Depois de ilustrar este espaço com as
contribuições de renomados ensaístas, acerca das dimensões filosófica,
histórica, política e, obviamente, literária da obra máxima de Thomas Mann, trazemos
agora um longo e detalhado estudo do Professor Emérito da Universidade de
Washington (EUA), Eugene Webb, sobre os intercursos religiosos e seculares
não somente manifestos em “A Montanha Mágica”, senão também em outras obras de
Mann, como “Doutor Fausto” e “José e Seus Irmãos”.
As referências que Webb emprega são de
tal importância – desde Sófocles até Eliade, de Nietzsche a Lévi-Strauss –, que
arrisco-me em afirmar de que se trata do mais exaustivo exame sobre o tema no
vasto “corpus” literário do autor
alemão.
Ótima leitura!
J.A.R. – H.C.
Referência:
WEBB, Eugene. A perigosa viagem rumo à
totalidade em Thomas Mann. In: __________. A
pomba escura: o sagrado e o secular na literatura moderna. Tradução de Hugo
Langone. São Paulo: É Realizações. 2012. p. 175-209.
Eugene Webb
(n. 1938)
A Perigosa Viagem Rumo à Totalidade em Thomas Mann
A Montanha
Mágica é, de acordo com a descrição de seu próprio autor, “um romance de
iniciação” [1]. A iniciação é um processo de amadurecimento espiritual que consiste
numa série de experiências pelas quais o indivíduo toma conhecimento dos
mistérios fundamentais da vida. O enredo do romance é visivelmente trivial – a estada
de sete anos de um jovem vindo de Hamburgo num sanatório suíço para
tuberculosos –, mas, ao longo de seu desenvolvimento, o protagonista Hans
Castorp penetra regiões da experiência interior que raramente são vislumbradas
por quem vive naquilo que o romance chama de “a planície”. Segundo Mircea Eliade,
o processo de iniciação “geralmente abrange uma revelação tripartira: a
revelação do sagrado, da morte e da sexualidade” [2]. Em seus sete anos de “inventariação”
no Sanatório Internacional Berghof, Hans conhece intimamente todas as três e
descobre como dar conta dos desafios impostos por cada uma.
O ponto de partida da jornada
espiritual de Hans é o mundo dessacralizado do final do século XIX, um mundo
materialmente próspero, mas espiritualmente subnutrido. Hans é um membro
típico, ou até mesmo arquetípico, desse mundo, e a fraqueza interior que dá
origem a seu retiro meditativo é na verdade uma espécie de cova redentora que a
vida impõe a alguém que está longe de ser especial, mas que é representativo
até mesmo ao ponto da mediocridade:
O homem não vive
somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também
da vida de sua época e de seus contemporâneos (...); mas, quando o elemento
impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação
exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela
como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio
à pergunta (...) pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda
atividade e todo esforço – então será inevitável (...) o efeito paralisador
desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma
e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um
homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas
necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para
quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes
se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans
Castorp não tinha nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser
considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso. (p. 32) [3]
O mundo descrito pelo romance é um
mundo que perdeu as raízes na tradição religiosa que, outrora, lhe oferecia ao
menos respostas incompletas acerca do sentido da vida do homem. Era grande parte,
os vestígios remanescentes dessa tradição estão ou completamente secularizados
ou espiritualmente moribundos. Quando Hans se prepara para comer, por exemplo,
ele esfrega uma mão na outra “como era seu hábito ao sentar-se à mesa, talvez
porque seus antepassados costumassem rezar antes de tomar a sopa” (p. 13 [23]); e, embora tanto os
hóspedes quanto a direção do sanatório se esforçassem ao máximo para “dignificar
e distinguir o domingo” (p. 110 [152]), eles só o fazem por meio de pratos
especiais, de apresentações musicais e de outras formas festivas puramente
seculares: “(...) o médico-chefe [dr. Behrens], em homenagem ao domingo, exibia
ao sexo forte o seu truque dos cordões de botina” (p. 112 [155]). Mesmo onde a
religião tradicional ainda vive, ela em geral se mostra definhada – como no
caso da enfermeira que “era evidentemente uma irmã protestante, sem verdadeira
dedicação ao ofício, curiosa e irritada de tanto tédio que pesava sobre ela”
(p. 10 [19]) – ou pervertida, como no caso tanto do sr. Naphta, o terrorista
jesuíta, quanto do miserável sr. Wehsal, com seu pietismo lúgubre e seu
fascínio por instrumentos de tortura.
É relevante que sejam a bacia e a bandeja
batismal de sua família – instrumentos de iniciação – os elementos da velha
tradição que significam algo ao Hans dos tempos de criança, tal como o fato de
o intérprete desse significado ser o avô do protagonista, sujeito que parecia estrangeiro
no mundo moderno, sendo “homem profundamente cristão, membro da Igreja
Reformista” (p. 23 [36]) e alguém desconfiado dos “ímpios” progressos
económicos (p. 24 [36]). A Hans, o verdadeiro eu do avô só parecia transparecer
quando ele trajava o hábito cerimonial de seu ofício como vereador – “trajes
dos cidadãos austeros e até piedosos de uma era desaparecida” (p. 25 [38]):
capa negra, punhos de renda, rufos engomados e “o tradicional chapéu de aba
larga”. A bacia e a bandeja não cumprem mais adequadamente a sua função, e
assim a verdadeira iniciação de Hans acaba por ser feita de um modo que
pareceria altamente questionável ao seu piedoso avô. Aderir a uma tradição
religiosa que não mais satisfaz seu objetivo seria um erro capaz de impedir uma
experiência religiosa autêntica e válida no presente – o tipo de erro cometido
pelos pais de Potifar em José e Seus
Irmãos [4], obra posterior de Mann –, e por isso Hans precisa deixar esses
elementos de seu passado na planície, com o restante de sua vida pregressa. No
entanto, o fascínio infantil pelo que aqueles objetos representavam é ao menos
um sinal de sua aptidão para a iniciação genuína, podendo até mesmo exercer
influência sobre sua receptividade posterior a ela. Eles remetiam a uma
tradição que o vinculava aos mistérios religiosos e a uma perspectiva diferente
daquela do materialismo burguês. Enquanto ele ouvia o avô falar sobre seus bis,
tris, tetravôs etc., aquele som parecia lhe reverberar nas profundezas do
tempo, num efeito sonoro que infelizmente se perdeu na tradução para a língua
inglesa – o alemão é “Ur-Ur-Ur-Ur” [5]: “sons obscuros de tumba e de tempos
soterrados, que todavia expressavam uma ligação piedosamente mantida entre o
presente – a sua própria vida – e aquele mundo submerso” (p. 22 [34]). Poderia ser
até mesmo para ouvir esse som, diz o narrador, que Hans tantas vezes pedia para
ver a bacia; e, quando enfim o escutava, “sensações devotas mesclavam-se com a
ideia da morte e da história”.
Como essa tradição deixou de funcionar
direito, e como não há qualquer outra que possa assumir seu lugar, Hans precisa
se submeter à iniciação de sete anos sem as diretrizes e o amparo normalmente proporcionados
pela tradição religiosa, o que torna sua aventura mais perigosa do que de
costume. Se a experiência deve ser necessariamente vital, os riscos que um
iniciado deve enfrentar nunca são apenas simbólicos, mas a tradição religiosa
da iniciação tem como uma de suas funções controlá-los e, em alguma medida,
substituí-los por perigos metafóricos, para que o iniciado possa se proteger da
verdadeira morte física ou da completa desintegração psicológica. Deixado por
conta própria, ele teria de enfrentá-los mais ou menos no escuro, e o resultado
bem-sucedido do processo não seria nada mais do que uma questão de sorte. O
próprio Hans afirma, na parte final do livro, que foi “o acaso – dize que foi o
acaso –” o que o conduziu por esse caminho de “pedagogia alquimístico-hermética
(...) rumo ao mais sublime” (p. 596 [818]) – embora talvez pudéssemos dizer que
ele também tivera a abrangente orientação do genius loci, do espírito da montanha mágica, da vida que lhe envia
uma série de armadilhas, epifanias e pedagogos: muitas vezes, fala-se dele como
uma Sorgenkind des Lebens, expressão
que sugere não apenas que ele necessita de cuidados – sua tradução é “delicada
criança da vida” –, mas também que a vida de fato o nutre e acalenta por meio
da doença que pauta seu processo de renascimento.
No ensaio “The Making of The Magic Mountain” [A Criação da Montanha
Mágica], Mann mostrou-se favorável àquela visão crítica do livro que o vê como
um paralelo moderno à busca do Santo Graal, vinculando “as provações
aterradoras e misteriosas” da Capela Perigosa aos ritos de iniciação [6]. Na lenda do Graal,
um “tolo ingênuo” chega, por meio de uma série de acidentes providenciais que
engloba pecados, à recuperação do símbolo da saúde, da completude e da santidade
– três termos que estão etimológica e conceitualmente relacionados e que são
capazes de livrar tanto a terra desolada quanto a comunidade de cavaleiros do
Graal da doença espiritual e física em que definham. Mann afirmou que, embora
não tivesse essa correspondência em mente ao escrever o livro – “(...) era, ao
mesmo tempo, algo maior e menor que o pensamento” –, ele mesmo não passava de
um “tolo ingênuo (...) guiado por uma tradição misteriosa”; além disso, “não
apenas o tolo herói, mas o próprio livro” buscava aquilo que o Graal
representa: “a ideia do ser humano, a concepção de uma humanidade futura que
suportou e sobreviveu ao conhecimento mais profundo da doença e da morte”. Mann
não chegou a definir qualquer objetivo além desse, mas o livro deixa claro, e
de formas que exigem certa investigação, que o homem completo produzido por
essa busca ou por essa iniciação é uma coincidentia
oppositorum consciente, unindo em si, num equilíbrio harmônico, todos os
contrários que compõem a vida e, assim, elevam-na a um plano sagrado proporcional
à “reverência diante do mistério humano” – reverência da qual, segundo Mann,
toda a humanidade depende.
Além da analogia com a procura do
Graal, temos ainda, na Montanha Mágica,
outra série de paralelos místicos – com Odisseu, por exemplo, mas também com
Eneias e Dante. Um que me parece particularmente esclarecedor, mas que, até
onde sei, ainda não foi discutido por nenhum crítico, é aquele estabelecido com
Édipo. Desde o desenvolvimento da teoria do complexo de Édipo por Freud, os críticos
têm se mostrado tão interessados no aspecto psicanalítico da história que
tendem a não dar muita atenção aos seus outros traços. Ela, porém, está longe
de se reduzir à psicanálise, e sua estrutura mais abrangente se aplica à
história de Hans Castorp de várias formas diferentes e interessantes.
Na mesma fala em que Hans diz a Clawdia
Chauchat, mulher pela qual permanece apaixonado ao longo de quase toda a estada
na montanha, que fora o “acaso” (Zufall)
aquilo que o levara “muito alto, até essas regiões geniais”, ele também lhe diz
que existem dois caminhos para a vida (de maneira significativa, não dois
caminhos na vida, mas para a vida [zum Leben]): “(...) um é o caminho
ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e este é o
caminho genial” (p. 596 [819]). Em “The
Making of The Magic Mountain”, Mann citou esse trecho e identificou o
segundo caminho com o caminho de iniciação que Hans atravessa. No original
alemão, a expressão final é der geniale
Weg [7]. A tradução que no ensaio o próprio Mann propõe para ela é “o caminho
do gênio” [8], versão que, se comparada com a da sra. Lowe-Porter [“caminho
espiritual”], provavelmente faz transparecer um pouco mais que esse é um
caminho de inspiração no qual se está sujeito a forças sobre-humanas – talvez
divinas, talvez demoníacas.
No Édipo
em Colono, de Sófocles, Édipo também fala de dois caminhos. O primeiro é
aquele da “realeza”, o caminho honrado da razão, do autocontrole e da
honestidade representado por Teseu, a quem Édipo descreve como “homem que não
traz consigo qualquer mancha do mal” [9] e a quem ele, corrompido como se
encontra, não se sente apto a tocar; o segundo é o do próprio Édipo, no qual “o
sofrimento e o tempo, / vasto tempo” [10], são os guias e o conduzem por meio do
mal a uma eventual apoteose. Em relação ao que Hans diz acerca da própria
carreira, é igualmente interessante o fato de também Édipo falar (em Édipo Rei) do acaso (Túxn) como força
que conduz sua vida: “(...) descrevo-me como filho da Fortuna, a benevolente fortuna.
(...) Ela é a mãe de que provenho; os meses, meus irmãos, a mim marcaram quando
pequeno e novamente agora, quando poderoso” [11]. De fato, o destino de Édipo provém de
diversas fontes, todas podendo ser chamadas de mãe à sua maneira – Tique,
Jocasta e a Esfinge.
Como Parsifal e Hans Castorp, também
Édipo é uma espécie de “tolo ingênuo” que depara seu destino por meio de uma
ousadia bem-intencionada, mas insensata. Em determinado momento, acusando- o de
ser incapaz de responder ao enigma da Esfinge, ele ridiculariza o profeta
Tirésias e se vangloria: “Eu solucionei o enigma valendo-me apenas de minha
inteligência” [12]; no entanto, como Tirésias é claramente representado como um verdadeiro
vidente, é bem provável que seu silêncio diante do enigma fosse fruto de sua prudência,
e não de ignorância. Tradicionalmente, dizem que o enigma solucionado por Édipo
foi: “Que criatura tem quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia e três à noite?”
Essa é uma descrição do ciclo da vida humana, no qual a estatura máxima do
homem é logo sucedida por uma queda. Quando Édipo soluciona a charada, a
Esfinge, suicidando-se, concede-lhe a vida descrita pelo enigma e, em certo
sentido, transforma-se na mãe da vida espiritual que ele leva como rei, como
violador de sua mãe física e como pária. Por meio do que podemos chamar de “tolice”,
Édipo soluciona o enigma e experimenta a vida humana em sua totalidade, ultrapassando
as alturas alcançadas por outros homens e descendo a profundezas que estão igualmente
além do ordinário.
A questão do que a Esfinge representa
na lenda é bastante complexa. Sófocles não descreve nem ela, nem seu encontro
com Édipo, fazendo tão somente alusão a algo que é de conhecimento prévio da
plateia. Originalmente, a Esfinge era uma figura da mitologia egípcia que
ostentava uma cabeça humana e um corpo de leão, representando provavelmente o
rei. Ela foi assimilada muito cedo pela mitologia grega, que fez dela uma
imagem feminina. Sua mãe supostamente foi Equidna (palavra grega para “víbora”),
figura metade mulher, metade serpente. Diferentes versões explicam a linhagem de
Equidna, mas uma que, se relacionada ao uso que Mann dá ao símbolo da Esfinge
na Montanha Mágica, se mostra
particularmente interessante é aquela que a representa como filha de Gaia e
Tártaro, isto é, da terra e do submundo. Equidna teria se unido a seu irmão Tifão
para dar origem à Esfinge [13], que nesse caso seria claramente um
símbolo da autoctonia, do nascimento da vida a partir das profundezas da
natureza. Parte animal e parte humana, a Esfinge representaria aquele lado do
homem que ainda tem vínculos com sua fonte sub-racional e, por meio de seu
aspecto ameaçador, representaria também o risco que o homem corre de ser
engolido mais uma vez pela escuridão da qual ele, talvez apenas em parte,
emergira. Recentemente, Claude Lévi-Strauss interpretou todo o mito de Édipo de
maneira semelhante, referindo-se a ele como uma “tentativa de escapar da
autoctonia” e demonstrando “a impossibilidade de ser bem-sucedido nessa tarefa”
[14]. A claudicância de Édipo – que dá origem a seu nome (“pés inchados”) – é,
segundo Lévi-Strauss, símbolo disso: sua exposição no monte Citerão com os pés
pregados no solo representa o afastamento perfeito – dele e do homem – de sua
origem na terra.
Se levarmos essa linha de interpretação
adiante e, assim, seguirmos uma direção capaz de esclarecer o recorrente uso do
tema do incesto em muitas obras de Mann [15], a união incestuosa de Édipo com Jocasta,
sua mãe física, torna-se um paralelo ou um microcosmo de sua relação com as
outras fontes de sua vida, a Esfinge e a terra – tal como se daria com a
semelhante origem da Esfinge a partir das uniões incestuosas de Equidna com
Ortros e Tifão e, em última análise, da terra com suas próprias profundezas.
Mann não tinha uma metafísica ou uma
cosmogonia cautelosamente desenvolvida, mas aquela que ainda assim possuía
tendia ao monismo autóctone que poderíamos esperar de sua leitura do mito de
Édipo. Se interpretada à luz dessa teoria, a relação da consciência espiritual
do homem com a natureza da qual ele nasce se torna uma relação que poderia ser
corretamente vista como uma união incestuosa da vida consigo mesma. Um pouco
dessa maneira de pensar pode ser vislumbrado na descrição do relacionamento entre
o homem e a natureza que Mann incluiu num ensaio sobre sua filosofia pessoal
publicado em I Believe, volume
organizado por Clifton Fadiman:
Por acaso falei
demais ao dizer que o ser humano é um grande mistério? De onde vem ele? O ser
humano nasce da natureza, da natureza animal, comportando-se inequivocamente de
acordo com sua espécie. Nele, porém, a natureza torna-se ciente de si. Ela
parece ter-lhe dado origem não apenas para fazer dele senhor da própria
existência – e essa é apenas uma expressão que indica algo cujo significado é
muito mais profundo. Nele ela se abre ao espiritual; ela se questiona, se
admira e se julga nele, como se estivesse num ser que, de uma só vez, é ela
própria e uma criatura de ordem superior. (...) Foi tendo em vista sua própria espiritualização
que ela deu origem ao homem [16].
Expressando essa ideia a partir das
palavras do “majestoso” Mynheer Peeperkorn – o amigo, pai espiritual e rival
sexual de Hans que, como personificação da “figura de um rei” (p. 590 [810]), é
uma combinação de Édipo, Laio e Esfinge –, o homem “é o sentimento de Deus.
Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio
do qual Deus realiza seu enlace com a vida despertada e ébria” (p. 603 [828]).
A contemplação da vida por parte do homem é a contemplação da vida por parte da
própria vida; do mesmo modo, seu amor pela vida é o amor que o espírito sente
por suas próprias profundezas trevosas, pelo abismo do qual ela nasce.
Essa união entre a vida como espírito e
a vida como natureza é, de acordo com uma expressão recorrente na Montanha Mágica, uma atividade “muito
problemática”. Ela é uma autointoxicação narcisista capaz de afastar o indivíduo
do mundo do trabalho e da organização política – de modo geral, da vida da
razão e do serviço à comunidade. Não é surpreendente que o racionalista
Settembrini, guia pedagógico de Hans, julgue “politicamente suspeito” o gosto
musical dos alemães e sinta aversão pela referência do católico Naphta ao
terceiro estágio de contemplação mística de São Bernardo de Claraval, visto
como “‘leito de repouso’ (...), lugar da coabitação do amante com a amada” (p.
376 [513-14]).
A Montanha
Mágica faz diversas alusões à Esfinge. Uma delas, aquela de Mynheer
Peeperkorn, acabou de ser mencionada, mas por ser ele a principal coincidentia oppositorum da obra,
devemos esperar que ele una em si essa figura com muitas outras, e não que ela seja
o seu aspecto mais importante. O personagem mais próximo da figura esfíngica é
a felina Clawdia Chauchat, que, a exemplo da Esfinge, tem descendência oriental
(russa, para sermos mais exatos). No livro, tudo o que vem do Oriente simboliza
o irracional e o caótico
e induz à desintegração moral e
psicológica, ao mesmo tempo que, por meio da obsessão que suscita, tende a
atrair o que seria um intelecto árido e desarraigado a uma união vivificante
com o lado mais sombrio da vida, o emocional e o místico. Certo dia, enquanto Hans
e Joachim Ziemssen, seu primo, visitam o apartamento do dr. Behrens e discutem
os traços asiáticos da sra. Chauchat – as maçãs de seu rosto e seus olhos
orientais –, Behrens diz: “É o que o senhor pensa! (...) É um verdadeiro
quebra-cabeça” (p. 257). Em seguida,
usando um moedor “de origem indiana ou
persa” que lhe fora dado por uma princesa egípcia e que trazia estampadas
imagens obscenas, Behrens prepara um pouco de café para os jovens e lhes
oferece alguns de seus cigarros especiais, outro presente da mesma mulher: “Hans
Castorp serviu-se e fumou o cigarro extraordinariamente grosso e comprido,
adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de fato era maravilhoso” (p.
262 [358-59]).
Tabaco, café e várias outras drogas são
empregados no livro como símbolos do lado sedutor e perigoso da natureza.
Behrens, no início dessa conversa, falava dos deleites dos charutos e da
melancolia potencialmente letal que o abuso do tabaco pode suscitar. É
significativo que, mais para o fim da obra, quando Hans já sucumbira por completo
à influência dissolutiva da atmosfera da montanha mágica – e isso ao ponto de
não mais carregar um relógio ou um calendário –, ele também deixe de encomendar
os charutos Maria Mancini, marca originária de Bremen, para adotar em seu lugar
um produto local: Rutlischwur (p. 708
[976]). Se relacionada aos cigarros da princesa egípcia que o diálogo sobre
Clawdia Chauchat menciona, a referência à imagem da Esfinge se torna um sinal do
possível perigo que acompanha o encantamento dessa mulher esfíngica – em especial
se tal passagem for lida à luz de uma descrição posterior, e mais extensa, da
princesa:
Recentemente chegara
até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao
conselheiro aquele notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma
esfinge; era uma personagem sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e
enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e, exceção feita das refeições
principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava casaco de homem e calças
bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus
favores mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia
romena, que se chamava simplesmente Landauer (...). (p. 548 [749])
Como poderíamos dizer, existem coincidentiae oppositorum e coincidentiae oppositorum, algumas das
quais são “muito problemáticas”.
As maneiras e o estilo de vida de
Clawdia são completamente diferentes daqueles que Hans aprendera a valorizar em
seu lar alemão civilizado e bürgerlich.
Quando ele a nota pela primeira vez, é por causa do ruído que ela produz ao
deixar bater a porta da sala de jantar do sanatório, prática que acaba se
mostrando comum e que o repele, a exemplo do que se dá com sua negligência
geral e com sua má postura à mesa. No entanto, essas mesmas qualidades também o
atraem; como afirma a srta. Englehart, com quem ele secretamente partilha de
seu fascínio por Clawdia: “Todas as mulheres russas têm no seu modo de ser
qualquer coisa de liberdade e desembaraço” (p. 137 [188]). De fato, é a atração
que sente por Clawdia que, num momento crucial, se torna fator decisivo para
sua permanência no sanatório. Ele fora para lá apenas no intuito de visitar seu
primo, quando então pegou um resfriado e decidiu se consultar com o dr. Behrens.
Sem o exame, que revelaria o que Behrens chama de “lugar úmido” (p. 181 [249]),
Hans teria voltado para casa ao fim das três semanas planejadas. Então, quando
ele está prestes a ser examinado e, sentindo-se melhor, cogita cancelar o
compromisso, Clawdia, com quem o protagonista jamais falara, lança-lhe um olhar
esperançoso, como se soubesse da consulta que se aproximava: “Pois, quando os olhos
falam, tratam-nos por ‘você’, ainda que a boca não tenha sequer empregado a
terceira pessoa” (p. 176 [241]). Esse olhar, diz o narrador, “transtornara e
enchera de espanto o âmago do coração de Hans Castorp”. Como consequência, sua
ideia de faltar ao exame se esvai e se transforma em “puro tédio dos mais
repulsivos”, e assim ele segue “vacilando interiormente, se bem que de passo
firme”, para a sala de consultas.
O tipo de perigo em que a influência de
Clawdia pode culminar caso ele se entregue completamente a ela é sugerido, de
maneira mais clara, pelas próprias palavras que a personagem dirige a Hans na
festa de carnaval realizada na noite anterior, antes da primeira saída dela do
sanatório. Aquela é a primeira conversa entre ambos, e para travá-la Hans
precisa aproveitar tanto a licenciosidade geral quanto o abandono das normas
civilizacionais proporcionados por uma ocasião como aquela – o que é
simbolizado por seu afastamento de Settembrini, que lhe avisa que o que ele
está fazendo é loucura; pelo emprego de uma língua estrangeira no diálogo; e
pelo uso da forma tu, íntima. Quando ele pergunta a Clawdia o que ela acha da moral,
ela responde:
La morale? (...) il nous semble [ela está se
referindo a conversas travadas com um amigo russo] quil faudrait chercher la morale non dans la vertu, cest-a-dire dans
la raison, la discipline, les bonnes moeurs, l’honnetete, – mais plutot dans le
contraire, je vetix dire: dans le peche, em s’abandonnant au danger, a ce qui
est nuisible, a ce qui nous consume. II nous semble qu’il est plus moral de se
perdre et meme de se laisser dépérir que de se conserver. (p. 340 [465])’’ [17]
[A moral? (...)
parece-nos necessário buscar o ético não na virtude, isto é, na razão, na
disciplina, no bom comportamento, na honestidade, mas em seus opostos – quer
dizer, no pecado, no entregar-se ao perigo, ao que é nocivo, ao que nos
consome. Parece-nos mais moral perder-se, e até mesmo deixar-se definhar, do
que preservar-se].
Aqui ela está ecoando, claro, vários
ditos do Novo Testamento sobre a necessidade de render-se ao crescimento
espiritual e sobre o fato de que apenas aquilo que se permite morrer pode dar frutos
ou alcançar a verdadeira vida; no entanto, existem diferentes maneiras de se
submeter ao processo da morte metafórica, c algumas delas conduzem apenas à
dissolução. O caminho a que Clawdia convida Hans é potencialmente fecundo e
potencialmente destrutivo; ao segui-lo, ele deve descobrir como atravessar um
labirinto no qual seria muito fácil se perder para sempre. Hans está pouco
preparado para percorrê-lo sozinho, mas a vida felizmente envia à sua Sorgenkind vários tipos de ajuda que
bastam para salvá-lo e para transformar essas experiências – tanto para Hans
quanto para o leitor – numa história de crescimento e iluminação.
No momento do diálogo, Hans já estivera
caminhando por alguns meses no caminho que Clawdia descreve. Durante sua
conversa anterior com Behrens, os dois cavalheiros haviam travado, ao mesmo tempo
que fumavam os cigarros da Esfinge, uma discussão sobre a fisiologia da carne e
da vida orgânica. Behrens disse a Hans e seu primo que o corpo é constituído
basicamente de água e que tende a dissolver-se na informidade. Essa tendência
encontra sua satisfação na morte – “A gente se esparrama, por assim dizer. Não
se esqueça de toda aquela água!” –, mas até mesmo durante a vida a dissolução é
constante: “Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular.
Trata-se de uma destruction organique”
(p. 266 [364]). Na época, Hans estivera interessado pelo tema em virtude do que
chamou de “a plasticidade das formas femininas” (p. 261 [357]) – de uma forma
feminina em particular. Esse fascínio, porém, levou-o ao estudo do orgânico
como um todo, de modo a fazê-lo comprar livros médicos e a ler “com insistente
interesse o que os livros diziam sobre a vida e o seu sagrado e impuro mistério”
(p. 274 [375]). Essa é uma mudança significativa de sua conduta anterior,
exemplificada pela resposta dada a Behrens no dia em que ele e o primo foram
saudados pelo doutor com uma pergunta sobre o funcionamento de sua “boa digestão”:
“‘Boa digestão!’ Horrível! (...) Mas ‘digestão’ é termo puramente fisiológico,
e fazer votos pelo seu desenvolvimento feliz parece-me pura blasfêmia” (p. 174
[239-40]) [18]. É claro que, à época, Hans era incapaz de notar o tom irônico da
observação de Behrens; no entanto, é típico da ironia manniana que, após negar
algo, ela depois o reafirme de maneira qualificada e reconhecendo a ambiguidade
do que está sendo asseverado [19]. Desse modo, ao sentar-se em sua sacada
e divagar com os estudos médicos, Hans passa a perceber os mistérios da carne
como “sagrados” e “impuros”, simultaneamente. Ele também estendeu sua
observação à vida como um todo e ao universo: “E a vida, por sua vez? Não
passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que
se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade,
uma excrescência causada por uma irritação do imaterial?” (p. 285-86 [390]).
Então, numa visão onírica, ele vê a própria vida tomar a forma de uma carne
feminina:
Via ele a imagem da
vida, a estrutura de seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a
carne. (...) A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele, sobre ele. Hans
Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma
coisa quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele,
descendo de volúpia e de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses
braços, ali onde a pele granulosa, tensa sobre o tricípite era de esquisita
frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo. (p. 286 [391])
E em virtude dessa preparação que ele,
ao finalmente travar conversa com Clawdia, se mostra capaz de compreender o que
ela lhe diz sobre la morale e de
observar, por sua vez, que le corps,
Vamour, la mort, ces trois ne font qu’un [“o corpo, o amor, a morte, os
três não passam de um”] (p. 342 [468]).
Como Clawdia parte no dia seguinte,
logo após a única noite que eles passam juntos, Hans não tem como explorar
ainda mais o caminho a que a intimidade com ela conduziria. No entanto, Clawdia
servira como introdução a esse aspecto do universo que ostenta o rosto dela em
suas fantasias, e até mesmo em sua ausência ele encontra várias oportunidades
para refletir sobre isso e lutar contra seus perigos. Ele pondera, por exemplo,
sobre o mistério do tempo: “(...) visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo
o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma
transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade (...)”
(p. 344 [470]). Essa é uma linha de pensamento potencialmente perigosa, pois,
conduzindo a uma visão do tempo como mero
“repouso” e “imobilidade”, poderia culminar num se laisser dépérir fatal. Como simples reflexão, ela poderia parecer
abstrata demais para ser encarada como verdadeiramente arriscada, mas, num dos
principais capítulos do livro – o capítulo “Neve” –, a tentação que ela
contempla vem representada com uma seriedade mortal.
Nele, Hans, que passara a praticar
esqui de fundo, percorre uma paisagem que parece a própria encarnação da morte:
“Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o ‘nada’ brumoso em cuja direção
Hans Castorp avançava penosamente (...)” (p. 478 [652]). A “absoluta simetria”
e a “regularidade glacial” dos flocos de neve são feitas da mesma água que é a “substância
inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem”; no
entanto, em sua forma fria e precisa, elas estão para a água como o repouso e a
imobilidade estão para o tempo, sendo descritas como algo “inquietante (...)
antiorgânico (...) hostil à vida” (p. 480 [655]). Toda a aventura é um exemplo
do verdadeiro perigo que a influência de Clawdia pode causar. A medida que ele
prossegue, deixando para trás o sr. Settembrini, porta-voz da razão e da
responsabilidade, Hans diz a si mesmo, citando Naphta “num latim de espírito
nada humanístico”: Praeterit figura hujus
mundi [“A aparência deste mundo é passageira”] (p. 478 [652]). Então, ao
notar a luz azul refletida pelos buracos na neve, ele é levado a pensar no
fascínio que o atrai: “(...) uma luz que o atraía misteriosamente,
recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que
o sr. Settembrini, do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente
de ‘fendas tártaras’ e de ‘olhos de lobo de estepe’ (...)” (p. 479 [652-53]).
Hans adentra mais e mais o “silêncio selvagem” e a “escuridão (...) crescente”,
quando então é acometido pelo verdadeiro medo e percebe que “até agora se
empenhara secretamente em perder o rumo” (p. 481 [656]). No entanto, mesmo
depois de descobrir isso, ele ainda se sente instigado pelo sentimento de “desafio”
e continua sua aventura imprudentemente: “Pode ser que essa palavra encerre
sentimentos censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante
que lhe corresponde ande acompanhada de muito medo sincero”. Quando Hans
finalmente decide retornar, encontra uma tempestade que elimina quase toda a
sua visibilidade e que o deixa irremediavelmente perdido. Ele percebe que, se
optar por sentar-se, será “coberto por toda essa simetria hexagonal” (p. 484
[660]), mas a tentação é grande. É apenas contra uma poderosa resistência
interior que ele segue adiante, e mesmo aí seu percurso apenas o leva de volta para
onde estava, forçando-o então a perceber que, enquanto vagueia “em círculo,
(...) tal qual a órbita falaz do ano” (p. 487 [664]), corre o risco iminente de
ser devorado por sua Esfinge. Por fim, ele se abriga num galpão, estando tão
cansado que passa diretamente do estado vigilante ao onírico.
Seu sonho o transporta a um cenário
clássico, um parque composto de árvores sombrosas e chuva ensolarada, seguida
por um arco-íris que parece música. Há pessoas por toda parte, “filhos do Sol e
do mar (...), uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial” (p. 491 [670-71]).
Alguns adestram cavalos, outros dançam ao som da música que sai da flauta
pastoril de uma menina. Hans se deixa impressionar pela beleza daquela cena,
ficando especialmente comovido com “as considerações iguais para todos”, com o “respeito
natural (...) que demonstravam aos outros” e com a união de dignidade e leveza,
uma “seriedade nada sombria” (p. 492 [672]). A postura ostentada por aquelas
pessoas tem até um “lado cerimonioso”: quando os jovens passam por uma mãe que
está a amamentar o filho, eles cruzam os braços “num gesto rápido e formal” e
se inclinam; do mesmo modo, as moças esboçam “uma genuflexão, semelhante àquela
com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor” (p. 493 [673]).
Ali perto encontra-se um antigo templo.
Quando Hans o adentra, vê a estátua de duas figuras femininas, mãe e filha: a
mais velha, “muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas”, abraça a
mais nova “maternalmente” (p. 494 [674]). Deixando para trás as figuras
pétreas, o protagonista descobre no santuário uma cena que o enche de “pavor
gélido”: “Duas mulheres grisalhas (...) esquartejavam uma criancinha”,
simbolizando assim aquela destruction organique
que se apresenta como complemento necessário à fecundidade da vida. Hans então
acorda e se vê novamente na neve, tendo a tempestade já se abrandado.
Nesse momento do livro, o sonho é o que
a vida revelou de mais importante à sua Sorgenkind.
Há mais por vir durante a obra, mas a compreensão, por parte de Hans, do
significado que lhe é revelado se torna a base de sua capacidade de abrir
caminho entre a Cila e a Caríbdis representadas por Settembrini e Naphta, tal
como de compreender suas experiências vindouras. Refletindo sobre essa
revelação, Hans passa a encará-la como a exposição das profundezas não apenas
de sua alma, mas também da alma do mundo da qual ele participa: “Sou tentado a
dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima
e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és
mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti (...) com coisas
que sempre lhe enchem os olhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua
felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta” (p. 495 [675-76]).
Partindo do necessário vínculo que ele vê entre a felicidade e a morte, assim
como de seu apreço pela cortesia e pela amabilidade advindas da “recordação
silenciosa daquela atrocidade” por parte dos “filhos do Sol”, ele chega à
conclusão de que é preciso conservar equilibradas na mente a realidade
existencial da morte e a beleza da vida, reverenciando ambas, mas jurando
primordial lealdade à vida: “Em
consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum
poder sobre os seus pensamentos” (p. 496-97 [678]). Hans percebe que
Settembrini, que “não deixa de tocar a corneta da razão”, e Naphta, que agrupa Deus
e o Diabo numa única bagunça, fogem da norma propriamente compassiva e
religiosa: “(...) e a posição do Homo Dei
acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo
inconsistente” (p. 496 [677]). O segredo que Hans agora compreende é o de que “só
ele [o amor], e não a razão, é mais forte do que ela [a morte]”.
Por mais importante que essa descoberta
lhe pareça, contudo, ela ainda é basicamente uma visão e, portanto, algo
bastante abstrato. Para assimilá-la por completo à sua vida concreta, Hans
precisará encarar novos desafios e colocar em prática o amor que agora só
contempla teoricamente. No entanto, quando ele retorna ao sanatório – e embora
pense “agora a possuo. Meu sonho ma revelou com tanta nitidez, que sempre a
guardarei na memória” (p. 497 [678]) –, os braços do costume o envolvem e,
mesmo sem se esvair por completo, aquilo que ele vira segue o mesmo caminho da
maioria dos sonhos: “Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do
Berghof circundava-o com sua aura acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans
Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava em vias de apagar-se. O
que pensara, já não o compreendia naquela mesma noite” (p. 498 [680]).
A próxima revelação importante chega a
Hans não de forma onírica, mas encarnada na figura de Mynheer Peeperkorn, velho
holandês de Java. Muitos críticos de Mann se mostraram incapazes de reconhecer,
toda a relevância de Peeperkorn, mas seu papel é na verdade crucial para a
obra; ele é a corporificação viva – a mais clara que Hans encontrará – do
mistério sagrado que está no seio do universo do livro, a encarnação mesma da
totalidade e, de acordo com a forma que Mann desenvolve, também da santidade [20].
No início, a chegada de Peeperkorn é
causa de grande constrangimento e desgosto para Hans, uma vez que ele chega
como companhia de Clawdia Chauchat, por cujo retorno Hans ansiava como se ambos
fossem dar continuidade ao relacionamento iniciado na noite anterior à sua
partida. Agora ele a encontra na posse de outro homem, um homem que ele tenta
ao máximo desprezar à maneira dos rivais amorosos. Isso, porém, não lhe é
exatamente simples. As coisas ficam um pouco mais fáceis por causa da
incoerência discursiva do holandês – como em: “Senhoras e senhores. Muito bem.
Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não perder de vista em nenhum
momento, que... Nada mais sobre este ponto... (p. 551 [754]) –, mas a
personalidade por trás de suas palavras é tão sensivelmente poderosa que até mesmo
Hans deve se deixar impressionar. Um exemplo do que a força da personalidade de
Peeperkorn pode provocar e das qualidades singulares que ele leva ao sanatório
pode ser encontrado num incidente que ocorre no início de sua estada. Durante o
café da manhã, ele acena para uma das garçonetes, uma anã que deixara Hans
bastante assustado em sua primeira refeição e com quem ninguém jamais falara, exceto
de maneira impessoal. Peeperkorn deseja fazer seu pedido, mas antes a trata
como uma pessoa:
Minha filha! (...)
Você é pequena. Não há de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e
dou graças a Deus por você ser assim como é, e devido à sua baixa altura que é
tão característica... Pois então! O que desejo da sua parte também é pequeno,
pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama? (p. 552 [755])
“Hesitando e sorrindo”, ela responde
que seu nome é Emerentia – em latim, “merecedora”, palavra usada especialmente
para referir- -se a alguém que cumpriu seu tempo de serviço. Até esse momento, ela
desempenhara um papel completamente silencioso, quando então Peeperkorn a
liberta com sua pergunta e a conduz até a comunidade humana como uma pessoa
reconhecida.
Aquilo mesmo que ele pede para a anã
desencantada é um dos símbolos centrais da obra: “Pão, Rencinha, mas não pão
cozido. (...) Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão claro (...).
Uma genebrinha, querida!” Quando ela lhe traz o “pão” num cálice que transbordava,
ele parece “mastigar [o líquido] rapidamente” (p. 553 [756]) antes de o
engolir. A junção do sólido e do líquido nesse “pão” úmido faz dele um símbolo
da vida encarnada descrita pelo livro, uma instável combinação entre água e
forma; do mesmo modo, seu tratamento como o “pão de Deus” transforma-o num
sacramento – embora este seja um sacramento não apenas do Deus cristão, mas também
do deus da natureza e do vinho: Dionísio [21].
As implicações desse símbolo são
desenvolvidas nos episódios que se seguem, quando Peeperkorn mostra a Hans, de
quem logo se tornou muito próximo, “as coisas singelas, grandes, que têm sua origem
em Deus” (p. 564 [773]) e explica-lhe, por meio de uma expressão muito
repetida, que a grandeza da qual ele está falando é o “sagrado! Sagrado em
todos os aspectos, no sentido cristão como no pagão!” (p. 570 [783]). Na ceia
da meia-noite em que ele e Hans se tornam amigos, Peeperkorn se compara ao
Cristo no Getsêmani e, depois, substitui essa postura pela postura de um
sacerdote pagão: “Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os
braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como
numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda
vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial” (p. 570 [781]). Com uma
“covinha de sibarita” em sua face, ele afirma “que está próxima a hora” e
solicita a carta de vinhos.
Em conversa com Settembrini – que, de
uma forma que não lhe era característica, censurara Hans por tornar-se tão
amigo de seu rival sexual –, Hans descreve o magnetismo de Peeperkorn como o
efeito da união entre a presença física e a presença espiritual:
Não é tampouco por
causa das suas qualidades físicas. E, todavia, não há dúvida de que fatores
físicos desempenham um certo papel no seu caso; não no sentido da força dos
braços, senão num outro, místico. Cada vez que o corpo desempenha um papel,
entra-se no terreno do místico. O elemento corporal confunde-se então com o espiritual,
e vice-versa, de maneira que é impossível distingui-los. Mas nota-se o efeito,
o dinamismo, e já nos achamos metidos num chinelo. Para explicar esse fato,
dispomos de uma única palavra: personalidade. (p. 583 [800])
E ele de fato os coloca no chinelo com
a sua chegada – em especial Settembrini e Naphta, que se valiam de sua erudição
e eloquência para dominar toda e qualquer companhia. Peeperkorn é o equilíbrio vivo
de seus extremos, de modo que, ao discutirem em sua presença, o debate dos dois
se esvai, e suas perspectivas convergem naquela pessoa: “(...) nela [as coisas]
pareciam anuladas a todos os que o viam; era isto e aquilo, um e outro” (p. 590
[810]). Vendo o colapso da loquacidade deles diante daquele “zero majestoso”,
Hans percebe – numa descoberta e tanto para um “tagarela”, que é como
Peeperkorn em determinado momento o chama (p. 573 [785]) – que “se deve expressar
um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo” (p.
590 [809-10]). Quando Settembrini e Naphta tentam, em vão, manter o debate
vivo, Peeperkorn lhes recorda: “Isto é... Isto são... Nesse caso,
manifesta-se... O sacramento da volúpia”; em seguida, fala do ar montanhesco
que respiram: “Não deveríamos aspirá-lo, só para soltá-lo em forma de...
Insisto, senhores, não deveríamos fazer isso. É um insulto. (...) E o nosso
peito que o respira deveria louvar irrestritamente” (p. 591 [810-12]).
Existem outras formas pelas quais
Peeperkorn media extremos e une os vários opostos da vida. Até mesmo seu modo
de se vestir – um “colete de peito alto” clerical e uma sobrecasaca xadrez (p.
550 [752]) – sugere a união do sagrado e do secular, e seu passado como agricultor
holandês das índias Orientais representa ainda uma fecunda junção do Oriente
com o Ocidente. Quando somos apresentados a ele, lemos que ele poderia parecer
incolor se comparado à princesa lésbica e travestida dos cigarros esfíngicos
(p. 548), mas no final das contas ele é tudo o que ela é, só que numa forma que
não é perversa. A princesa egípcia une, por exemplo, as características de
ambos os sexos, mas para tanto deve experimentar a inversão de sua identidade sexual
natural. Peeperkorn, por sua vez, tem uma personalidade completamente masculina
ao mesmo tempo que aprecia todo o lado feminino da vida. Seu característico
gesto manual – “(...) sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar,
para formar um círculo, ao passo que três outros dedos se esticavam para o alto”
(p. 552 [755]) – parece simbolizar a união do masculino e do feminino, em
especial se tivermos em mente as associações sexuais da lança e do cálice na
lenda do Santo Graal, dos quais o próprio Peeperkorn é a verdadeira encarnação.
O contraste entre Peeperkorn e a
princesa egípcia é importante porque revela os perigos do caminho rumo à
totalidade e porque mostra ser necessária uma sabedoria superior à racionalista
para que eles sejam vencidos com segurança e, assim, conduzam a vida a um plano
sagrado, e não demoníaco. Settembrini é uma pessoa bastante limitada e, por
isso, permanece sempre unilateral; no entanto, ele está alertando Hans para os
verdadeiros perigos quando lhe diz, em determinado momento, que o mundo do
sanatório é uma “ilha de Circe”: “O senhor não é bastante [Odisseu] para
habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se
apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!”
(p. 247 [338]). Poderíamos dizer que Hans deu o primeiro passo rumo ao poder de
Circe quando deixou a srta. von Mylendonck, enfermeira-chefe, vender-lhe um
termômetro, versão da varinha da feiticeira. Em seguida, ele dá outro passo ao
deixar que os olhos de Clawdia o motivem a encarar o exame físico e ainda
outros quando começa a chamar Clawdia de tu,
a buscar suas opiniões sobre la morale
e, então, ao deixar-se perder, ainda que inconscientemente, na neve.
Settembrini não menciona, porém, que o encontro com Circe terminara muitíssimo
bem para Odisseu; ele desfrutou de grande prazer com a deusa na cama e também
conseguiu uma informação – sobre a necessidade de visitar o reino dos mortos – que
favoreceu sua viagem para casa. Hans pode não ser, como diz Settembrini,
bastante Odisseu, mas Peeperkorn o é, sendo portanto capaz de ensinar-lhe
coisas que lhe possibilitam desempenhar esse papel de maneira mais adequada do
que desempenharia se deixado por conta própria.
Peeperkorn diz a Hans, por exemplo,
enquanto faz seu característico gesto com “o anel da precisão e os dedos
lanciformes”, que todas as substâncias são potencialmente perigosas e
potencialmente benéficas: “(...) quanto às substâncias químicas, a verdade era
esta: todas elas eram ao mesmo tempo medicamentos e venenos; a farmacologia e a
toxicologia eram uma e mesma coisa; os doentes se curavam por meio de tóxicos,
e o que era considerado como portador da vida podia, sob certas circunstâncias,
produzir um espasmo que matava (...)” (p. 578 [792]). O importante é saber como
usá-las. Peeperkorn utiliza tanto quinina, “um veneno medicativo”, quanto
álcool e café, mas é relevante que, ao contrário de Hans e Clawdia, ele não
fume: “Pelo que se podia deduzir das suas explanações, o consumo do tabaco já fazia
parte de gozos por demais refinados, cujo cultivo representava um agravo à
majestade das dádivas simples da vida, dessas dádivas e funções que a nossa
sensibilidade mal e mal conseguia apreciar devidamente” (p. 564 [772-73]). Numa
conversa posterior, ele explica ainda mais o que quer dizer, afirmando que as
dádivas e funções da vida revelam ao homem “seu dever religioso de sentir” e
que “o homem que fracasse quanto ao sentimento, aviltaria a Deus” (p. 603 [828]).
É aqui que ele diz a Hans que o homem é o sentimento de Deus e o órgão pelo
qual Deus realiza seu enlace com a vida. A vida que representa o ponto de união
entre o espírito e a carne pode ser um veneno ou um elixir; utilizá-la
adequadamente é transubstanciar tanto o amante quanto o amado num modo sagrado
de existência.
O fato de Clawdia ainda ter um aspecto
circeano potencialmente perigoso fica claro, durante o episódio de Peeperkorn,
no momento em que ela faz cara feia para a amizade de Hans com seu amante. Parte
dela gostaria que ele sentisse raiva de seu rival e permanecesse tão somente
dela. Em certa medida, Hans de fato nutre esse sentimento, mas ceder a ele o
privaria das grandes vantagens que a amizade com Peeperkorn lhe oferece e o
reduziria a uma unilateralidade praticamente bestial na paixão sexual. Do mesmo
modo, isso também transformaria sua relação com Clawdia e Peeperkorn, que chega
a chamá-lo de “meu filho”, numa versão do triângulo edipiano de Freud. Hans,
porém, está pronto para fazer frente à tentação. Em especial por meio do sonho
na neve, a vida lhe ensinara muitas lições importantes durante a ausência de
Clawdia, e é significativo que na primeira conversa dos dois após seu retorno
ele repita a fórmula que ela utilizara ao falar sobre como é “plus morale de se perdre et mêtne de se
laisser dépérir, que de se conserver”. Dessa vez, porém, ele emprega sua
própria linguagem e a embebe num novo significado que purifica sua tendência à
dissolução moral: “É, aliás, mais moral perder-se e perecer do que preservar-se”
(p. 558 [764]) – sendo essa, dessa vez, uma referência ao fato de seu primo ter
arriscado a vida para voltar à planície e ao seu regimento [22].
Como agora é capaz de encontrar sua
Circe sem deixar que ela o reduza à bestialidade, Hans mostra-se apto a
beneficiar-se da outra face do papel dela como corporificação do lado passional
da vida: ela ama Peeperkorn e, apesar da vontade de ver Hans odiando-o, convida
o protagonista a participar do amor que sente por ele. De fato, após um pouco
de cara feia, ela revela que fora por isso que levara Peeperkorn de volta ao
Berghof: “Queres que mantenhamos amizade? Que façamos uma aliança a favor dele,
assim como normalmente se faz contra alguém? Queres dar-me a tua mão para selar
isso? (...) Enfin, se te interessa saber,
talvez seja por causa disso que voltei para cá com ele...” (p. 598-99 [822]).
Ela agora é capaz de partilhar abertamente o amor que sente por ele porque
percebe que Hans aprecia tanto o que ela é quanto o que Peeperkorn é; segundo
afirma: “És inteligente” (p. 597 [820]). O que ele compreende talvez esteja
ainda além do que ela percebe. Como Odisseu diante de Circe, Hans está pronto
para apreciá-la e tudo o que ela representa e valoriza, ao mesmo tempo que
mostra o seu valor e, assim, mantém o equilíbrio da norma compassiva. Quando ele
lhe fala sobre os dois caminhos da vida – o “ordinário, direto e honrado”,
tomado por seu primo, e o seu, der
geniale Weg –, ela afirma que o que ele diz soa “humano” [mänschlich [23], em sua pronúncia] e bom
(p. 596 [819]); no entanto, é significativo que ele acrescente isto momentos depois,
tratando da ideia do menschlich:
Tu gostas dessa
palavra, que arrastas com uma ênfase fanática. Sempre me interessa ouvi-la
pronunciada pela tua boca. Meu primo Joachim detestava-a por motivos militares.
Dizia que ela significava indolência e relaxamento geral, e quando a considero
sob esse aspecto, como um irrestrito guazzabuglio
de tolerância, também eu não posso deixar de fazer algumas objeções; isso
admito francamente. Mas quando ela expressa liberdade, genialidade [Genialität [24]], bondade, é uma
grande coisa, e, segundo me parece, não faz mal que a empreguemos a favor de
nossa conversa sobre Peeperkorn (...). (p. 598 [821])
No fim das contas, não é com um aperto
de mãos que eles selam seu pacto de amizade em prol do homem que amam – mit dir für ihn, como afirma Hans: “com
você por ele” [25] –, e sim com um beijo que ela instiga e ele aceita: “Era um daqueles
beijos russos, do tipo dos que se trocam nesse vasto país cheio de alma, nas
mais importantes festas cristãs, como uma consagração do amor” (p. 599 [822]).
Em seguida, o narrador comenta sobre a relevante ambiguidade dos sentimentos expressos
por esse beijo:
Não será bom e grande
o fato de a língua não possuir senão uma única palavra para tudo quanto aquilo
pode abranger, desde o sentimento mais piedoso até o desejo mais carnal? O
equívoco torna-se, pois, plenamente unívoco, uma vez que o amor não pode ser
separado do corpo, nem sequer no auge da piedade, como não é ímpio nem nos
momentos de carnalidade extrema. (...) Decerto há caritas até na paixão mais furiosa e na paixão mais reverente. (p.
599 [823])
Um amor que não buscasse mais do que
seu próprio interesse – ao qual o lado negativo do fascínio de Hans por Clawdia
talvez o tivesse tentado – conduziria apenas ao ódio; no entanto, equilibrado como
aqui se apresenta e dotado de uma caritas
dadivosa, o amor de Hans e Clawdia é capaz de alcançar seu ponto mais alto.
Sendo ao mesmo tempo paixão e amizade, ele une os dois não à mercê da morte – a
união entre le corps, l’amour, la mort
da qual falara Hans na festa de carnaval –, mas na devoção à vida. Ao resistir
ao lado perigoso de sua Circe, Hans não apenas impediu que ele próprio fosse
reduzido à brutalidade, mas também a libertou da necessidade de ser apenas uma
sedutora. Em vez disso, ela se torna aquela que Settembrini ironicamente
dissera ser antes de seu retorno (p. 519 [709]): a “Beatriz” de Hans.
Por fim, a aliança que Hans estabelece
com Clawdia em prol de Peeperkorn é coroada com uma aliança complementar entre
Hans e ele em prol dela. Peeperkorn supõe que Hans estivera apaixonado por
Clawdia e, por isso, ele mesmo fora causa de sofrimento para o protagonista. Ao
lhe perguntar se isso é verdade, Peeperkorn tem suas suspeitas confirmadas por
Hans, que acrescenta, porém, que esse sofrimento “não pode ser separado” do “enorme
privilégio de conhecê-lo” (p. 609 [837]) e que ele não o encarou como um
insulto: “quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clawdia, nem
tampouco do senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da
minha vida e do meu destino” (p. 610 [838]). Peeperkorn, por sua vez, propõe
que eles se tornem irmãos em vez de rivais, adotando o “tu”: “A aliança que não
lhe posso dar com a arma, devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a
forma de uma aliança fraternal, (...) o que nós faremos no sentimento comum por
alguém” (p. 611 [840]). Esse “alguém” por quem a aliança é criada é Clawdia,
mas também se dedica à vida que Clawdia simboliza, à vida que faz “exigências
sagradas, femininas, (...) à honra e ao vigor masculino” (p. 565 [774]).
Peeperkorn já assinalara essa ideia ao falar, em seu primeiro encontro com
Hans, da possibilidade de um dia os dois travarem uma relação fraterna: “Irmãos!
(...) Está projetado... Projetado para breve, embora a ponderação, por
enquanto... Bem, basta! A vida, meu caro jovem, é uma mulher (...) e reivindica
todas as energias da nossa virilidade, que se deve confirmar ou perecer perante
ela” (p. 566 [775]). O único grande medo de Peeperkorn – “o desespero do inferno,
o fim do mundo” – é a possibilidade, que com sua idade e enfermidade se lhe
torna enorme, de não ser capaz de corresponder a tal desafio: “Perecer, jovem!
O senhor percebe o que isso significaria? A derrota do sentimento em face da
vida, eis o que é a insuficiência” (p. 566 [775]). Desse modo, assim como
Clawdia necessita de um amigo que o ajude a cuidar de Peeperkorn, ele mesmo
necessita de um irmão para ajudá-lo a amar a vida e Clawdia.
Não é muito depois do estabelecimento
dessa aliança que Peeperkorn comete suicídio com um dos venenos que sabia como
utilizar. Embora possa parecer uma rendição à morte, esse na verdade foi um
último ato de resistência. Como afirma Hans em seguida, dirigindo-se a Clawdia:
“A envergadura dele era tamanha (...) que o fracasso do sentimento em face da
vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um aviltamento de
Deus” (p. 624 [859]). A própria Clawdia chama aquilo de uma abdication – ou seja, não uma derrota,
mas a renúncia de sua coroa antes que lhe fosse impossível utilizá-la com
dignidade.
Antes de despertar, por causa da
deflagração da Primeira Guerra Mundial, de seu sonho de sete anos na montanha,
Hans passa por outras experiências que lhe ensinam bastante. No entanto, o
encontro com Peeperkorn continua sendo o ponto máximo tanto do protagonista quanto
da obra. Peeperkorn é a corporificação do ideal mais sublime que o homem pode
almejar no universo de Mann: o ideal de tornar-se o órgão da união de Deus com
a vida e de permanecer fiel a esse ideal dentro das próprias possibilidades,
ainda que o indivíduo saiba que, como produto da natureza – e a exemplo do grão
que é destilado para tornar-se “pão de Deus” –, o homem está destinado a ser
absorvido pela escuridão da qual emergira.
Hans nos oferece aquele que talvez seja
o melhor enunciado da combinação de seriedade e pilhéria com que Mann apresenta
a visão do sagrado imanente contida na Montanha Mágica: “ele [Peeperkorn] se
considerava o órgão nupcial de Deus. Era uma fantasia de rei... Quando estamos
comovidos, temos a coragem de empregar expressões que soam rudes e desapiedadas,
mas são mais solenes do que as palavras da devoção convencional” (p. 624
[859]).
A Montanha Mágica foi publicada em 1924. O
desenvolvimento de sua visão se estendeu a várias outras obras de Mann, cuja
carreira esteve inteiramente preocupada com a possibilidade de compreender a
vida humana unindo o sagrado e o secular. Sua próxima grande obra, José e Seus Irmãos, retomou o tema
dando-lhe uma ênfase cômica – cômica nos dois sentidos da palavra, o
humorístico e o otimista. Doutor Fausto
tomou-o adotando um viés trágico, focando-se no lado “questionável” da união
narcisista do homem com a vida e no aspecto demoníaco do sagrado. Mesmo o Doutor Fausto, porém, não se mostra
desesperançado. Pelo contrário, e de maneira que evoca Joyce, ele representa o
pecado como algo necessário à totalidade do ser; o dr. Schleppfuss, um dos
instrutores de Adrian Leverkühn na teologia, apresenta-lhe o conceito de
virtude de maneira tão ambígua que ela parece um convite ao pecado: “A piedade
e a virtude consistiriam, então, em fazer bom uso da liberdade que Deus teve de
conceder à criatura como tal, o que é o mesmo que não lhe dar uso algum;
contudo, de acordo com o que se ouvia de Schleppfuss, era como se esse não uso
da liberdade significasse, na verdade, certo enfraquecimento existencial, uma
diminuição da intensidade do ser na criatura externa a Deus” [26]. Ao fazer seu pacto
com o diabo, Adrian tenta completar a humanidade levando-a além dos confins da
piedade religiosa convencional e do humanismo racionalista. De fato, ele está
buscando der geniale Weg junto com
Hans Castorp, e, embora seu fim seja mais sinistro do que o de Hans, há
indícios de que sua busca pode, ainda assim, ser fecunda para o homem. O diabo,
que no livro parece suficientemente sincero mesmo nas ocasiões em que é
genuinamente mal, diz a Adrian: “À base de tua loucura eles crescerão em saúde,
e neles tu serás sadio” (p. 243). A possibilidade de isso acontecer é insinuada
ainda mais na narrativa sobre o papa Gregório Magno que Adrian descobre na Gesta Romanorum e musica. A história,
que viria a ser desenvolvida por Mann no Santo
Pecador, diz respeito ao lendário nascimento do papa Gregório a partir da
união incestuosa de seus pais, bem como à sua relação incestuosa com a mãe e ao
seu miraculoso chamado à sé de Roma. No fim da história, Gregório diz à mãe,
que o procurara em busca da confissão e absolvição: “Ó, doce mãe, irmã e
esposa! Ó, amiga! O Diabo desejou levar-nos ao inferno, mas o imenso poder de
Deus o impediu” (Dr. Fausto, p. 319).
O Santo Pecador manifesta a esperança
de que isso venha a se aplicar à humanidade, e quando, nas Confissões do Impostor Félix Krull, último romance de Mann, o professor
Kuckuck descreve a Félix o ideal da “simpatia universal” – desejando, ao
despedir-se, que ele sonhe “com o Ser e com a Vida” –, essa esperança é mais
uma vez estendida ao cosmos como um todo, como na Montanha Mágica:
Sonha com as galáxias
torvelinhantes que, uma vez lá, encaram com paciência o esforço de existir.
Sonha com o formoso braço e sua antiga estrutura óssea, com as flores do campo
que, ajudadas pelo sol, dissolvem a matéria sem vida e a incorporam a seus
corpos vivos. E não deixa de sonhar com a pedra musgosa de um riacho de montanha,
ali repousada por milhares de anos, resfriada, banhada e polida pela espuma e
pela corrente. Examina a sua existência com simpatia, o Ser mais vigilante
olhando para o Ser no mais profundo sono, e a saúda em nome da Criação! Tudo
está bem quando o Ser e o Bem-Estar em alguma medida se reconciliam [27].
E relevante, porém, que o professor
Kuckuck esteja falando de um sonho. Félix
Krull é a história de um vigarista, um impostor profissional, e o romance é
tanto uma alegoria da arte quanto uma espécie de cultivo de sonhos. Tais sonhos
podem ser nobres – o que de fato se aplica a este descrito por Kuckuck –, mas,
até que se concretizem na realidade, devem permanecer como visões do que pode
acontecer. Além disso, o fato de eles virem ou não a se concretizar é uma
questão que, do ponto de vista da obra como um todo, ainda não pode ser respondida.
Na ficção de Mann, talvez as expressões mais adequadas de sua opinião sobre a
natureza do homem e daquilo que ele poderia se tornar não se encontrem na boca
de qualquer um dos personagens de seus romances, mas na oração final do Doutor Fausto – “Que Deus tenha
misericórdia de tua pobre alma, meu amigo, minha pátria!” – e na pergunta que
encerra A Montanha Mágica: “Será que
também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor
inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”.
O ideal que Mann delineia é uma
variante da ideia do Terceiro Reino, tal como indica o nome que lhe é dado: “terceiro
humanismo”. Ademais, a profissão de fé que o autor formula no ensaio I Believe – “De fato, creio na chegada
de um humanismo novo, um terceiro humanismo (...)” [28] – evoca claramente,
ainda que Mann não tivesse ciência disso, a semelhante profissão feita por
Ibsen em 1887, no banquete de Estocolmo [29]. Mann descreve seu “terceiro humanismo”
como uma mistura da tradição do humanismo secular com a reverência da religião
cristã e sua consciência da realidade do pecado. “O que os cristãos chamam de ‘pecado
original’”, diz ele, “é mais do que uma artimanha sacerdotal desenvolvida para
manter os homens sob o domínio da Igreja; trata-se da ciência profunda,
presente no homem como ser espiritual, de sua própria enfermidade e de sua
inclinação ao erro, as quais ele transcende pelo espírito” [30]. Ao mesmo tempo, porém,
em que descreve sua “enorme antipatia pelo aglomerado sem formação que hoje se
mobiliza para ‘conquistar o cristianismo’”, Mann também deixa claro que é num
monismo imanentista que ele crê, e não no que chama de “dualismo cristão da
alma e do corpo, do espírito e da vida, da verdade e do ‘mundo’” [31].
A atitude de Mann diante da tradição
religiosa ortodoxa do Ocidente foi, na verdade, bastante ambígua. Por um lado,
ele a valorizava demasiadamente; por outro, julgava-a carente de uma revisão
radical. Em seus anos de maturidade, Mann às vezes falou de seu ideal humanista
como uma esperança particularmente cristã. Em carta escrita no ano de 1953, por
exemplo, ele escreveu:
(...) bom seria se,
de todos os nossos sofrimentos, emergisse um novo sentimento de compaixão pela
humanidade, uma comiseração unificadora pelo precário posto do homem no
universo, entre a natureza e o espírito; em suma, se um sistema ético novo e
humanista se formasse e adentrasse a consciência e a subconsciência geral. Ele
exerceria uma salutar influência sobre a vida aqui na terra. (...) Esses,
porém, são desejos piedosos. Desejos até mesmo cristãos, se assim quiserem. “Cristão”,
para mim, apesar de Nietzsche, ainda não é um termo ultrajante [32]. Até mesmo a crítica
feita por Nietzsche à religião cristã ele preferia interpretar como “um
acontecimento ocorrido dentro da história do cristianismo” [33].
Mann estava tentando investigar o
limite dos conceitos que os homens utilizam para definir sua relação com o
universo e com o sagrado, e portanto não é surpreendente que tenha encontrado
dificuldades para descobrir onde se posicionar em relação às tradições religiosas
e para definir onde de fato almejava chegar. O que fica claro, porém, é que, em
toda a sua obra, Mann tentou redescobrir uma dimensão sagrada na experiência
humana e apresentá-la ao seu tempo. Qualquer que fosse a sua relação com as
religiões, sua atitude era claramente religiosa. Como ele afirmou num ensaio de
1948 sobre Nietzsche: “Religião é reverência – reverência, antes de mais nada, pelo
enigma que o homem representa” [34].
Notas:
[1]. “The Making of The Magic Mountain”. In:
Thomas Mann, The Magic Mountain.
Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf, 1944, p. 727.
[2]. The
Sacred and the Profane, p. 188.
[3]. As páginas indicadas referem-se
à edição da Montanha Mágica
mencionada na nota 1 deste capítulo. [Edição brasileira: A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2000, p. 47-48. Sempre que o autor indicar as páginas de sua edição,
colocaremos entre colchetes as páginas do volume brasileiro utilizado (N. T.)]
[4]. Ver Joseph
and His Brothers. Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf,
1948, p. 582 ss. Em seu “Einführung in den Zauberberg für Studenten der Universität Princeton”,
Der Zauberberg (Berlim, S. Fischer
Verlag, 1954), p. xv, Mann afirmou que A
Montanha Mágica é mais bem compreendida quando lida, mais do que em relação
às suas outras obras, em relação aos romances de José.
[5]. Der Zauberberg, p. 33.
[6]. Mann referia-se à inédita tese
de doutorado de Howard Nemerov, The
Quester Hera: Myth as Universal Symbol in the Works of Thomas Mann (Harvard,
1940). Todas as citações seguintes de “The
Making of The Magic Mountain” se encontram em The Magic Mountain, p. 728-29.
[7]. Der
Zauberberg, p. 849.
[8]. The
Magic Mountain, p. 727.
[9]. Sófocles, Oedipus at Colonus. Trad. Robert Fitzgerald. In: Sophocles I. Chicago, University of
Chicago Press, 1964, vv. 8, 1134-35.
[10]. Ibidem, vv. 6-7.
[11]. Oedipus the King. Trad. David Greene. In: Sophocles I, vv. 1080-84. Cf. o discurso
de Jocasta nos versos 977-78: “Por que deve o homem temer quando o acaso [Túxr]
está, de todo modo, a seu favor e ele claramente não pode prever nada?”.
[12]. Ibidem, v. 398.
[13]. Carl Jung utilizou uma
genealogia semelhante em sua interpretação do símbolo da Esfinge na mitologia. Cf. Jung, Symbols
of Transformation: An Analysis of the Prelude to a Case of Schizophrenia. Trad. R. F. C. Hull. Nova York, Pantheon Books, 1956, p.
182: “A genealogia da Esfinge possui múltiplas ligações com o problema aqui
abordado: ela era filha de Equidna, monstro cuja metade superior era a de uma
bela donzela e a inferior, de uma repugnante serpente. Esse ser duplo
corresponde à imago materna: na parte superior, a adorável e atraente metade
humana; na inferior, a terrível metade animalesca, transformada em animal
medonho pela proibição do incesto. Equidna nasceu da mãe de todos, a mãe terra,
Gaia, que a concebeu de Tártaro, personificação do submundo. A própria Equidna
era a mãe de todos os terrores, da Quimera, de Cila, da Górgona. (...) Um de
seus filhos era Ortros, cão do monstro Gerião abatido por Hércules. Com esse
cão, seu próprio filho, Equidna produziu incestuosamente a Esfinge. Está claro
que um fato dessa magnitude não pode ser desfeito com a mera solução de um
enigma infantil. O enigma era, na verdade, a armadilha que a Esfinge preparava
para o errante descuidado. (...) O enigma da Esfinge era ela mesma: a terrível
imago materna que Édipo não tomaria como advertência”.
[14]. Structural
Anthropology. Trad. Claire Jacobson e Brooke Grundfest. Nova York, Basic
Books, 1963, p. 216.
[15]. O tema aparece, por
exemplo, na união entre o irmão e a irmã de “O Sangue dos Walsungs”; na união entre Huia e Tuia, também irmãos,
em José no Egito; na fantasiosa
relação de Adrian Leverkühn com sua “irmãzinha” sereia, em Doutor Fausto; nas
uniões entre irmão e irmã e mãe e filho em O
Santo Pecador; e no fascínio de Félix Krull pelo casal de irmãos que vê em
Frankfurt.
[16]. I
Believe: The Personal Philosophies of Certain Eminent Men and Women of Our Time.
Nova York, Simon and Schuster, 1939, p. 132. A contribuição de Mann ao volume foi
traduzida por H. T. Lowe-Porter.
[17]. Tanto esta quanto as próximas
citações em francês aparecem no original e na tradução da Montanha Mágica feita por Lowe-Porter. As traduções são minhas.
[18]. Cf. Eliade, The Sacred and the Profane, p. 178: “Assim como a habitação do
homem moderno perdeu seu valor cosmológico, seu corpo perdeu seu significado
religioso ou espiritual”.
[19]. É importante comparar isso com
aquilo que, segundo André von Gronicka, disse Hermann Hesse (em carta a Mann,
de 8 de novembro de 1950) sobre a complexidade da ironia em O Santo Pecador: “‘A maioria dos
leitores’, pensava ele, ‘teria discernimento suficiente para perceber a ironia
dessa agradável criação’; no entanto, Hesse tinha sérias dúvidas sobre se ‘todos
seriam capazes de notar a sinceridade e a piedade subjacentes a essas ironias
e, assim, atribuir-lhes seu verdadeiro e sublime contentamento’”. Von Gronicka,
Thomas Mann: Profile and Perspectives.
Nova York, Random House, 1970, p. 150.
[20]. Essa interpretação de Peeperkorn
aparece pela primeira vez de maneira clara e completamente adequada num artigo
de autoria de Oskar Seidlin, “The Lofty Game of Numbers: The Mynheer Peepkorn
Episode in Thomas Mann’s Der Zauberberg”.
PMLA, 86, n. 5, outubro de 1971, p. 924-39. Para uma breve descrição das
inadequadas interpretações anteriores, ver a nota 17 de Seidlin, p. 937.
[21]. Para uma análise mais extensa do
simbolismo sacramental aqui encontrado, ver Seidlin, “The Lofty Game of Numbers”, p. 928-29. Acerca da relação entre
Cristo e Dionísio nessa imagem do pão “líquido” – o Korndestillat – e na figura de Peeperkorn como um todo, Seidlin
diz: “O que os une é a ideia da Encarnação: em Cristo, o mundo, o espírito
divino, torna-se carne, o celeste desce à terra, a luz brilha na escuridão; em
Dionísio, as forças aparentemente cegas da natureza são transfiguradas no
divino, as sementes arraigadas no seio negro da terra irrompem no esplendor
acima, a luz das tochas ilumina a escuridão da noite no aparecimento festivo do
deus” (p. 928).
[22]. Cf. ibidem, p.
933-34.
[23]. Der Zauberberg, p. 849.
[24]. Ibidem, p. 851.
[25]. Ibidem, p. 852. Tradução minha.
[26]. Doctor
Faustus: The Life of tbe German Composer Adrian Leverkühn as Told by a Friend.
Trad. H. T. Lowe-Porter. Nova York, Alfred A. Knopf, 1948, p. 101. As
referências subsequentes virão entre parênteses.
[27]. Thomas Mann, The Confessions of Félix Krull, Confidence Man: The Early Years.
Trad. Denver Lindley. Nova York, Alfred A. Knopf, 1955, p. 277.
[28]. I
Believe, p. 193.
[29]. Ver cap. 3, p. 63. Fritz Kaufmann,
Thomas Mann: The World as Will and Representation, Boston, Beacon Press, 1957,
p. 27, remonta à preocupação de Mann com a síntese dialética ao "Terceiro
Reino" de Ibsen e ao casamento nietzschiano do apolíneo com o dionisíaco.
Outra fonte seria Goethe, a quem Mann se refere de modo particular no ensaio I Believe, p. 193.
[30]. I
Believe, p. 192.
[31]. Ibidem, p. 192-93.
[32]. The
Letters of Thomas Mann. Org. e trad. Richard e Clara Winston. Nova York,
Alfred A. Knopf, 1971, p. 652.
[33]. The
Story of a Novel: The Genesis of Doctor Faustus. Trad. Richard e Clara Winston.
Nova York, Alfred A. Knopf, 1961, p. 191.
[34]. “Nietzsche’s
Philosophy in the Light of Recent History”, Last Essays. Trad. Richard e Clara Winston. Nova York, Alfred A.
Knopf, 1959, p. 177.
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