Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Satã (V): Shakespeare

Shakespeare, sempre Shakespeare, é um recurso prestigioso a que todo blogueiro desesperado pode recorrer, quando está à procura de um tema específico, como a companhia adusta do “Anjo do Mal” (rs).

E claro, o bardo jamais decepciona os amantes da alta literatura, seja por sua forma prodigiosa de arregimentar as palavras no idioma inglês, seja porque sua capacidade de criar imagens é insuperável.

Seu papel protagônico o transforma num deus de onde tudo promana. Decerto, é por isso que Harold Bloom julga que o substrato do humano, vale dizer, suas emoções mais cristalinas, teria sido obra cujo manancial primário flui sem óbices pelos textos produzidos pelo dramaturgo.

No soneto que escolhemos para ilustrar a relação do divino com o maligno, o poeta fala de seus dois amores: um anjo do bem – que seria masculino – e um do mal, feminino. Numa leitura em primeira mão, as feministas (seriam só elas?!) veriam nessa associação certo lastro misógino – ou melhor, a preferência pela companhia do varão – ou, no mínimo, de bissexualidade.

Contudo, uma leitura mais atenta parece não dizer exatamente isso: o varão e a mulher são duas fontes de amor, em disputa pelo primado na índole tangível do poeta. Este expressa seu temor de que o anjo bom seja arrastado à luxúria, sendo seduzido pelo mau, transformando-se desse modo também em diabo, pela expulsão de sua natureza angelical bem-intencionada.

Em suma: numa atmosfera acintosamente sexualizada, Shakespeare destila a sua ambiguidade erótica em texto que muito faz lembrar as relações que os antigos filósofos gregos mantinham com os seus discípulos e esposas. Se houver dúvidas sobre a associação que ora sugiro, proponho aos internautas que leiam a parte final de “O Banquete”, de Platão: ali se vê a relação Sócrates x Alcibíades e, por outra via, do primeiro com a sua geniosa esposa Xantipa.

Mas se a leitura for mesmo a do conflito meramente interno, no ânimo do poeta, então poderíamos lembrar a letra de uma famosa canção, maravilhosamente interpretada por Nana Caymmi, intitulada “O Bem e o Mal”, de autoria do seu mano Danilo Caymmi, que pode ser escutada na segunda parte deste vídeo.

J.A.R. – H.C. 
Shakespeare
(1564-1616)

CXLIV

Two loves I have of comfort and despair,
Which like two spirits do suggest me still,
The better angel is a man right fair:
The worser spirit a woman colour’d ill.

To win me soon to hell my female evil,
Tempteth my better angel from my side,
And would corrupt my saint to be a devil,
Wooing his purity with her foul pride.

And whether that my angel be turn’d fiend,
Suspect I may, yet not directly tell,
But being both from me both to each friend,

I guess one angel in another’s hell.
Yet this shall I ne’er know, but live in doubt,
Till my bad angel fire my good one out.

Good and Evil
(Andrej Vystropov: n. 1961)

CXLIV

Meus dois amores de consolo e de aflição
Como dois anjos me dominam por igual:
O anjo do bem é um formosíssimo varão,
E uma mulher de cor bem má o anjo do mal.

Para levar-me para o inferno mais depressa
Meu feminino mal tira o anjo do meu lado
E só por transformá-lo em diabo se interessa,
Solicitando-o com um ardor abominado.

Se o anjo se fez demônio, eis ponto alto encoberto:
Bem posso desconfiar, porém não asseguro:
São amigos, e como eu não os vejo perto,

Que um esteja no inferno do outro conjeturo.
Sobre isso viverei em dúvida, porém,
Até que o anjo do mal expulse o anjo do bem.

Referência:

SHAKESPEARE, William. Sonetos. Tradução e introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, SP: Hedra, 2008. p. 126-127.

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