Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Espinosa em Sonetos de Machado e Borges


Baruch Spinoza (1632-1677)
Espinosa, filósofo filho de marranos portugueses, originários da Espanha, que foram expulsos e se instalaram, posteriormente, em Amsterdã, foi honrado em sonetos de Machado de Assis, um dos mestres da literatura brasileira, e de Jorge Luis Borges, idem das letras argentinas.
Ambos os sonetos retratam o fato de o filósofo ganhar a vida de um modo até simplório, como polidor de lentes. Isso, não obstante, não o impedia de ter ideias algo originais: o que se conhece hoje como “panteísmo”, a sustentar a hipótese de que um elemento divino se manifesta por meio das forças da natureza, nele tem um de seus proêmios. Com efeito, o segundo terceto do soneto de Borges se reporta a tal noção: os vocábulos que se referem a Deus aparecem com iniciais maiúsculas e estão associados ao infinito e suas estrelas, agora bem, à natura “lato sensu”.
E se não estiver sendo profanador ao fazer elucubrações sobre o correto lugar das coisas, diria que essa mesma dicotomia entre o simplório labor e mente com ideias coruscantes” aparece, como um símile, em Fernando Pessoa: são assombrosos os “insights do poeta português, que não se satisfez em ser um, mas muitos que se “liquefazem” em suas criações heteronímicas, ao mesmo tempo que restritas as suas atividades de labor à tipografia, às de escriturário ou pouco mais que isso.
Espinosa (Machado de Assis)
Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo da esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante ideia.
E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas.
Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.

Espinosa (Jorge Luis Borges)
As translúcidas mãos do judeu
lavoram na penumbra suas lentes
e a tarde que declina é medo e frio.
(As tardes são idênticas às tardes.)
As mãos e mais o espaço de jacinto
que empalidece no confim do gueto
quase não existem para o homem quieto
que está sonhando um claro labirinto.
Não o perturba a fama, esse reflexo
de sonhos sobre o sonho de outro espelho,
nem o amor temeroso das donzelas.
Libertado da metáfora e do mito
lavra um árduo cristal: o infinito
mapa d’Aquele que é as Suas Estrelas.
Borges, alhures [1], deplora o fato de Espinosa haver sido excomungado da comunidade judaica de Amsterdã, exatamente no dia 27 de julho (logo no dia do meu aniversário?!) de 1656, “com todas as lúgubres formalidades do ritual hebraico”. Os termos da excomunhão são terríveis, e podem ser examinados na seguinte transcrição que Will Durant (1996, p. 158-159) apresenta em sua “História da Filosofia” (negritos nossos):
“Os chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber que, já bem convencidos das nocivas opiniões e atos de Baruch de Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que não conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo contrário, a cada dia têm mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e difundidas, com muitas pessoas merecedoras de crédito tendo testemunhado isso na presença do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das mesmas. Por isso, realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do Conselho Eclesiástico, ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros, anatematizar o referido Spinoza, isolá-lo do povo de Israel e, a partir do presente momento, colocá-lo na anátema com a seguinte maldição:
Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra comunidade, na presença dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos, pronunciando contra ele a maldição com a qual Elisha amaldiçoou as crianças e todas as maldições escritas no Livro da Lei. Que ele seja maldito durante o dia, e maldito à noite, que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar, maldito ao sair, e maldito ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou o reconheça, que a ira e a indignação do Senhor queimem daqui por diante contra esse homem, carreguem-no de todas as maldições escritas no Livro da Lei e apaguem seu nome sob o céu; que o Senhor o afaste do mal de todas as tribos de Israel, coloque sobre ele todas as maldições do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que fordes obedientes ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesta data.
Ficam, portanto, todos advertidos de que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá comunicar-se com ele por escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém resida sob o mesmo teto que ele, ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados, e que ninguém leia qualquer documento ditado por ele ou escrito por sua mão”.
Marilena Chauí, igualmente filósofa, em sua apresentação à obra de Espinosa, dá-nos ciência dos motivos dessa excomunhão. O pensador alinhava-se àqueles homens que: “Negam a verdade das Escrituras e do Deus nela revelado, substituindo-o por um Deus-Natureza. Negam a fé, só aceitam o poder natural da razão e, portanto, negam os milagres. Negam que haja um povo eleito e perguntam por que Deus não se teria dado a conhecer a todos os homens” (CHAUÍ, 2004, p. 7).
Contudo, como o comprova a sua obra posterior, trata-se de um “homem do mundo”, “nem asceta nem solitário”, como o diz Chauí (2004, p. 8). E sob este aspecto, em provável revisão de sua biografia, já se o percebe como uma pessoa que não viveu os seus 45 anos na proscrição, qual um solitário – como no dizer de Machado –, mas suficientemente integrado aos “círculos culturais holandeses”.
Baruch, “Bento” em bom português, é um prenome que se antepõe como antítese a alguém que foi excomungado com tamanho obscurantismo. Mas o apuro de seu pensar, com lógica e razão, respalda um arbítrio livre de superstições e assente sobre uma consciência, antes de tudo, íntegra.
Sua luneta não se limitou, em consequência, a mirar apenas para o próprio umbigo, senão que também apontou para as estrelas do firmamento, a expressão mais fidedigna de abundância de todo um universo ainda incógnito.
J.A.R. – H.C.
Nota:

[1]. Em (BORGES; FERRARI, 2009, p. 72), o autor argentino assim comenta: [...] Atualmente, os judeus o reivindicam, mas foi anatematizado pela sinagoga. Ele não quis aceitar o cristianismo, e agora é visto como judeu; evidentemente ele era judeu, mas foi recusado pela sinagoga. Claro, agora que é famoso, lhe retiraram a excomunhão, mas o anátema está aí, não? Que é terrível, porque aí se diz que ele é maldito, e que tem que ser maldito quando estiver de pé, quando estiver deitado, quando estiver saindo, quando estiver entrando, de dia, de noite, nos dois crepúsculos, sempre. Essa sentença que pronunciaram é terrível. De modo que ele ficou equidistante da igreja e da sinagoga, ficou só com essa fé...”.

Referências:
ASSIS, Machado de. Espinosa. In: __________. Obras completas: o almada & outros poemas. São Paulo: Globo, 1997. p. 140-141.

BORGES, Jorge Luis. Espinosa. In: Nova antologia pessoal. Tradução de Heloisa Jahn. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 40.

BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Spinoza. In: __________. Sobre a amizade e outros diálogos. São Paulo: Hedra, 2009. p. 70-76.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: ESPINOSA, Baruch. Espinosa. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 5-20.

DURANT, Will. Spinoza. In: __________. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 153-197.

Nenhum comentário:

Postar um comentário