Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Satã (III): Charles Baudelaire

“Encontrei a definição de beleza, da minha beleza. É uma coisa apaixonada e triste [...] Não consigo imaginar a beleza onde não haja adversidade [...] É difícil para mim não concluir que o tipo mais perfeito de beleza viril é Satã – ao modo de Milton”.

(BAUDELAIRE apud LINK, 1998, p. 192)

 

Para introduzir o internauta no tão caro tema da presença de Satã na poesia do francês Charles Baudelaire, transcrevemos, literalmente, uma passagem do livro “Uma História do Diabo: séculos XII-XX”, de autoria do historiador francês Robert Muchembled (2001, p. 259):

 

[Para Baudelaire], o diabo é, ao mesmo tempo, íntimo e totalmente outro. Cético em relação à explicação pela ciência, rejeitando o ateísmo, de cultura católica sem ser ortodoxo, ele considera conjuntamente a alienação e o Mal como a mais profunda realidade da existência humana. Em cada ser humano, escreve ele em seu ‘Diário íntimo’, existem simultaneamente duas tendências, uma que o impulsiona para Deus, outra para Lúcifer. O Mal é, ao mesmo tempo, atrativo e destruidor. O demônio é tanto o campeão da liberdade quanto a encarnação da hipocrisia. Ele representa uma força externa e real: ‘A mais bela armadilha do diabo é persuadir-nos de que ele não existe’, explica Baudelaire aos céticos ou aos que querem louvar os progressos do Iluminismo. Ele age, porém, tanto no espírito do homem quanto por imagens e desejos destruidores. Alguns chegaram a acusar o poeta de satanismo, pois ele afirmou: ‘Satã é o mais perfeito tipo de beleza viril’, e proclamou em ‘As Litanias de Satã’: ‘Meu caro Belzebu, eu te adoro’. A imagem que ele representa é, na realidade, muito complexa, ainda mais pelo fato de ter-se modificado ao longo da vida. Por um lado, este pensador impregnado de uma visão pessimista do homem lembra, assim, a importância da religião aterrorizante que reinou sobre o Ocidente no início da Modernidade. Por outro, ele descobre em si mesmo abismos, contradições, flores do mal cujas raízes ele não identifica claramente.

 

Baudelaire, segundo o poeta e tradutor Ivan Junqueira (2012, p. 69), deve em grande parte aos contos de Hoffmann e à mística de Swedenborg a sua fantasmagoria gótica e o satanismo. Nesse contexto, apesar de, praticamente, não se discutir a sua vocação cristã, o que “mais desconcerta a quem frequente a poesia de Baudelaire é perceber a fáustica oscilação entre Deus e o Diabo, o que leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo” (JUNQUEIRA, 2012, p. 80).

 

Há quem também, qual Haddad (1984, p. 29), interprete o satanismo do poeta como meramente literário, com toda a sua manifesta representação simbólica – assim como também presente, por influência, em certos autores brasileiros –, mas não exatamente um satanismo capaz de cultos e rituais macabros, num altar efetivamente erigido ao “Anjo Caído”.

 

No já mencionado As Litanias de Satã, o poema que ora trazemos para ilustrar o tema em epígrafe, Baudelaire adota terminologias notoriamente litúrgicas, e a cada verso, em progressão, faz ressoar blasfêmias delirantes, no intento de tornar ostensiva a sua sombria ambição poética.

 

Dir-se-ia que a incompreensão dos mortais acerca dos motivos pelos quais Deus ciosamente guarda as “suas pedras preciosas” – explicitamente, os seus propósitos – leva-nos a confiar em Satã para que no-las revele. E o progresso científico, que nos converte em “outros deuses” criadores de realidades, configuraria, por conseguinte, uma transgressão insolente perante o Eterno, mitologicamente metaforizada pela figura de Prometeu.

 

Afinal, outro não seria o motivo por que Baudelaire, na oração final do poema, evoca o sono eterno sob a árvore da Ciência, junto a Satã, em cuja fronte o poeta espera ver os seus insignes ramos florescer!

 

Enfatize-se, por derradeiro, que “As Litanias de Satã” faz parte da seção de “As Flores do Mal” denominada “Revolta”, a denotar que os poemas ali inseridos nada mais são do que expressão de um “mal-estar” do vate francês, em face do estado de “queda” no qual se encontrava, não saberia dizer se momentâneo ou reiterado.

 

Em qualquer dos casos, se há pertinência no título da obra adotado por Baudelaire – “As Flores do Mal” –, que outra alegoria mais propícia se poderia associar ao mal que não fosse exatamente a de Satã?!

 

E já que Baudelaire vê no Satã de Milton o referencial prototípico da beleza viril, anexamos também, mais abaixo, uma das belas gravuras criadas pelo francês Gustave Doré, para o clássico “Paraíso Perdido”, do precitado escritor inglês.

 

Então aí temos, numa síntese pouco frequente, toda a potência das palavras e das imagens a evocar a beleza do arauto de todos os males da humanidade (rs).

 

J.A.R. – H.C. 

 

Charles Baudelaire

(1821-1867)

 

Les Litanies de Satan

 

Ô toi, le plus savant et le plus beau des Anges,

Dieu trahi par le sort et privé de louanges,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Ô Prince de l’exil, à qui l’on a fait tort

Et qui, vaincu, toujours te redresses plus fort,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui sais tout, grand roi des choses souterraines,

Guérisseur familier des angoisses humaines,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, même aux lépreux, aux parias maudits,

Enseignes par l’amour le goût du Paradis,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Ô toi qui de la Mort, ta vieille et forte amante,

Engendras l’Espérance, – une folle charmante!

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui fais au proscrit ce regard calme et haut

Qui damne tout un peuple autour d’un échafaud.

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui sais en quels coins des terres envieuses

Le Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi dont l’oeil clair connaît les profonds arsenaux

Où dort enseveli le peuple des métaux,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi dont la large main cache les précipices

Au somnambule errant au bord des édifices,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, magiquement, assouplis les vieux os

De l’ivrogne attardé foulé par les chevaux,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, pour consoler l’homme frêle qui souffre,

Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui poses ta marque, ô complice subtil,

Sur le front du Crésus impitoyable et vil,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui mets dans les yeux et dans le coeur des filles

Le culte de la plaie et l’amour des guenilles,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Bâton des exilés, lampe des inventeurs,

Confesseur des pendus et des conspirateurs,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Père adoptif de ceux qu’en sa noire colère

Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Prière

 

Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs

Du Ciel, où tu régnas, et dans les profondeurs

De l’Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!

Fais que mon âme un jour, sous l’Arbre de Science,

Près de toi se repose, à l’heure où sur ton front

Comme un Temple nouveau ses rameaux s’épandront!

 

Gravura de Satã

(Gustave Doré: 1832-1883)

 

As Litanias de Satã

 

Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor,

Deus que a sorte traiu e privou do louvor,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que és o condenado, ó Príncipe do Exílio,

E que, vencido, sempre emerges com mais brilho,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, sábio e grande rei do abismo mais profundo,

Médico familiar dos males deste mundo,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, cujas graças ao leproso e ao pária cedem

Com a lição do amor o próprio gosto do Éden,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Ó tu, o que da Morte, a tua velha amante,

Engendraste a Esperança – a louca fascinante!

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que dás ao proscrito a fronte soberana,

Que em torno de uma forca um povo inteiro dana,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que bem sabes onde, nas terras mais zelosas,

Cioso Deus guardou as pedras mais preciosas,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, cujo olhar conhece os fundos arsenais,

Em que dorme sepulto o povo dos metais,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Ao sonâmbulo a errar à borda de edifícios.

Tu, cuja larga mão esconde os precipícios

 

Tem piedade. Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que magicamente abrandas ossos ralos,

Do ébrio retardatário a quem pisam cavalos,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que ao homem – nas mãos da desventura um títere –

Ensinaste a juntar enxofre com salitre,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu que impões tua marca, ó cúmplice sutil,

Sobre a fronte de Creso, que é impiedoso e vil,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que na alma e no olhar destas mulheres pões,

O culto da ferida e o amor dos farrapões,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Do exilado bastão, lâmpada do inventor,

Confessor do enforcado e do conspirador,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Pai adotivo dos que, em sua ira sombria,

Deus Pai pôde expulsar do paraíso um dia.

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Oração

 

Glória e louvor a ti, Satã, pelas alturas

Do Céu em que reinaste, e nas furnas obscuras

Do Inferno em que vencido és sonho e sonolência!

Faze que esta alma um dia, à árvore da Ciência,

Repouse junto a ti, quando em tua cabeça,

Tal qual um templo novo os seus ramos floresça!

 

Referências:

 

BAUDELAIRE, Charles. As litanias de Satã. In: __________. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 286-287.

 

HADDAD, Jamil Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-78.

 

JUNQUEIRA, Ivan. A arte de Baudelaire. IN: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de Bolso). p. 61-117.

 

LINK, Luther. O diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.

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