Baruch Spinoza (1632-1677)
Espinosa, filósofo filho de marranos
portugueses, originários da Espanha, que foram expulsos e se instalaram,
posteriormente, em Amsterdã, foi honrado em sonetos de Machado de Assis, um dos
mestres da literatura brasileira, e de Jorge Luis Borges, idem das letras
argentinas.
Ambos os sonetos retratam o fato de o
filósofo ganhar a vida de um modo até simplório, como polidor de lentes. Isso,
não obstante, não o impedia de ter ideias algo originais: o que se conhece hoje
como “panteísmo”, a sustentar a hipótese de que um elemento divino se manifesta
por meio das forças da natureza, nele tem um de seus proêmios. Com efeito, o
segundo terceto do soneto de Borges se reporta a tal noção: os vocábulos que se
referem a Deus aparecem com iniciais maiúsculas e estão associados ao infinito
e suas estrelas, agora bem, à natura “lato sensu”.
E se não estiver sendo profanador ao
fazer elucubrações sobre o correto lugar das coisas, diria que essa mesma dicotomia
entre o simplório labor e “mente com ideias coruscantes” aparece, como um símile,
em Fernando Pessoa: são assombrosos os “insights” do poeta português, que não se
satisfez em ser um, mas muitos que se “liquefazem” em suas criações
heteronímicas, ao mesmo tempo que restritas as suas atividades de labor à
tipografia, às de escriturário ou pouco mais que isso.
Espinosa (Machado de
Assis)
Gosto de ver-te,
grave e solitário,
Sob o fumo da
esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta
de operário,
E na cabeça a coruscante ideia.
E enquanto o
pensamento delineia
Uma filosofia, o pão
diário
A tua mão a labutar
granjeia
E achas na independência o teu salário.
Soem cá fora
agitações e lutas,
Sibile o bafo
aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas.
Sóbrio, tranquilo,
desvelado e terno,
A lei comum, e
morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
Espinosa (Jorge Luis Borges)
As translúcidas mãos
do judeu
lavoram na penumbra
suas lentes
e a tarde que declina
é medo e frio.
(As tardes são idênticas às tardes.)
As mãos e mais o
espaço de jacinto
que empalidece no
confim do gueto
quase não existem
para o homem quieto
que está sonhando um claro labirinto.
Não o perturba a
fama, esse reflexo
de sonhos sobre o
sonho de outro espelho,
nem o amor temeroso das donzelas.
Libertado da metáfora
e do mito
lavra um árduo
cristal: o infinito
mapa d’Aquele que é as Suas Estrelas.
Borges, alhures [1], deplora o fato de
Espinosa haver sido excomungado da comunidade judaica de Amsterdã, exatamente
no dia 27 de julho (logo no dia do meu aniversário?!) de 1656, “com todas as
lúgubres formalidades do ritual hebraico”. Os termos da excomunhão são
terríveis, e podem ser examinados na seguinte transcrição que Will Durant (1996, p.
158-159) apresenta em sua “História da Filosofia” (negritos nossos):
“Os chefes do
Conselho Eclesiástico fazem saber que, já bem convencidos das nocivas opiniões
e atos de Baruch de Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias
promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que
não conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo
contrário, a cada dia têm mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e
confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e
difundidas, com muitas pessoas merecedoras de crédito tendo testemunhado isso
na presença do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das
mesmas. Por isso, realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do
Conselho Eclesiástico, ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros,
anatematizar o referido Spinoza, isolá-lo do povo de Israel e, a partir do
presente momento, colocá-lo na anátema com a seguinte maldição:
Com o julgamento dos
anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos
Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra comunidade, na presença
dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos, pronunciando contra
ele a maldição com a qual Elisha amaldiçoou as crianças e todas as maldições
escritas no Livro da Lei. Que ele seja
maldito durante o dia, e maldito à noite, que seja maldito deitado, e maldito
ao se levantar, maldito ao sair, e maldito ao entrar. Que o Senhor nunca
mais o perdoe ou o reconheça, que a ira e a indignação do Senhor queimem daqui
por diante contra esse homem, carreguem-no de todas as maldições escritas no
Livro da Lei e apaguem seu nome sob o céu; que o Senhor o afaste do mal de
todas as tribos de Israel, coloque sobre ele todas as maldições do firmamento
contidas no Livro da Lei; e que todos vós que fordes obedientes ao Senhor vosso
Deus sejais salvos nesta data.
Ficam, portanto, todos advertidos de
que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá comunicar-se com ele por
escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém resida sob o mesmo
teto que ele, ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados, e que ninguém
leia qualquer documento ditado por ele ou escrito por sua mão”.
Marilena Chauí, igualmente filósofa, em
sua apresentação à obra de Espinosa, dá-nos ciência dos motivos dessa
excomunhão. O pensador alinhava-se àqueles homens que: “Negam a verdade das
Escrituras e do Deus nela revelado, substituindo-o por um Deus-Natureza. Negam
a fé, só aceitam o poder natural da razão e, portanto, negam os milagres. Negam
que haja um povo eleito e perguntam por que Deus não se teria dado a conhecer a
todos os homens” (CHAUÍ, 2004, p. 7).
Contudo, como o comprova a sua obra
posterior, trata-se de um “homem do mundo”, “nem asceta nem solitário”, como o
diz Chauí (2004, p. 8). E sob este aspecto, em provável revisão de sua
biografia, já se o percebe como uma pessoa que não viveu os seus 45 anos na
proscrição, qual um solitário – como no dizer de Machado –, mas suficientemente
integrado aos “círculos culturais holandeses”.
Baruch, “Bento” em bom português, é um
prenome que se antepõe como antítese a alguém que foi excomungado com tamanho
obscurantismo. Mas o apuro de seu pensar, com lógica e razão, respalda um
arbítrio livre de superstições e assente sobre uma consciência, antes de tudo, íntegra.
Sua luneta não se limitou, em
consequência, a mirar apenas para o próprio umbigo, senão que também apontou para as estrelas do firmamento, a expressão mais fidedigna de abundância de todo
um universo ainda incógnito.
J.A.R. – H.C.
Nota:
[1]. Em (BORGES; FERRARI, 2009, p. 72), o autor argentino assim comenta: “[...] Atualmente, os judeus o reivindicam, mas foi anatematizado pela sinagoga. Ele não quis aceitar o cristianismo, e agora é visto como judeu; evidentemente ele era judeu, mas foi recusado pela sinagoga. Claro, agora que é famoso, lhe retiraram a excomunhão, mas o anátema está aí, não? Que é terrível, porque aí se diz que ele é maldito, e que tem que ser maldito quando estiver de pé, quando estiver deitado, quando estiver saindo, quando estiver entrando, de dia, de noite, nos dois crepúsculos, sempre. Essa sentença que pronunciaram é terrível. De modo que ele ficou equidistante da igreja e da sinagoga, ficou só com essa fé...”.
Referências:
[1]. Em (BORGES; FERRARI, 2009, p. 72), o autor argentino assim comenta: “[...] Atualmente, os judeus o reivindicam, mas foi anatematizado pela sinagoga. Ele não quis aceitar o cristianismo, e agora é visto como judeu; evidentemente ele era judeu, mas foi recusado pela sinagoga. Claro, agora que é famoso, lhe retiraram a excomunhão, mas o anátema está aí, não? Que é terrível, porque aí se diz que ele é maldito, e que tem que ser maldito quando estiver de pé, quando estiver deitado, quando estiver saindo, quando estiver entrando, de dia, de noite, nos dois crepúsculos, sempre. Essa sentença que pronunciaram é terrível. De modo que ele ficou equidistante da igreja e da sinagoga, ficou só com essa fé...”.
Referências:
ASSIS, Machado de. Espinosa. In: __________. Obras
completas: o almada & outros poemas. São Paulo: Globo, 1997. p.
140-141.
BORGES, Jorge Luis. Espinosa. In: Nova antologia pessoal. Tradução de Heloisa Jahn. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 40.
BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Spinoza. In: __________. Sobre a amizade e outros diálogos. São Paulo: Hedra, 2009. p. 70-76.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: ESPINOSA, Baruch. Espinosa. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 5-20.
DURANT, Will. Spinoza. In: __________. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 153-197.
BORGES, Jorge Luis. Espinosa. In: Nova antologia pessoal. Tradução de Heloisa Jahn. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 40.
BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Spinoza. In: __________. Sobre a amizade e outros diálogos. São Paulo: Hedra, 2009. p. 70-76.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: ESPINOSA, Baruch. Espinosa. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 5-20.
DURANT, Will. Spinoza. In: __________. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 153-197.
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