Borges, um de meus poetas diletos, também foi autor de poema dedicado
à figura de um gato que, estando ao alcance dos lentos afagos de seu dono,
ainda assim não se deixa perscrutar em sua solidão e segredo.
Distintamente de muitos outros poemas aqui postados tendo o bichano por
tema – tais como os de Baudelaire, nos quais os atributos do gato aparecem com significados algo ambivalentes, certas vezes a consistir em legítimas
metáforas do universo feminino –, temos aqui, na criação do mestre argentino,
um gato “ipsis litteris”: o brilho da pupila a possibilitar miradas à
distância, mesmo que na penumbra; o comportamento independente e solitário, por
meio do qual logra entesourar todos os seus mistérios; e a companhia humana
cariciosa, brandamente aceita desde a noite dos tempos.
Aos leitores, o prazer do texto: o melhor, mesmo, é apreciar toda a
perícia do labor poético de Borges no original, em espanhol. Para quem interessar
possa, não obstante, ofereço uma tradução em seguida, com o máximo de
literalidade possível.
J.A.R. – H.C.
A Un Gato
No son más
silenciosos los espejos
ni más furtiva el
alba aventurera;
eres, bajo la luna,
esa pantera
que nos es dado
divisar de lejos.
Por obra
indescifrable de un decreto
divino, te buscamos
vanamente;
más remoto que el
Ganges y el poniente,
tuya es la soledad,
tuyo el secreto.
Tu lomo condesciende
a la morosa
caricia de mi mano.
Has admitido,
desde esa eternidad
que ya es olvido,
el amor de la mano
recelosa.
En otro tiempo estás.
Eres el dueño
de un ámbito cerrado
como un sueño.
A Um Gato
Não são mais
silenciosos os espelhos
nem mais furtiva a madrugada
aventureira;
és, sob a lua, essa
pantera
que nos é dado
divisar de longe.
Por obra indecifrável
de um decreto
divino, buscamos-te em
vão;
mais remoto que o
Ganges e o poente,
tua é a solidão, teu
o segredo.
Teu dorso condescende
à morosa
carícia da minha mão.
Tens admitido,
desde essa eternidade
que já é olvido,
o amor da mão
receosa.
Em outro tempo estás.
És o dono
de um âmbito cerrado
como um sonho.
BORGES, Jorge Luis. A un gato. In: __________. Obra poética. V. 2, 2. reimp. Madrid: Alianza Editorial, 1999. p. 334.
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