William Shakespeare
(1564-1616)
Ítalo Calvino (1993, p. 10-11) interpretava as
obras clássicas como aqueles livros que nunca findaram em dizer aquilo que, de
fato, têm a articular. Mas Borges (2013, p. 275), o dileto escritor argentino,
defende outra tese: clássico seria “(...) um livro que as gerações humanas,
premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade”.
Borges parece “provocar” a bardolatria do
crítico norte-americano Harold Bloom – provocação meramente hipotética, é
claro! –, v.g., no pequeno ensaio transcrito a seguir (com negritos meus), quando
põe em dúvida a perduração indefinida das criações de Shakespeare: para ele, há
um perigo imenso em se postular que as obras clássicas permaneçam imunes à
passagem do tempo.
Também infensas às ideias canônicas de Bloom são
os comentários do escritor cubano José Kozer (2009, p. 78-79), em entrevista
incorporada ao opúsculo “O Que É Poesia?”:
Essa confusão que Harold Bloom inventou de
escrita forte e autores fortes, eu acho pouco útil: Shakespeare não é maior que
Cervantes, nem Shakespeare nem Cervantes, Camões ou Eça de Queiroz são
escritores fortes, sendo, por exemplo, Gautier ou Pasternak, escritores menos
fortes. São escritores cada um a seu modo, e sua escrita, hoje reconhecida como
maior, talvez em quinhentos anos se considere menor, e um Gautier ou um Mérimée
sejam os grandes escritores do futuro.
(...) De fato, atualmente, na escrita, não há
autores importantes: o que acontece em uma situação de igualdade dentro da
diferenciação, uma situação de comunidade (um tanto fantasmagórica) a partir das
individualidades que trabalham às cegas, a sós. Não há concorrência, não se
buscam privilégios, faz-se um trabalho e pronto. É suficiente ser ótimo entre
os bons e não o rei do mundo ou do mambo.
Poderia também sumariar, aqui, críticas
adicionais às peças de Shakespeare, como as tecidas por Liev Tolstói em ensaio
recolhido no livro “Os Últimos Dias”, da Companhia das Letras: sob o ponto de
vista do russo, o bardo tinha a “rara” capacidade de piorar as histórias
originárias que serviram de enredo às suas peças, ou melhor, sobretudo as mais
aclamadas, peças essas que, à época de sua elaboração – e diversamente ao que
ocorre nos dias de hoje –, não eram tomadas como plágio.
Mas este amante da literatura não destrata
ninguém de forma assim tão deselegante (rs). E sob tal óptica, convalido o
entendimento de Borges: a beleza pode estar em qualquer paragem, mesmo nas
“páginas casuais do medíocre”. E óbvio: Shakespeare está a anos-luz de ser
medíocre!
Particularmente, o que mais aprecio nas obras do
britânico é a linguagem cheia de imaginação, aquele poder de combinar palavras
para formar padrões e frases que se perpetuam no tempo, como se axiomas fossem.
Por outra via, nada obstante, talvez reconheça como válidas algumas das
críticas formuladas por Tolstói, em particular aquelas voltadas a evidenciar
que as intervenções do bardo nos enredos originários, vezes sem conta, possuem
o efeito de torná-los meio inverossímeis. Mas, neste caso, não deixa de ser
cabível uma pergunta que surge mais ou menos pronta: a verossimilhança é
requisito inafastável da literatura? A natureza mimética da literatura torna-a
mesmo imprescindível?
Sim ou não, de todo modo, digo eu: há, ali,
personagens demais escondidos atrás de cortinas; sangue demais, a escorrer
prodigalizadamente; verbalização demais, como se o silêncio só sobreviesse com
a morte de todos os intervenientes. E o resto é silêncio!
Prefiro interpretar o conjunto da obra de
Shakespeare como se fosse um correlato daquelas séries de pinturas de Matisse,
nas quais há, em cada tela, o domínio mais ou menos pronunciado de umas das
cores primárias do espectro. Assim, assim... Um inventário puro das emoções
humanas, como se, em cada uma das peças do bardo, houvesse a prevalência de uma
delas: ciúme em Otelo; vingança em Hamlet; ingratidão em Rei Lear; e por
aí vai.
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Sobre
os Clássicos
Poucas disciplinas haverá de maior interesse que
a etimologia: isso se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo
das palavras, ao longo do tempo. Uma vez dadas tais transformações, que podem
beirar o paradoxo, de nada ou quase nada nos servirá para o esclarecimento de
um conceito a origem de uma palavra. Saber que cálculo, em latim, quer dizer
pedrinha e que os pitagóricos usaram essas pedrinhas antes da invenção dos
números, não nos permite dominar os arcanos da álgebra; saber que hipócrita era
ator e ‘persona’, máscara, não é um instrumento valioso para o estudo da ética.
Da mesma forma, para fixar o que hoje entendemos por clássico, é inútil saber
que esse adjetivo provém do latim ‘classis’, frota, que mais tarde adquiriria o
sentido de ordem. (Lembremos, de passagem, a formação análoga de ‘ship-shape’).
O que é, agora, um livro clássico? Tenho ao
alcance da mão as definições de Eliot, Arnold e Sainte-Beuve, sem dúvida
razoáveis e luminosas, e gostaria de estar de acordo com esses ilustres
autores, mas não vou consultá-los. Completei sessenta e tantos anos; na minha
idade, coincidências ou novidades importam menos que o que consideramos
verdadeiro. Vou me limitar, portanto, a declarar o que pensei sobre esse ponto.
Meu primeiro estímulo foi uma “História da
Literatura Chinesa” (1901) de Herbert Allen Giles. No seu segundo capítulo, li
que um dos cinco textos canônicos que Confúcio editou é o “Livro das Mutações”
ou “I Ching”, formado por 64 hexagramas, que esgotam as combinações possíveis
de seis linhas partidas ou inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de
duas linhas inteiras, uma partida, e três inteiras, dispostas verticalmente. Um
imperador pré-histórico teria descoberto essas linhas na carapaça de uma das
tartarugas sagradas. Leibniz imaginou ver nos hexagramas um sistema binário de
numeração; outros, uma filosofia enigmática; outros, como Wilhelm, um
instrumento para a adivinhação do futuro, já que às 64 figuras correspondem as
64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros, um vocabulário de
certa tribo; outros, um calendário. Lembro que Xul Solar costumava reconstruir
esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o “Livro das
Mutações” corre o risco de parecer uma mera ‘chinoiserie’; mas milênios de
gerações de homens muito cultos o leram e releram com devoção e continuarão
lendo. Confúcio declarou a seus discípulos que se o destino lhe outorgasse mais
cem anos, dedicaria a metade deles a seu estudo e ao dos comentários, ou asas.
Escolhi, deliberadamente, um exemplo extremo,
uma leitura que exige um ato de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é
aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler
como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e
capaz de interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Para
os alemães e austríacos, “Fausto” é uma obra genial; para outros, uma das mais
famosas formas do tédio, como o segundo “Paraíso” de Milton ou a obra de
Rabelais. Livros como o de Jó, a “Divina Comédia”, “Macbeth” (e, para mim,
algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos
do futuro, exceto que diferirá do presente.
Uma preferência pode muito bem ser uma
superstição. Não tenho vocação para iconoclasta. Por volta de 1950,
acreditava, sob a influência de Macedónio Fernández, que a beleza é privilégio
de uns poucos autores; agora sei que é comum e que está à nossa espreita nas
páginas casuais do medíocre ou numa conversa de rua. Assim, meu
desconhecimento das letras malaias ou húngaras é total, mas estou seguro de
que, se o tempo me oferecesse a ocasião de estudá-las, nelas encontraria todos
os alimentos que o espírito requer. Além das barreiras linguísticas intervêm as
barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na Escócia; ao sul do
Tweed, tem menos interesse que Dunbar ou Stevenson. A glória de um poeta
depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que
a põem à prova, na solidão das bibliotecas.
As emoções que a literatura suscita talvez sejam
eternas, mas os meios devem variar constantemente, pelo menos de um modo
levíssimo, para não perderem sua virtude. Vão se desgastando à medida que o
leitor os reconhece. Daí o perigo de afirmar que existem obras clássicas e que
elas continuarão como tais para sempre.
Cada um pode descrer de sua arte e seus
artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a perduração indefinida de
Voltaire ou Shakespeare, creio (nesta tarde, num dos últimos dias de 1965) na
de Schopenhauer e na de Berkeley.
Clássico não é um livro (repito) que
necessariamente possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as gerações
humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa
lealdade.
Referências:
BORGES, Jorge Luis. Sobre os clássicos. In:
__________. Nova antologia pessoal. Tradução de Davi Arrigucci Jr.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 272-275.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
KOZER, José. O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?. In: Cruz, Edson (org.). O que é
poesia? Rio de Janeiro: Confraria do Vento; Calibán, 2009. p. 78-79.
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