Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 22 de abril de 2014

Rilke – Gato Preto

Gatos para todos os gostos. Gatos agraciados pela pena de inúmeros poetas, de ontem e de hoje, daqui e dali. E muitas dessas criações vertidas ao português por grandes tradutores – como Augusto de Campos, a quem, alhures, já declinamos elogios aos seus belos e requintados trabalhos.


Augusto de Campos
(Poeta e Tradutor)

E aqui vai mais um poema: “Gato preto”, de Rilke, por meio do qual se parece sugerir que um bichano é capaz de recolher todos os olhares que lhe dirigimos, confiná-los dentro de si por dissimulação e, no retorno da mirada, fazer-nos ver, nesse mesmo olhar, nossa expressão reduzida à mera insignificância de um inseto – enquanto metáfora da pupila –, preso no âmbar amarelecido de seus olhos.

Ainda que um fantasma seja, existe algo suficientemente tangível, enquanto hipótese levantada pelo poema, com potencial para reproduzir um eco. Rilke projeta assim um clima inefável, misterioso, numinoso, sobrenatural até, para perscrutar o que acontece por trás da espessa pelagem de um gato negro.

Fantasmas levam-nos a suspenses e a temores do incerto que daí se propaga. E não há como deixar de associar tais referências à atmosfera das “Histórias Extraordinárias” de Allan Poe, especialmente à do conto com título similar ao da criação de Rilke: “O gato preto”.

J.A.R. – H.C.


 
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Schwarze Katze 

Ein Gespenst ist noch wie eine Stelle,
dran dein Blick mit einem Klange stößt;
aber da, an diesem schwarzen Felle
wird dein stärkstes Schauen aufgelöst:

wie ein Tobender, wenn er in vollster
Raserei ins Schwarze stampft,
jählings am benehmenden Gepolster
einer Zelle aufhört und verdampft.

Alle Blicke, die sie jemals trafen,
scheint sie also an sich zu verhehlen,
um darüber drohend und verdrossen
zuzuschauern und damit zu schlafen.
Doch auf einmal kehrt sie, wie geweckt,
ihr Gesicht und mitten in das deine:
und da triffst du deinen Blick im geelen
Amber ihrer runden Augensteine
unerwartet wieder: eingeschlossen
wie ein ausgestorbenes Insekt.


Black Cat
Kain White (Austrália, n. 1981)

Gato Preto 

Mesmo um fantasma é ainda um lugar
em que teu olho com um som se choca;
mas nesse velo negro em que ele toca,
o olhar mais forte pode se apagar:

tal como um louco, quando em pleno acesso,
a martelar na escuridão, possesso,
para ante o estofo surdo de uma cela
e de súbito cessa diante dela.

A todos os olhares ele oculta
como se lhes quisesse sobrepor
o seu; indolente e ameaçador,
dorme com eles e o sepulta.
Mas ei-lo, de improviso, ressurreto –
a sua face adentra a tua face
e de repente encontras teu olhar
no âmbar desse olho-pedra circular:
fechado em si, como se ele abrigasse
a múmia seca de um inseto.


Referência:

RILKE, Rainer Maria. Gato preto. In: CAMPOS, Augusto de (Sel. e Trad.). Coisas e anjos de Rilke. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 248-249. (Coleção Signos’; n. 30)

ö

Nenhum comentário:

Postar um comentário