Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Borges - Sobre os Clássicos

 

 William Shakespeare
(1564-1616) 

Ítalo Calvino (1993, p. 10-11) interpretava as obras clássicas como aqueles livros que nunca findaram em dizer aquilo que, de fato, têm a articular. Mas Borges (2013, p. 275), o dileto escritor argentino, defende outra tese: clássico seria “(...) um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade”.

 

Borges parece “provocar” a bardolatria do crítico norte-americano Harold Bloom – provocação meramente hipotética, é claro! –, v.g., no pequeno ensaio transcrito a seguir (com negritos meus), quando põe em dúvida a perduração indefinida das criações de Shakespeare: para ele, há um perigo imenso em se postular que as obras clássicas permaneçam imunes à passagem do tempo.

 

Também infensas às ideias canônicas de Bloom são os comentários do escritor cubano José Kozer (2009, p. 78-79), em entrevista incorporada ao opúsculo “O Que É Poesia?”:

 

Essa confusão que Harold Bloom inventou de escrita forte e autores fortes, eu acho pouco útil: Shakespeare não é maior que Cervantes, nem Shakespeare nem Cervantes, Camões ou Eça de Queiroz são escritores fortes, sendo, por exemplo, Gautier ou Pasternak, escritores menos fortes. São escritores cada um a seu modo, e sua escrita, hoje reconhecida como maior, talvez em quinhentos anos se considere menor, e um Gautier ou um Mérimée sejam os grandes escritores do futuro.


(...) De fato, atualmente, na escrita, não há autores importantes: o que acontece em uma situação de igualdade dentro da diferenciação, uma situação de comunidade (um tanto fantasmagórica) a partir das individualidades que trabalham às cegas, a sós. Não há concorrência, não se buscam privilégios, faz-se um trabalho e pronto. É suficiente ser ótimo entre os bons e não o rei do mundo ou do mambo.

 

Poderia também sumariar, aqui, críticas adicionais às peças de Shakespeare, como as tecidas por Liev Tolstói em ensaio recolhido no livro “Os Últimos Dias”, da Companhia das Letras: sob o ponto de vista do russo, o bardo tinha a “rara” capacidade de piorar as histórias originárias que serviram de enredo às suas peças, ou melhor, sobretudo as mais aclamadas, peças essas que, à época de sua elaboração – e diversamente ao que ocorre nos dias de hoje –, não eram tomadas como plágio.

 

Mas este amante da literatura não destrata ninguém de forma assim tão deselegante (rs). E sob tal óptica, convalido o entendimento de Borges: a beleza pode estar em qualquer paragem, mesmo nas “páginas casuais do medíocre”. E óbvio: Shakespeare está a anos-luz de ser medíocre!

 

Particularmente, o que mais aprecio nas obras do britânico é a linguagem cheia de imaginação, aquele poder de combinar palavras para formar padrões e frases que se perpetuam no tempo, como se axiomas fossem. Por outra via, nada obstante, talvez reconheça como válidas algumas das críticas formuladas por Tolstói, em particular aquelas voltadas a evidenciar que as intervenções do bardo nos enredos originários, vezes sem conta, possuem o efeito de torná-los meio inverossímeis. Mas, neste caso, não deixa de ser cabível uma pergunta que surge mais ou menos pronta: a verossimilhança é requisito inafastável da literatura? A natureza mimética da literatura torna-a mesmo imprescindível?

 

Sim ou não, de todo modo, digo eu: há, ali, personagens demais escondidos atrás de cortinas; sangue demais, a escorrer prodigalizadamente; verbalização demais, como se o silêncio só sobreviesse com a morte de todos os intervenientes. E o resto é silêncio!

 

Prefiro interpretar o conjunto da obra de Shakespeare como se fosse um correlato daquelas séries de pinturas de Matisse, nas quais há, em cada tela, o domínio mais ou menos pronunciado de umas das cores primárias do espectro. Assim, assim... Um inventário puro das emoções humanas, como se, em cada uma das peças do bardo, houvesse a prevalência de uma delas: ciúme em Otelo; vingança em Hamlet; ingratidão em Rei Lear; e por aí vai.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge Luis Borges

(1899-1986)


 Sobre os Clássicos

 

Poucas disciplinas haverá de maior interesse que a etimologia: isso se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo. Uma vez dadas tais transformações, que podem beirar o paradoxo, de nada ou quase nada nos servirá para o esclarecimento de um conceito a origem de uma palavra. Saber que cálculo, em latim, quer dizer pedrinha e que os pitagóricos usaram essas pedrinhas antes da invenção dos números, não nos permite dominar os arcanos da álgebra; saber que hipócrita era ator e ‘persona’, máscara, não é um instrumento valioso para o estudo da ética. Da mesma forma, para fixar o que hoje entendemos por clássico, é inútil saber que esse adjetivo provém do latim ‘classis’, frota, que mais tarde adquiriria o sentido de ordem. (Lembremos, de passagem, a formação análoga de ‘ship-shape’).

 

O que é, agora, um livro clássico? Tenho ao alcance da mão as definições de Eliot, Arnold e Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, e gostaria de estar de acordo com esses ilustres autores, mas não vou consultá-los. Completei sessenta e tantos anos; na minha idade, coincidências ou novidades importam menos que o que consideramos verdadeiro. Vou me limitar, portanto, a declarar o que pensei sobre esse ponto.

 

Meu primeiro estímulo foi uma “História da Literatura Chinesa” (1901) de Herbert Allen Giles. No seu segundo capítulo, li que um dos cinco textos canônicos que Confúcio editou é o “Livro das Mutações” ou “I Ching”, formado por 64 hexagramas, que esgotam as combinações possíveis de seis linhas partidas ou inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, uma partida, e três inteiras, dispostas verticalmente. Um imperador pré-histórico teria descoberto essas linhas na carapaça de uma das tartarugas sagradas. Leibniz imaginou ver nos hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofia enigmática; outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação do futuro, já que às 64 figuras correspondem as 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros, um vocabulário de certa tribo; outros, um calendário. Lembro que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o “Livro das Mutações” corre o risco de parecer uma mera ‘chinoiserie’; mas milênios de gerações de homens muito cultos o leram e releram com devoção e continuarão lendo. Confúcio declarou a seus discípulos que se o destino lhe outorgasse mais cem anos, dedicaria a metade deles a seu estudo e ao dos comentários, ou asas.

 

Escolhi, deliberadamente, um exemplo extremo, uma leitura que exige um ato de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Para os alemães e austríacos, “Fausto” é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo “Paraíso” de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de Jó, a “Divina Comédia”, “Macbeth” (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, exceto que diferirá do presente.

 

Uma preferência pode muito bem ser uma superstição. Não tenho vocação para iconoclasta. Por volta de 1950, acreditava, sob a influência de Macedónio Fernández, que a beleza é privilégio de uns poucos autores; agora sei que é comum e que está à nossa espreita nas páginas casuais do medíocre ou numa conversa de rua. Assim, meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras é total, mas estou seguro de que, se o tempo me oferecesse a ocasião de estudá-las, nelas encontraria todos os alimentos que o espírito requer. Além das barreiras linguísticas intervêm as barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na Escócia; ao sul do Tweed, tem menos interesse que Dunbar ou Stevenson. A glória de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão das bibliotecas.

 

As emoções que a literatura suscita talvez sejam eternas, mas os meios devem variar constantemente, pelo menos de um modo levíssimo, para não perderem sua virtude. Vão se desgastando à medida que o leitor os reconhece. Daí o perigo de afirmar que existem obras clássicas e que elas continuarão como tais para sempre.

 

Cada um pode descrer de sua arte e seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a perduração indefinida de Voltaire ou Shakespeare, creio (nesta tarde, num dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.

 

Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade.

 

Referências:

 

BORGES, Jorge Luis. Sobre os clássicos. In: __________. Nova antologia pessoal. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 272-275.

 

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

KOZER, José. O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?. In: Cruz, Edson (org.). O que é poesia? Rio de Janeiro: Confraria do Vento; Calibán, 2009. p. 78-79.

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