Muitos são os poemas em que o gato –
essa figura tão próxima dos humanos, embora superenigmática – serviu de
referência para as criações da espécie, empresa para a qual os artistas da
palavra, com prodigalidade, lançaram mão dos mais distintos arquétipos à sua disposição no Parnaso.
Podemos mencionar, ainda no âmbito
literário, outras produções já nos moldes da prosa romanceada, tal como “Eu sou
um gato”, do escritor e filósofo japonês Natsume Soseki (1867-1916), traduzido
e publicado aqui no Brasil pela Editora Estação Liberdade.
Mas, intenso e independente como tanto,
o amor pelos gatos não se limita a tais exemplos, extravasando para outros
itinerários mais espetaculosos: quem não se lembraria do musical “Cats”, da
década de 80, e que ficou por quase duas décadas na Broadway?!
Tomando então o felino como um mote, e assim
como o fizemos para o tema da “beleza”, postaremos aqui inúmeras poesias entoando
loas ao bichano. Afinal, há quem, por amá-lo tanto, não se satisfaz em ser o
feliz proprietário de um apenas, senão que usufrui um prazer imenso em se ver
cingido por inúmeros deles!
Começaremos com uma ode do poeta chileno
Pablo Neruda (um poeta e tanto!), que, costumeiramente, encontramos em qualquer
antologia mais criteriosa de seus poemas mais
representativos, que se ouse publicar.
Oda al Gato
(Pablo Neruda)
Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola,
tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares,
gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente
terminado,
camina solo y sabe lo
que quiere.
El hombre quiere ser
pescado y pájaro,
la serpiente quisiera
tener alas,
el perro es un león
desorientado,
el ingeniero quiere
ser poeta,
la mosca estudia para
golondrina,
el poeta trata de
imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento
a rata viva,
desde la noche hasta
sus ojos de oro.
No hay unidad
como él,
no tienen
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el
topacio,
y la elástica línea
en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa
de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las
monedas de la noche.
Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin
patria,
mínimo tigre de
salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas
eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado
pie del gato.
Oh fiera
independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta
de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido
terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres
misterio,
todo el mundo te sabe
y perteneces
al habitante menos
misterioso,
tal vez todos lo
creen,
todos se creen
dueños,
propietarios, tíos
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.
Yo no.
Yo no suscribo.
Yo no conozco al
gato.
Todo lo sé, la vida y
su archipiélago,
el mar y la ciudad
incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus
extravíos,
el por y el menos de
la matemática,
los embudos
volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del
cocodrilo,
la bondad ignorada
del bombero,
el atavismo azul del
sacerdote,
pero no puedo
descifrar un gato.
Mi razón resbaló en
su indiferencia,
sus ojos tienen
números de oro.
Ode ao Gato
(Pablo Neruda)
Tradução de Eliane
Zagury
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo,
tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se
foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas,
graça, voo.
O gato,
só gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente
terminado,
anda sozinho e sabe o
que quer.
O homem quer ser
peixe e pássaro,
a serpente quisera
ter asas,
o cachorro é um leão
desorientado,
o engenheiro quer ser
poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de
imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode até o rabo,
do pressentimento à
ratazana viva,
da noite até os seus
olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o
topázio,
e a elástica linha em
seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de
uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas
da noite.
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem
pátria,
mínimo tigre de
salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiado
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé
do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas
mistério,
todo o mundo sabe de
ti e pertences
ao habitante menos
misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem
donos,
proprietários, tios
de gatos,
companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o
gato.
Tudo sei, a vida e o seu
arquipélago,
o mar e a cidade
incalculável,
a botânica,
o gineceu com os seus
extravios,
o pôr e o menos da
matemática,
os funis vulcânicos
do mundo,
a casca irreal do
crocodilo,
a bondade ignorada do
bombeiro,
o atavismo azul do
sacerdote,
mas não posso
decifrar um gato.
Minha razão resvalou
na sua indiferença,
os seus olhos têm
números de ouro.
Referência:
NERUDA, Pablo. Oda al gato. In:
__________. Antologia poética. 22. ed.
Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 238-242.
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