“Encontrei
a definição de beleza, da minha beleza. É uma coisa apaixonada e triste [...]
Não consigo imaginar a beleza onde não haja adversidade [...] É difícil para
mim não concluir que o tipo mais perfeito de beleza viril é Satã – ao modo de
Milton”.
(BAUDELAIRE apud LINK, 1998, p. 192)
Para
introduzir o internauta no tão caro tema da presença de Satã na poesia do
francês Charles Baudelaire, transcrevemos, literalmente, uma passagem do livro
“Uma História do Diabo: séculos XII-XX”, de autoria do historiador francês
Robert Muchembled (2001, p. 259):
[Para
Baudelaire], o diabo é, ao mesmo tempo, íntimo e totalmente outro. Cético em
relação à explicação pela ciência, rejeitando o ateísmo, de cultura católica
sem ser ortodoxo, ele considera conjuntamente a alienação e o Mal como a mais
profunda realidade da existência humana. Em cada ser humano, escreve ele em seu
‘Diário íntimo’, existem simultaneamente duas tendências, uma que o impulsiona
para Deus, outra para Lúcifer. O Mal é, ao mesmo tempo, atrativo e destruidor.
O demônio é tanto o campeão da liberdade quanto a encarnação da hipocrisia. Ele
representa uma força externa e real: ‘A mais bela armadilha do diabo é
persuadir-nos de que ele não existe’, explica Baudelaire aos céticos ou aos que
querem louvar os progressos do Iluminismo. Ele age, porém, tanto no espírito do
homem quanto por imagens e desejos destruidores. Alguns chegaram a acusar o
poeta de satanismo, pois ele afirmou: ‘Satã é o mais perfeito tipo de beleza
viril’, e proclamou em ‘As Litanias de Satã’: ‘Meu caro Belzebu, eu te adoro’.
A imagem que ele representa é, na realidade, muito complexa, ainda mais pelo
fato de ter-se modificado ao longo da vida. Por um lado, este pensador
impregnado de uma visão pessimista do homem lembra, assim, a importância da
religião aterrorizante que reinou sobre o Ocidente no início da Modernidade.
Por outro, ele descobre em si mesmo abismos, contradições, flores do mal cujas
raízes ele não identifica claramente.
Baudelaire,
segundo o poeta e tradutor Ivan Junqueira (2012, p. 69), deve em grande parte
aos contos de Hoffmann e à mística de Swedenborg a sua fantasmagoria gótica e o
satanismo. Nesse contexto, apesar de, praticamente, não se discutir a sua
vocação cristã, o que “mais desconcerta a quem
frequente a poesia de Baudelaire é perceber a fáustica oscilação entre Deus e o
Diabo, o que leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de
maniqueísmo” (JUNQUEIRA, 2012, p. 80).
Há
quem também, qual Haddad (1984, p. 29), interprete o satanismo do poeta como
meramente literário, com toda a sua manifesta representação simbólica – assim
como também presente, por influência, em certos autores brasileiros –, mas não
exatamente um satanismo capaz de cultos e rituais macabros, num altar
efetivamente erigido ao “Anjo Caído”.
No já
mencionado As Litanias de
Satã, o poema que ora trazemos para ilustrar o tema em epígrafe,
Baudelaire adota terminologias notoriamente litúrgicas, e a cada verso, em
progressão, faz ressoar blasfêmias delirantes, no intento de tornar ostensiva a
sua sombria ambição poética.
Dir-se-ia
que a incompreensão dos mortais acerca dos motivos pelos quais Deus ciosamente
guarda as “suas pedras preciosas” – explicitamente, os seus propósitos – leva-nos
a confiar em Satã para que no-las revele. E o progresso científico, que nos
converte em “outros deuses” criadores de realidades, configuraria, por
conseguinte, uma transgressão insolente perante o Eterno, mitologicamente
metaforizada pela figura de Prometeu.
Afinal,
outro não seria o motivo por que Baudelaire, na oração final do poema, evoca o
sono eterno sob a árvore da Ciência, junto a Satã, em cuja fronte o poeta
espera ver os seus insignes ramos florescer!
Enfatize-se,
por derradeiro, que “As Litanias de Satã” faz parte da seção de “As Flores do
Mal” denominada “Revolta”, a denotar que os poemas ali inseridos nada mais são
do que expressão de um “mal-estar” do vate francês, em face do estado de
“queda” no qual se encontrava, não saberia dizer se momentâneo ou reiterado.
Em
qualquer dos casos, se há pertinência no título da obra adotado por Baudelaire
– “As Flores do Mal” –, que outra alegoria mais propícia se poderia associar ao
mal que não fosse exatamente a de Satã?!
E já
que Baudelaire vê no Satã de Milton o referencial prototípico da beleza viril,
anexamos também, mais abaixo, uma das belas gravuras criadas pelo francês
Gustave Doré, para o clássico “Paraíso Perdido”, do precitado escritor inglês.
Então
aí temos, numa síntese pouco frequente, toda a potência das palavras e das
imagens a evocar a beleza do arauto de todos os males da humanidade (rs).
J.A.R.
– H.C.
Charles Baudelaire
(1821-1867)
Les Litanies de Satan
Ô toi, le plus savant et le plus beau des
Anges,
Dieu
trahi par le sort et privé de louanges,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Ô
Prince de l’exil, à qui l’on a fait tort
Et
qui, vaincu, toujours te redresses plus fort,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi qui sais tout, grand roi des choses
souterraines,
Guérisseur
familier des angoisses humaines,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui, même aux lépreux, aux parias maudits,
Enseignes
par l’amour le goût du Paradis,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Ô toi
qui de la Mort, ta vieille et forte amante,
Engendras
l’Espérance, – une folle charmante!
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui fais au proscrit ce regard calme et haut
Qui damne tout un peuple autour d’un
échafaud.
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui sais en quels coins des terres envieuses
Le
Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi dont l’oeil clair connaît les profonds
arsenaux
Où
dort enseveli le peuple des métaux,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi dont la large main cache les précipices
Au
somnambule errant au bord des édifices,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui, magiquement, assouplis les vieux os
De
l’ivrogne attardé foulé par les chevaux,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui, pour consoler l’homme frêle qui souffre,
Nous
appris à mêler le salpêtre et le soufre,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi
qui poses ta marque, ô complice subtil,
Sur le front du Crésus impitoyable et vil,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Toi qui mets dans les yeux et dans le
coeur des filles
Le
culte de la plaie et l’amour des guenilles,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Bâton
des exilés, lampe des inventeurs,
Confesseur
des pendus et des conspirateurs,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Père
adoptif de ceux qu’en sa noire colère
Du
paradis terrestre a chassés Dieu le Père,
Ô
Satan, prends pitié de ma longue misère!
Prière
Gloire
et louange à toi, Satan, dans les hauteurs
Du
Ciel, où tu régnas, et dans les profondeurs
De
l’Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!
Fais
que mon âme un jour, sous l’Arbre de Science,
Près
de toi se repose, à l’heure où sur ton front
Comme
un Temple nouveau ses rameaux s’épandront!
Gravura de Satã
(Gustave Doré: 1832-1883)
As
Litanias de Satã
Ó tu,
o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor,
Deus
que a sorte traiu e privou do louvor,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
que és o condenado, ó Príncipe do Exílio,
E
que, vencido, sempre emerges com mais brilho,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
sábio e grande rei do abismo mais profundo,
Médico
familiar dos males deste mundo,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
cujas graças ao leproso e ao pária cedem
Com a
lição do amor o próprio gosto do Éden,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Ó tu,
o que da Morte, a tua velha amante,
Engendraste
a Esperança – a louca fascinante!
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
que dás ao proscrito a fronte soberana,
Que
em torno de uma forca um povo inteiro dana,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
que bem sabes onde, nas terras mais zelosas,
Cioso
Deus guardou as pedras mais preciosas,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
cujo olhar conhece os fundos arsenais,
Em
que dorme sepulto o povo dos metais,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Ao
sonâmbulo a errar à borda de edifícios.
Tu,
cuja larga mão esconde os precipícios
Tem
piedade. Satã, desta longa miséria!
Tu,
que magicamente abrandas ossos ralos,
Do
ébrio retardatário a quem pisam cavalos,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
que ao homem – nas mãos da desventura um títere –
Ensinaste
a juntar enxofre com salitre,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu
que impões tua marca, ó cúmplice sutil,
Sobre
a fronte de Creso, que é impiedoso e vil,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu,
que na alma e no olhar destas mulheres pões,
O
culto da ferida e o amor dos farrapões,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Do
exilado bastão, lâmpada do inventor,
Confessor
do enforcado e do conspirador,
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Pai
adotivo dos que, em sua ira sombria,
Deus
Pai pôde expulsar do paraíso um dia.
Tem
piedade, Satã, desta longa miséria!
Oração
Glória
e louvor a ti, Satã, pelas alturas
Do
Céu em que reinaste, e nas furnas obscuras
Do
Inferno em que vencido és sonho e sonolência!
Faze
que esta alma um dia, à árvore da Ciência,
Repouse
junto a ti, quando em tua cabeça,
Tal
qual um templo novo os seus ramos floresça!
Referências:
BAUDELAIRE,
Charles. As litanias de Satã. In: __________. As flores do mal.
Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. p. 286-287.
HADDAD,
Jamil Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As
flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São
Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-78.
JUNQUEIRA,
Ivan. A arte de Baudelaire. IN: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal.
Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Ed. Especial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de Bolso). p. 61-117.
LINK,
Luther. O diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MUCHEMBLED,
Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Tradução de
Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.
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