Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Fialho de Almeida – O Crítico à Semelhança do Gato

Tomando metaforicamente a figura do gato para associá-la à do crítico, o autor português Fialho de Almeida dá-nos o mote para este post. O excerto que abaixo transcrevemos foi selecionado entre aqueles do folhetim literário “Os Gatos” – que o escritor levou à frente entre 1889 e 1894 –, pelo crítico e literato brasileiro Massaud Moisés, conforme identificamos na referência ao final.

Em complemento às palavras de Fialho, também apresentamos, antecedentemente, os comentários de Moisés sobre a passagem em referência. Além disso, em toda a transcrição, quando presentes, os textos entre colchetes são de minha autoria, com o objetivo de esclarecer os pontos que possam suscitar eventuais dúvidas.

J.A.R. – H.C. 
José Valentim Fialho de Almeida
(1857-1911)

Inspirados nAs Farpas [outro folhetim para o qual Fialho também contribuiu], os folhetins dOs Gatos começaram a ser publicados em agosto de 1889, e terminaram em janeiro de 1894. Subintitulando-se “publicação mensal, de inquérito à vida portuguesa”, os panfletos possuíam objetivo certo, definidos nas considerações introdutórias ao primeiro fascículo, que se transcrevem a seguir. Obra de ataque e sarcasmo, destila fel contra instituições e pessoas, e documenta flagrantemente não só a quadra em torno do “Ultimatum” inglês (1890), como os próprios transes do escritor nesses anos. Desiguais do ângulo literário, Os Gatos centram sua atenção em acontecimentos fugazes do dia-a-dia, a saber: “os roubos nos conventos”, “Portugal governado pelas esposas e filhas dos ministros” etc.

Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.

Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronron e a garra, a língua espinhosa e a calinerie [meiguice]. Fê-lo nervoso e ágil, refletido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários. – Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada cético perante as coisas consagradas: achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jiboia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas. – Amigo de fazer jongleries [malabarismos] com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um tratado, ou seja um código. – Paciente em aguardar; manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela, uma distração: ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinha de veludo: ora fingindo que lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, te a deixar num picado ou num frangalho.

Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato – isto é o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – por que não escolheremos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.

Razão por que nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca.
(Os Gatos, 6 vols., ed. rev., pref. e
anot. por Álvaro Júlio da Costa
Pimpão, vol. I, Lisboa, Clássica
Edit., 1945, pp. 41-43.)

Referência:

ALMEIDA, Fialho de. Os gatos. In: Moisés, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1969. p. 349-350.
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