Para nova conceituação do que seja a poesia, transcrevemos abaixo o
longo parecer do poeta, tradutor e professor paulista Marcos Siscar (Borborema,
São Paulo, 1964).
J.A.R. – H.C.
Marcos Siscar
O que é a poesia?
Há um certo desconforto dos poetas em
responder à questão “o que é poesia?”. A pergunta não é mais complicada do que
outras. O problema é que a poesia não gosta muito de definições, e isso tem a
ver com a história de sua constituição como discurso e como saber sobre o
mundo, de modo distinto da filosofia, da religião ou, mais recentemente, da ciência.
Por isso, respostas especulativas,
místicas ou sistêmicas, por mais interessantes que possam parecer, soam sempre
como meia-verdade. Comento os paralelos, arriscando algumas hipóteses sobre o
modo como a poesia reivindica sua diferença:
Gosto de imaginar, dentro da formulação
filosófica do problema, que a poesia é a tentativa de manter o paradoxo, ou
seja, aquilo que a filosofia tenta resolver a todo custo. O papel básico do
filósofo é evitar o paradoxo, é dar um sentido coerente para aquilo que se
apresenta contraditoriamente. Saber que não se sabe (Platão) é apenas uma
estratégia do saber e, no fundo, um problema que a filosofia tem o cuidado de
justificar, de manter sob controle. Para o poeta, o paradoxo não traz
inconveniente (Octavio Paz). É possível dizer que a ambição da poesia é manter
o paradoxo como tal, dando-lhe forma e formulação.
Já o discurso religioso valoriza o
mistério, verticaliza a vertigem do conhecimento permanecendo, via de regra,
dogmático. Se a poesia se aproxima da reivindicação do mistério, rejeita
claramente o dogmatismo. O poeta é mais comumente agnóstico (Drummond), ou
inicialmente profanador (Baudelaire). Mantendo o “mistério” (hoje diríamos a
alteridade), mas recusando a necessidade de dar-lhe um fundamento, subvertendo
o que foi separado e trazendo-o para o uso do profano (Agamben), a poesia seria
um tipo de “profanação”.
Com a poesia sobre a mesa de
dissecação, pode-se chegar a algumas conclusões em relação aos seus
“dispositivos”. A herança científica nos legou uma visão do poético que passa
sobretudo pela via da linguística (Jakobson, formalistas russos) e é capaz de
nos oferecer definições de procedimentos e mecânicas poéticas. Como toda fonte
de definições, ela vale tanto pelo que descreve quanto pelo que acaba por
normatizar. Daí a ideia pedagógica que lhe é associada (por exemplo, nos
discursos do make it new). Entretanto,
a poesia resiste à ideia de reiteração de formas e valores, valoriza a
experiência única.
É difícil responder “o que é poesia?”
sem constatar essa disputa entre discursos. Acho que dá para dizer que discurso
poético aspira ao paradoxo do conhecimento da ignorância, que não deixa de
estar ligado com a pulsão da alteridade (acaso, mistério, etc.). Essa
experiência de constituição de identidade não deixa de ter sintonia com o modo
pelo qual a poesia aborda questões psicológicas (“afeto”), cosmológicas (ou
“ecológicas”) e sociológicas (“comunidade”).
The Lady of Shalott
(John W. Waterhouse: 1849-1917)
Referência:
SISCAR, Marcos. O que é a poesia para
você?. In: CRUZ, Edson (org.). O que é
poesia? Rio de Janeiro: Confraria do Vento; Calibán, 2009. p. 96-98.
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