“O diabo tem as mais amplas perspectivas relativamente a Deus, por isso
se mantém tão distante dele: o diabo, quer dizer, o mais antigo amigo do
conhecimento”.
(NIETZSCHE, 2001, p. 86)
“O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias”.
(NIETSCHE, 2001, p. 6).
Como já afirmara
Jamil Almansur Haddad, em seu primoroso ensaio à obra máxima de Baudelaire –
repitamos, “As Flores do Mal” –, o “satanismo brasileiro”, originário da adoção
de práticas maçônicas, seria anterior à influência da obra do autor francês
sobre as letras nacionais:
A importância desta
excursão através do satanismo brasileiro reside menos em acentuar a influência
do satanismo de Baudelaire do que em demonstrar que, com tudo o que se possa
afirmar da força do seu satanismo como poder de influxo literário, tínhamos
condições sociais, contemporâneas talvez dos primeiros tempos da nacionalidade,
para propiciar esse entendimento com o Diabo (HADDAD, 1984, p. 30).
Daí porque não seria
de se estranhar, por exemplo, que um autor como Cruz e Sousa, um dos maiores –
se não for mesmo o maior! – escritor brasileiro do período simbolista, tenha
sofrido a “tentação” de colocar, circunstancialmente, o seu talento a serviço
de Satã. Informe-se, por ora, que apesar de haver tentado ingressar numa Loja
Maçônica, até onde se sabe, Cruz e Sousa não foi aceito, ou aceito, sob
reservas, com um estatuto particular (OLIVEIRA NETO, 2010, p. 17).
Em “Satã”, o soneto
que dedicou a Lúcifer, o poeta catarinense – ou seria melhor dizer mineiro? –
se esmera em descrevê-lo no esplendor de sua forma, rebelde e pleno de glória,
provocativamente designado por “Deus triunfador dos triunfadores justos”,
epíteto que, muito provavelmente, o Eterno deve considerar uma insolência
obscena (rs)!
Suspeito que uma
leitura transversal do poema acabe por demonstrar que haja alguma identidade do
próprio poeta com a entidade mítica que descreve: negro como era, Cruz e Sousa
talvez não se sentisse confortável no meio social da época, e toda a sua obra
quiçá tenha se constituído numa evocação inconformista por outras instâncias de
beleza e estados d’alma. Quem sabe?!
J.A.R. – H.C.
Cruz e Sousa
(1861-1898)
Satã
Capro e revel, com os fabulosos cornos
Na fronte real de rei dos reis vetustos,
Com bizarros e lúbricos contornos,
Ei-lo Satã dentre os Satãs augustos.
Por verdes e por báquicos adornos
Vai c’roado de pâmpanos venustos
O deus pagão dos Vinhos acres, mornos,
Deus triunfador dos triunfadores justos.
Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,
A púrpura das glórias flamejantes,
Alarga as asas de relevos bravos...
O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...
E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa
Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!
Gravura de Satã
(Gustave Doré: 1832-1883)
Referências:
CRUZ E SOUSA. Satã.
In: __________. Broquéis. Ensaio Introdutório de Ivan Teixeira. São
Paulo: Edusp, 1994. p. 53-54.
HADDAD, Jamil
Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do
mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo:
Abril Cultural, 1984. p. 7-78.
NIETZSCHE, Friedrich
Wilhelm. Além do bem e do mal: ou prelúdio de uma filosofia do
futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba (PR): Hemus, 2001.
OLIVERIA NETO,
Godofredo. Cruz e Sousa: o poeta alforriado. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010. (Personalidades Negras)
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