como um todo, ainda não pode ser respondida. Na ficção de Mann, talvez as expressões mais adequadas de sua opinião sobre a natureza do homem e daquilo que ele poderia se tornar não se encontrem na boca de qualquer um dos personagens de seus romances, mas na oração final do Doutor Fausto – “Que Deus tenha misericórdia de tua pobre alma, meu amigo, minha pátria!” – e na pergunta que encerra A Montanha Mágica: “Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”.

O ideal que Mann delineia é uma variante da ideia do Terceiro Reino, tal como indica o nome que lhe é dado: “terceiro humanismo”. Ademais, a profissão de fé que o autor formula no ensaio I Believe – “De fato, creio na chegada de um humanismo novo, um terceiro humanismo (...)” [28] – evoca claramente, ainda que Mann não tivesse ciência disso, a semelhante profissão feita por Ibsen em 1887, no banquete de Estocolmo [29]. Mann descreve seu “terceiro humanismo” como uma mistura da tradição do humanismo secular com a reverência da religião cristã e sua consciência da realidade do pecado. “O que os cristãos chamam de ‘pecado original’”, diz ele, “é mais do que uma artimanha sacerdotal desenvolvida para manter os homens sob o domínio da Igreja; trata-se da ciência profunda, presente no homem como ser espiritual, de sua própria enfermidade e de sua inclinação ao erro, as quais ele transcende pelo espírito” [30]. Ao mesmo tempo, porém, em que descreve sua “enorme antipatia pelo aglomerado sem formação que hoje se mobiliza para ‘conquistar o cristianismo’”, Mann também deixa claro que é num monismo imanentista que ele crê, e não no que chama de “dualismo cristão da alma e do corpo, do espírito e da vida, da verdade e do ‘mundo’” [31].

A atitude de Mann diante da tradição religiosa ortodoxa do Ocidente foi, na verdade, bastante ambígua. Por um lado, ele a valorizava demasiadamente; por outro, julgava-a carente de uma revisão radical. Em seus anos de maturidade, Mann às vezes falou de seu ideal humanista como uma esperança particularmente cristã. Em carta escrita no ano de 1953, por exemplo, ele escreveu:

(...) bom seria se, de todos os nossos sofrimentos, emergisse um novo sentimento de compaixão pela humanidade, uma comiseração unificadora pelo precário posto do homem no universo, entre a natureza e o espírito; em suma, se um sistema ético novo e humanista se formasse e adentrasse a consciência e a subconsciência geral. Ele exerceria uma salutar influência sobre a vida aqui na terra. (...) Esses, porém, são desejos piedosos. Desejos até mesmo cristãos, se assim quiserem. “Cristão”, para mim, apesar de Nietzsche, ainda não é um termo ultrajante [32]. Até mesmo a crítica feita por Nietzsche à religião cristã ele preferia interpretar como “um acontecimento ocorrido dentro da história do cristianismo” [33].

Mann estava tentando investigar o limite dos conceitos que os homens utilizam para definir sua relação com o universo e com o sagrado, e portanto não é surpreendente que tenha encontrado dificuldades para descobrir onde se posicionar em relação às tradições religiosas e para definir onde de fato almejava chegar. O que fica claro, porém, é que, em toda a sua obra, Mann tentou redescobrir uma dimensão sagrada na experiência humana e apresentá-la ao seu tempo. Qualquer que fosse a sua relação com as religiões, sua atitude era claramente religiosa. Como ele afirmou num ensaio de 1948 sobre Nietzsche: “Religião é reverência – reverência, antes de mais nada, pelo enigma que o homem representa” [34].

Notas:

[1].     “The Making of The Magic Mountain”. In: Thomas Mann, The Magic Mountain. Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf, 1944, p. 727.

[2].    The Sacred and the Profane, p. 188.

[3].    As páginas indicadas referem-se à edição da Montanha Mágica mencionada na nota 1 deste capítulo. [Edição brasileira: A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 47-48. Sempre que o autor indicar as páginas de sua edição, colocaremos entre colchetes as páginas do volume brasileiro utilizado (N. T.)]

[4].    Ver Joseph and His Brothers. Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf, 1948, p. 582 ss. Em seu “Einführung in den Zauberberg für Studenten der Universität Princeton”, Der Zauberberg (Berlim, S. Fischer Verlag, 1954), p. xv, Mann afirmou que A Montanha Mágica é mais bem compreendida quando lida, mais do que em relação às suas outras obras, em relação aos romances de José.

[5].    Der Zauberberg, p. 33.

[6].    Mann referia-se à inédita tese de doutorado de Howard Nemerov, The Quester Hera: Myth as Universal Symbol in the Works of Thomas Mann (Harvard, 1940). Todas as citações seguintes de “The Making of The Magic Mountain” se encontram em The Magic Mountain, p. 728-29.

[7].    Der Zauberberg, p. 849.

[8].    The Magic Mountain, p. 727.

[9].    Sófocles, Oedipus at Colonus. Trad. Robert Fitzgerald. In: Sophocles I. Chicago, University of Chicago Press, 1964, vv. 8, 1134-35.

[10].   Ibidem, vv. 6-7.

[11].   Oedipus the King. Trad. David Greene. In: Sophocles I, vv. 1080-84. Cf. o discurso de Jocasta nos versos 977-78: “Por que deve o homem temer quando o acaso [Túxr] está, de todo modo, a seu favor e ele claramente não pode prever nada?”.

[12].   Ibidem, v. 398.

[13].   Carl Jung utilizou uma genealogia semelhante em sua interpretação do símbolo da Esfinge na mitologia. Cf. Jung, Symbols of Transformation: An Analysis of the Prelude to a Case of Schizophrenia. Trad. R. F. C. Hull. Nova York, Pantheon Books, 1956, p. 182: “A genealogia da Esfinge possui múltiplas ligações com o problema aqui abordado: ela era filha de Equidna, monstro cuja metade superior era a de uma bela donzela e a inferior, de uma repugnante serpente. Esse ser duplo corresponde à imago materna: na parte superior, a adorável e atraente metade humana; na inferior, a terrível metade animalesca, transformada em animal medonho pela proibição do incesto. Equidna nasceu da mãe de todos, a mãe terra, Gaia, que a concebeu de Tártaro, personificação do submundo. A própria Equidna era a mãe de todos os terrores, da Quimera, de Cila, da Górgona. (...) Um de seus filhos era Ortros, cão do monstro Gerião abatido por Hércules. Com esse cão, seu próprio filho, Equidna produziu incestuosamente a Esfinge. Está claro que um fato dessa magnitude não pode ser desfeito com a mera solução de um enigma infantil. O enigma era, na verdade, a armadilha que a Esfinge preparava para o errante descuidado. (...) O enigma da Esfinge era ela mesma: a terrível imago materna que Édipo não tomaria como advertência”.

[14].   Structural Anthropology. Trad. Claire Jacobson e Brooke Grundfest. Nova York, Basic Books, 1963, p. 216.

[15].   O tema aparece, por exemplo, na união entre o irmão e a irmã de “O Sangue dos Walsungs”; na união entre Huia e Tuia, também irmãos, em José no Egito; na fantasiosa relação de Adrian Leverkühn com sua “irmãzinha” sereia, em Doutor Fausto; nas uniões entre irmão e irmã e mãe e filho em O Santo Pecador; e no fascínio de Félix Krull pelo casal de irmãos que vê em Frankfurt.

[16].   I Believe: The Personal Philosophies of Certain Eminent Men and Women of Our Time. Nova York, Simon and Schuster, 1939, p. 132. A contribuição de Mann ao volume foi traduzida por H. T. Lowe-Porter.

[17].   Tanto esta quanto as próximas citações em francês aparecem no original e na tradução da Montanha Mágica feita por Lowe-Porter. As traduções são minhas.

[18].   Cf. Eliade, The Sacred and the Profane, p. 178: “Assim como a habitação do homem moderno perdeu seu valor cosmológico, seu corpo perdeu seu significado religioso ou espiritual”.

[19].   É importante comparar isso com aquilo que, segundo André von Gronicka, disse Hermann Hesse (em carta a Mann, de 8 de novembro de 1950) sobre a complexidade da ironia em O Santo Pecador: “‘A maioria dos leitores’, pensava ele, ‘teria discernimento suficiente para perceber a ironia dessa agradável criação’; no entanto, Hesse tinha sérias dúvidas sobre se ‘todos seriam capazes de notar a sinceridade e a piedade subjacentes a essas ironias e, assim, atribuir-lhes seu verdadeiro e sublime contentamento’”. Von Gronicka, Thomas Mann: Profile and Perspectives. Nova York, Random House, 1970, p. 150.

[20].  Essa interpretação de Peeperkorn aparece pela primeira vez de maneira clara e completamente adequada num artigo de autoria de Oskar Seidlin, “The Lofty Game of Numbers: The Mynheer Peepkorn Episode in Thomas Mann’s Der Zauberberg”. PMLA, 86, n. 5, outubro de 1971, p. 924-39. Para uma breve descrição das inadequadas interpretações anteriores, ver a nota 17 de Seidlin, p. 937.

[21].   Para uma análise mais extensa do simbolismo sacramental aqui encontrado, ver Seidlin, “The Lofty Game of Numbers”, p. 928-29. Acerca da relação entre Cristo e Dionísio nessa imagem do pão “líquido” – o Korndestillat – e na figura de Peeperkorn como um todo, Seidlin diz: “O que os une é a ideia da Encarnação: em Cristo, o mundo, o espírito divino, torna-se carne, o celeste desce à terra, a luz brilha na escuridão; em Dionísio, as forças aparentemente cegas da natureza são transfiguradas no divino, as sementes arraigadas no seio negro da terra irrompem no esplendor acima, a luz das tochas ilumina a escuridão da noite no aparecimento festivo do deus” (p. 928).

[22].  Cf. ibidem, p. 933-34.

[23].  Der Zauberberg, p. 849.

[24].  Ibidem, p. 851.

[25].  Ibidem, p. 852. Tradução minha.

[26].  Doctor Faustus: The Life of tbe German Composer Adrian Leverkühn as Told by a Friend. Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf, 1948, p. 101. As referências subsequentes virão entre parênteses.

[27].  Thomas Mann, The Confessions of Félix Krull, Confidence Man: The Early Years. Trad. Denver Lindley. Nova York, Alfred A. Knopf, 1955, p. 277.

[28].  I Believe, p. 193.

[29].  Ver cap. 3, p. 63. Fritz Kaufmann, Thomas Mann: The World as Will and Representation, Boston, Beacon Press, 1957, p. 27, remonta à preocupação de Mann com a síntese dialética ao "Terceiro Reino" de Ibsen e ao casamento nietzschiano do apolíneo com o dionisíaco. Outra fonte seria Goethe, a quem Mann se refere de modo particular no ensaio I Believe, p. 193.

[30].  I Believe, p. 192.

[31].   Ibidem, p. 192-93.

[32].  The Letters of Thomas Mann. Org. e trad. Richard e Clara Winston. Nova York, Alfred A. Knopf, 1971, p. 652.

[33].  The Story of a Novel: The Genesis of Doctor Faustus. Trad. Richard e Clara Winston. Nova York, Alfred A. Knopf, 1961, p. 191.

[34].  “Nietzsche’s Philosophy in the Light of Recent History”, Last Essays. Trad. Richard e Clara Winston. Nova York, Alfred A. Knopf, 1959, p. 177.
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