Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 29 de julho de 2014

Satã (IV): Cruz e Sousa

“O diabo tem as mais amplas perspectivas relativamente a Deus, por isso se mantém tão distante dele: o diabo, quer dizer, o mais antigo amigo do conhecimento”.

(NIETZSCHE, 2001, p. 86)

 

“O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias”.

(NIETSCHE, 2001, p. 6).

 

Como já afirmara Jamil Almansur Haddad, em seu primoroso ensaio à obra máxima de Baudelaire – repitamos, “As Flores do Mal” –, o “satanismo brasileiro”, originário da adoção de práticas maçônicas, seria anterior à influência da obra do autor francês sobre as letras nacionais:

 

A importância desta excursão através do satanismo brasileiro reside menos em acentuar a influência do satanismo de Baudelaire do que em demonstrar que, com tudo o que se possa afirmar da força do seu satanismo como poder de influxo literário, tínhamos condições sociais, contemporâneas talvez dos primeiros tempos da nacionalidade, para propiciar esse entendimento com o Diabo (HADDAD, 1984, p. 30).

 

Daí porque não seria de se estranhar, por exemplo, que um autor como Cruz e Sousa, um dos maiores – se não for mesmo o maior! – escritor brasileiro do período simbolista, tenha sofrido a “tentação” de colocar, circunstancialmente, o seu talento a serviço de Satã. Informe-se, por ora, que apesar de haver tentado ingressar numa Loja Maçônica, até onde se sabe, Cruz e Sousa não foi aceito, ou aceito, sob reservas, com um estatuto particular (OLIVEIRA NETO, 2010, p. 17).

 

Em “Satã”, o soneto que dedicou a Lúcifer, o poeta catarinense – ou seria melhor dizer mineiro? – se esmera em descrevê-lo no esplendor de sua forma, rebelde e pleno de glória, provocativamente designado por “Deus triunfador dos triunfadores justos”, epíteto que, muito provavelmente, o Eterno deve considerar uma insolência obscena (rs)!

 

Suspeito que uma leitura transversal do poema acabe por demonstrar que haja alguma identidade do próprio poeta com a entidade mítica que descreve: negro como era, Cruz e Sousa talvez não se sentisse confortável no meio social da época, e toda a sua obra quiçá tenha se constituído numa evocação inconformista por outras instâncias de beleza e estados d’alma. Quem sabe?!

 

J.A.R. – H.C. 

 

Cruz e Sousa

(1861-1898)

 

Satã

 

Capro e revel, com os fabulosos cornos

Na fronte real de rei dos reis vetustos,

Com bizarros e lúbricos contornos,

Ei-lo Satã dentre os Satãs augustos.

 

Por verdes e por báquicos adornos

Vai c’roado de pâmpanos venustos

O deus pagão dos Vinhos acres, mornos,

Deus triunfador dos triunfadores justos.

 

Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,

A púrpura das glórias flamejantes,

Alarga as asas de relevos bravos...

 

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...

E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa

Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!

 

Gravura de Satã

(Gustave Doré: 1832-1883)

 

Referências:

 

CRUZ E SOUSA. Satã. In: __________. Broquéis. Ensaio Introdutório de Ivan Teixeira. São Paulo: Edusp, 1994. p. 53-54.

 

HADDAD, Jamil Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-78.

 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba (PR): Hemus, 2001.

 

OLIVERIA NETO, Godofredo. Cruz e Sousa: o poeta alforriado. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. (Personalidades Negras)

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