Shakespeare, sempre Shakespeare, é um recurso prestigioso a que todo
blogueiro desesperado pode recorrer, quando está à procura de um tema
específico, como a companhia adusta do “Anjo do Mal” (rs).
E claro, o bardo jamais decepciona os amantes da alta literatura, seja por
sua forma prodigiosa de arregimentar as palavras no idioma inglês, seja porque
sua capacidade de criar imagens é insuperável.
Seu papel protagônico o transforma num deus de onde tudo promana. Decerto,
é por isso que Harold Bloom julga que o substrato do humano, vale dizer, suas
emoções mais cristalinas, teria sido obra cujo manancial primário flui sem
óbices pelos textos produzidos pelo dramaturgo.
No soneto que escolhemos para ilustrar a relação do divino com o
maligno, o poeta fala de seus dois amores: um anjo do bem – que seria masculino
– e um do mal, feminino. Numa leitura em primeira mão, as feministas (seriam só
elas?!) veriam nessa associação certo lastro misógino – ou melhor, a
preferência pela companhia do varão – ou, no mínimo, de bissexualidade.
Contudo, uma leitura mais atenta parece não dizer exatamente isso: o
varão e a mulher são duas fontes de amor, em disputa pelo primado na índole
tangível do poeta. Este expressa seu temor de que o anjo bom seja arrastado à
luxúria, sendo seduzido pelo mau, transformando-se desse modo também em diabo,
pela expulsão de sua natureza angelical bem-intencionada.
Em suma: numa atmosfera acintosamente sexualizada, Shakespeare destila a
sua ambiguidade erótica em texto que muito faz lembrar as relações que os
antigos filósofos gregos mantinham com os seus discípulos e esposas. Se houver
dúvidas sobre a associação que ora sugiro, proponho aos internautas que leiam a
parte final de “O Banquete”, de Platão: ali se vê a relação Sócrates x
Alcibíades e, por outra via, do primeiro com a sua geniosa esposa Xantipa.
Mas se a leitura for mesmo a do conflito meramente interno, no ânimo do
poeta, então poderíamos lembrar a letra de uma famosa canção, maravilhosamente
interpretada por Nana Caymmi, intitulada “O Bem e o Mal”, de autoria do seu
mano Danilo Caymmi, que pode ser escutada na segunda parte deste vídeo.
J.A.R. – H.C.
Shakespeare
(1564-1616)
CXLIV
Two loves I have of comfort and despair,
Which like two spirits do suggest me still,
The better angel is a man right fair:
The worser spirit a woman colour’d ill.
To win me soon to hell my female evil,
Tempteth my better angel from my side,
And would corrupt my saint to be a devil,
Wooing his purity with her foul pride.
And whether that my angel be turn’d fiend,
Suspect I may, yet not directly tell,
But being both from me both to each friend,
I guess one angel in another’s hell.
Yet this shall I ne’er know, but live in doubt,
Till my bad angel fire my good one out.
Good and Evil
(Andrej Vystropov: n.
1961)
CXLIV
Meus dois amores de
consolo e de aflição
Como dois anjos me
dominam por igual:
O anjo do bem é um
formosíssimo varão,
E uma mulher de cor
bem má o anjo do mal.
Para levar-me para o
inferno mais depressa
Meu feminino mal tira
o anjo do meu lado
E só por
transformá-lo em diabo se interessa,
Solicitando-o com um
ardor abominado.
Se o anjo se fez
demônio, eis ponto alto encoberto:
Bem posso desconfiar,
porém não asseguro:
São amigos, e como eu
não os vejo perto,
Que um esteja no
inferno do outro conjeturo.
Sobre isso viverei em
dúvida, porém,
Até que o anjo do mal
expulse o anjo do bem.
Referência:
SHAKESPEARE, William. Sonetos. Tradução e introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, SP: Hedra, 2008. p. 126-127.
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