Tomando metaforicamente a figura do gato para associá-la à do crítico, o
autor português Fialho de Almeida dá-nos o mote para este post. O excerto que
abaixo transcrevemos foi selecionado entre aqueles do folhetim literário “Os
Gatos” – que o escritor levou à frente entre 1889 e 1894 –, pelo crítico e literato
brasileiro Massaud Moisés, conforme identificamos na referência ao final.
Em complemento às palavras de Fialho, também apresentamos,
antecedentemente, os comentários de Moisés sobre a passagem em referência. Além
disso, em toda a transcrição, quando presentes, os textos entre colchetes são
de minha autoria, com o objetivo de esclarecer os pontos que possam suscitar eventuais
dúvidas.
J.A.R. – H.C.
José Valentim Fialho de Almeida
(1857-1911)
Inspirados nAs Farpas [outro folhetim para o qual Fialho também contribuiu], os folhetins dOs Gatos começaram a ser publicados em agosto de 1889, e terminaram
em janeiro de 1894. Subintitulando-se “publicação mensal, de inquérito à vida
portuguesa”, os panfletos possuíam objetivo certo, definidos nas considerações
introdutórias ao primeiro fascículo, que se transcrevem a seguir. Obra de
ataque e sarcasmo, destila fel contra instituições e pessoas, e documenta
flagrantemente não só a quadra em torno do “Ultimatum” inglês (1890), como os
próprios transes do escritor nesses anos. Desiguais do ângulo literário, Os Gatos centram sua atenção em acontecimentos
fugazes do dia-a-dia, a saber: “os roubos nos conventos”, “Portugal governado pelas
esposas e filhas dos ministros” etc.
Deus fez o homem à
sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.
Ao crítico deu ele,
como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronron e a garra, a língua
espinhosa e a calinerie [meiguice].
Fê-lo nervoso e ágil, refletido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta
até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e
terrível com agressores e adversários. – Um pouco lambareiro talvez perante as
belas coisas, e um quase nada cético perante as coisas consagradas: achando a
quase todos os deuses pés de barro, ventre de jiboia a quase todos os homens, e
a quase todos os tribunais, portas travessas. – Amigo de fazer jongleries [malabarismos] com a primeira
bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um tratado, ou seja um código. –
Paciente em aguardar; manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a
sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a
presa, por fazer da agonia dela, uma distração: ora enrolando-a como um
cigarro, entre as patinha de veludo: ora fingindo que lhe concede a liberdade,
e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a,
te a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso
tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato –
isto é o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia
– por que não escolheremos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao
nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das
dentadas famintas do cachorro.
Razão por que nos
acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca.
(Os Gatos, 6 vols., ed. rev., pref. e
anot. por Álvaro
Júlio da Costa
Pimpão, vol. I,
Lisboa, Clássica
Edit., 1945, pp.
41-43.)
Referência:
ALMEIDA, Fialho de. Os gatos. In:
Moisés, Massaud. A literatura portuguesa
através dos textos. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1969. p. 349-350.
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