Entre os poetas amantes de gatos, é óbvio, não
poderia faltar o lusitano Fernando Pessoa. E ora vejam: Pessoa vai buscar a
figura de um bichano para deixar transparecer a proverbial perda de identidade
que, de algum modo, vem a explicar a pluralidade de heterônomos em que ele
próprio se esvaiu.
Tal como interpreto o poema em apreço,
percebe-se que o gajo não vê como sejam possíveis conflitos ontológicos no
felino, pois não há como este se expressar verbalmente para explicar o que lhe
vai no íntimo, suas sensações, seus anseios e ansiedades [puxa!, expressei-me
aqui como se fosse detentor de uma prosa elegante como a do sociólogo Octavio
Ianni (rs)]. Sente o que sente, e isto lhe basta para externalizar o seu
interno por meio de seus instintos. Nisso consiste a sua “felicidade”!
Mas o íntimo do poeta é muito mais complexo:
nele, há um embate – e, em Fernando Pessoa, poder-se-ia dizer até mesmo uma
desconexão! – entre o ser e o conhecer, entre o imanente e o explicável, entre
o objeto de conhecimento e o sujeito da análise que, em última instância, é o
próprio ente que busca se conhecer. Eis aí o eterno problema da autorreferência
com que tanto se debatia outro grande sociólogo: o alemão Niklas Luhmann!
Mas, digam-me, por qual razão Fernando Pessoa
escolheu falar de um gato para referir-lhe a posse plena de um nada que é todo
seu, quando poderia ter optado, por exemplo, por um cão?! (rs).
J.A.R.
– H.C.
Fernando Pessoa
Poeta Português
(1888-1935)
Gato que Brincas na Rua
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Referência:
PESSOA, Fernando. Gato que brincas na rua. In:
__________. Obra poética. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar,
1994. p. 156.
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