Elias Canetti (1905-1994), nascido na Bulgária de pais judeus espanhóis,
foi condecorado com o Prêmio Nobel de 1981. Ele é o autor do romance “Auto-de-fé”
(“Die Blendung”), de 1935, além de inúmeros ensaios e coletâneas de aforismos,
dentre os quais, sobressai o insinuante “A Consciência das Palavras” (“Das
Gewissen der Worte”), de 1976.
É de lá que extraímos o discurso “O Ofício do Poeta”, do mesmo ano, a restabelecer,
numa inspirada alocução, a potência revolucionária que têm as palavras para a
edificação do universo à nossa volta.
Fazemos ver que os pontos grafados em itálico, ao longo do texto
transcrito, são do próprio autor, para acentuar-lhes a inflexão no curso da
leitura. Quanto às distinções de algumas passagens, em cor contrastante com o
restante do escrito, são de nossa autoria, e surgem como proposta de alerta redobrado
para a retenção daquilo que postula Canetti.
J.A.R. – H.C.
O Ofício do Poeta(*)
(Elias Canetti)
Discurso proferido em
Munique, em 1976
“Poeta” pertence àquela categoria de
palavras que, durante um certo tempo, caíram enfermas, em desamparada exaustão:
eram evitadas e dissimuladas – seu uso expunha-nos ao ridículo – e foram tão
exauridas que, enrugadas e feias, transformaram-se em sinal de perigo. Aquele
que, não obstante, se punha a exercer a atividade – que, como sempre,
prosseguiu existindo – chamava a si próprio “alguém que escreve”.
Ter-se-ia podido pensar, então, que se
tratava de renunciar a uma falsa pretensão, de descobrir novos critérios, de se
tornar mais rigoroso consigo e, particularmente, de evitar tudo o que pudesse
levar a êxitos indignos. Na realidade, aconteceu o contrário: os métodos para
causar sensação foram conscientemente desenvolvidos e intensificados justamente
por aqueles que, aos golpes, rechaçavam sem piedade a palavra “poeta”. A
opinião mesquinha de que toda literatura estava morta era formulada em palavras
patéticas, como uma proclamação, impressa em papel valioso e discutida tão
séria e solenemente como se se tratasse de uma construção intelectual complexa
e difícil. É certo que esse caso particular afogou-se logo em seu próprio
ridículo. Outros, porém, que não eram suficientemente estéreis para se
esgotarem em uma proclamação, que conceberam livros amargos e talentosos, muito
em breve passaram a gozar de grande prestígio e, como “alguém que escreve”,
faziam justamente aquilo que antes os poetas costumavam fazer: em vez de se
calarem, continuavam escrevendo sempre o mesmo livro. Por mais que a humanidade
lhes parecesse incorrigível e digna de morte, restava-lhe ainda uma função:
aplaudi-los. Quem não sentisse vontade alguma de fazê-lo, quem estivesse
enfastiado de tais efusões sempre idênticas, era duplamente amaldiçoado: como
homem (o que já nada significava) e como alguém que se recusava a reconhecer no
infinito desejo de morte daquele que escrevia a única coisa ainda com valor.
Os senhores compreenderão que, em face
de tais fenômenos, não manifesto menor desconfiança com relação àqueles que só
escrevem do que àqueles que, além disso, presunçosamente se autodenominam
poetas. Não vejo diferença alguma entre eles; igualam-se como um ovo a outro: o
prestígio que porventura alcançaram parece-lhes um direito.
O que ocorre, na realidade, é que
ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo.
Quem não vê o estado do mundo em que vivemos dificilmente terá algo a dizer
sobre ele. O perigo de que é alvo, antes preocupação central das religiões,
deslocou-se para o aquém. O ocaso do mundo, experimentado mais de uma vez, é
visto com frieza por aqueles que não são poetas; alguns há que calculam suas
chances de fazer disso o seu negócio e engordar cada vez mais com ele. Desde
que as confiamos a máquinas, as profecias perderam todo o valor. Quanto mais
nos cindimos de nós, quanto mais confiamos a instâncias sem vida, tanto menos
somos senhores daquilo que acontece. Nosso poder crescente sobre tudo – sobre o
animado, o inanimado, e, principalmente, sobre nossos semelhantes –
transformou-se em um contrapoder, que só aparentemente controlamos. Haveria
centenas e milhares de coisas a dizer a esse respeito, mas tudo já é conhecido,
e nisso reside o fato mais estranho: tornou-se, em cada detalhe, notícia diária
de jornal, perversa banalidade. Os senhores não esperem que eu repita tudo isso
aqui; hoje, propus-me uma outra coisa, algo mais modesto.
Talvez valha o esforço refletir se
nesta situação do mundo existe algo por meio do qual os poetas, ou aquilo que
até o momento se considera como tal, possam fazer-se úteis. De qualquer modo,
apesar de todos os reveses que a palavra “poeta” sofreu, algo restou de sua
pretensão. A literatura pode ser o que for, mas uma coisa não é – assim como
não o é a humanidade que a ela ainda se agarra: a literatura não é algo morto.
No que consistiria então a vida daquele que hoje a representa? O que teria para
oferecer?
Há pouco tempo, deparei por acaso com
um escrito de um autor anônimo, cujo nome não posso dizer justamente pelo fato
de que ninguém o conhece. Esse escrito data de 23 de agosto de 1939, ou seja,
uma semana antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, e diz: “Tudo, porém, já
passou. Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a
guerra”.
Que disparate!, dir-se-ia hoje, quando
se sabe o que aconteceu desde então. Que pretensão! O que teria um indivíduo
podido impedir, e por que justamente um poeta? Pode-se conceder uma
reivindicação mais distante da realidade? E o que diferencia essa frase do
estilo bombástico daqueles que com suas frases conscientemente deram origem à
guerra?
Li a frase com irritação e, com
irritação crescente, anotei-a. Encontrei aqui, pensei comigo, o que mais me
repugna nesta palavra “poeta” – uma pretensão que está em crassa tradição com aquilo
que um poeta poderia alcançar, um exemplo da jactância que desacreditou essa
palavra e nos enche de desconfiança, tão logo um membro da corporação bata no
peito e comece a desfiar seu rosário de objetivos magnânimos.
Então, ao longo dos dias que se
seguiram, percebi, para meu espanto, que a frase não me deixava, que sempre
voltava-me à mente, que eu a retomava, dissecava, repelia e voltava a
retomá-la, como se coubesse apenas a mim encontrar nela um sentido. Era já
estranha pelo modo como se iniciava – “Tudo, porém, já passou” –, expressão de
uma derrota completa e desesperadora numa época em que as vitórias deveriam
começar. Porquanto tudo estivesse voltado para essas vitórias, a frase exprime
já o desconsolo do fim, e de modo como se este fosse inevitável. Porém,
examinada mais de perto, a frase propriamente dita – “Fosse eu realmente um
poeta, teria necessariamente podido impedir a Guerra” – contém o oposto da
jactância, vale dizer, a confissão do completo fracasso. Mais ainda, exprime a
confissão de uma responsabilidade, e,
aliás, ali onde – e isso e o mais admirável nela – menos se poderia falar de
responsabilidade, no sentido usual do termo.
Neste ponto, ele que manifestamente
pensa o que disse, pois o fez em sua intimidade – se volta contra si mesmo. Não
afirma sua pretensão, mas desiste dela.
Em seu desespero em relação àquilo que necessariamente está por vir, acusa a si próprio, não aos verdadeiros
responsáveis, os quais certamente conhece muito bem – pois, se não os
conhecesse, pensaria de modo diferente sobre os dias vindouros. Assim, resta
uma única coisa como fonte da irritação sentida a ideia a déia que ele faz do
que deveria ser um poeta, e o fato de que se considere como tal até o instante
no qual, com a eclosão da guerra, tudo desmorona para ele.
E justamente essa pretensão irracional
à responsabilidade que me seduz e me põe a pensar. Dever-se-ia ainda
acrescentar que foi por meio de palavras – consciente e continuamente
empregadas, pervertidas que se chegou a uma tal situação que a guerra tornou-se
inevitável. Ora, se as palavras tanto podem, por que não se haveria de poder
impedir com elas a guerra? Não é absolutamente de se espantar que alguém que
mais do que os outros lida com elas esperasse também mais de sua eficácia do
que os outros.
Portanto – e talvez tenhamos chegado a
isso um tanto apressadamente –, um poeta seria alguém que tem as palavras em
alta consideração; alguém particularmente cercar-se delas, talvez até mais do
que de seres humanos; que se entrega a
ambos, mas com maior confiança às palavras; que as arranca de seus postos
para, então, tornar a assentá-las com desenvoltura ainda maior; que as
interroga, apalpa, acaricia, arranha, aplaina, pinta; que e mesmo capaz, depois
de todas essas intimidades impertinentes, de diante delas, temente, rastejar em
busca de refúgio.
Mesmo quando se apresenta, o que é
frequente, como um criminoso para com as palavras, o poeta é, ainda aí, um
criminoso passional.
Por trás de toda essa movimentação,
oculta-se algo de que ele mesmo nem sempre tem consciência, algo que é débil,
em geral, mas que, por vezes, é de uma violência arrebatadora –isto é, a
vontade de responsabilizar-se por tudo o que é apreensível em palavras,
expiando ele próprio o fracasso dessa empreitada.
Que valor pode ter para os outros seres
humanos esse ato de assumir uma responsabilidade fictícia? Não perderá todo
efeito por seu caráter irreal? Creio que aquilo que o próprio homem se impõe é
tomado mais a sério por todos, mesmo pelos mais limitados, do que o que lhe é imposto
por constrangimento. Inexiste também uma proximidade maior com os
acontecimentos, um relacionamento com eles que nos toque mais profundamente, do
que quando nos sentimos culpados por eles.
Se para muitos a palavra “poeta” estava
corroída, isso se dava porque associavam a ela uma ideia de aparência e
ausência de seriedade – algo que se recolhia visando furtar-se às dificuldades.
A associação do comportamento afetado com o estético, em todos os seus matizes,
precedendo imediatamente o início de um dos períodos mais sombrios da história
da humanidade (que não foram capazes de reconhecer quando já desabava sobre
eles), não era apropriada para inspirar respeito pelos poetas. Sua falsa
confiança, seu desconhecimento da realidade (que procuravam dominar unicamente
com o desprezo), sua recusa em ter com ela qualquer vínculo, sua distância
interior em relação a tudo o que de fato acontecia (uma vez que, na linguagem
de que se serviam, não era possível intuir tais acontecimentos) – tudo isso
torna perfeitamente compreensível que os olhos que enxergavam com maior rigor e
precisão se afastassem horrorizados diante de tamanha cegueira.
Contraponha-se a isso o fato de que
existam frases como aquela da qual parti nestas considerações. Enquanto
existirem tais frases – e, naturalmente, há mais do que uma –, que tomam para
si responsabilidade pelas palavras e recebem o reconhecimento do total fracasso
com o maior dos pesares, teremos o direito de nos apegarmos a uma palavra que
sempre foi usada para designar os autores das obras mais essenciais da
humanidade, obras sem as quais jamais chegaríamos à consciência daquilo que
constitui essa mesma humanidade. Confrontados com essas obras – das quais
precisamos, de uma outra maneira certamente, mas não menos que de nosso pão de
cada dia, pois seríamos nutridos e sustentados por elas mesmo se nada mais nos
restasse, mesmo se nem ao menos soubéssemos o quanto elas nos sustentam, ao
mesmo tempo que, em vão, procuram em nossa época por algo que as possa igualar –,
resta-nos uma única postura: se formos bastante rigorosos em relação ao
nosso tempo e principalmente em relação a nós mesmos, poderemos chegar à
conclusão de que hoje não existe poeta algum, embora tenhamos de desejar
apaixonadamente a existência de alguns.
Isso soa bastante sumário, e é de
pouco valor se não tentarmos tornar claro para nós o que um poeta hoje teria de
trazer em si para satisfazer o que dele se exige.
Antes de mais nada, diria que o mais
importante é que ele seja o guardião das metamorfoses – e guardião em dois
sentidos. Em primeiro lugar, ele se apropriará da herança literária da
humanidade, que é rica em metamorfoses – o quão rica, só hoje o sabemos, quando
os escritos de quase todas as culturas antigas foram já decifrados. Até o
século XIX, quem se ocupasse desse aspecto mais próprio e enigmático do ser
humano – o dom da metamorfose – teria ainda de se ater a dois livros
fundamentais da Antiguidade: um tardio, As
metamorfoses, de Ovídio, coletânea quase sistemática de todas as
metamorfoses míticas e “elevadas” então conhecidas; e um anterior, a Odisseia, que trata particularmente das
metamorfoses aventureiras de um homem, Ulisses. Suas metamorfoses culminam como
retorno como mendigo (o mais reles que se podia imaginar), e a perfeição do
disfarce ali atingida e tão grande que jamais foi alcançada ou superada por
qualquer poeta posterior. Seria ridículo estender-me acerca da ação desses dois
livros – já antes do Renascimento, mas sobretudo depois dele – sobre as
modernas culturas europeias. As
metamorfoses de Ovídio reaparecem em Ariosto, em Shakespeare e em
incontáveis outros, e seria um grande erro supor que sua ação sobre os modernos
se esgotou. Deparamos com Ulisses até nos dias de hoje: tendo sido a primeira
personagem a entrar para o panteão da literatura universal, seria difícil citar
mais que cinco ou seis figuras de igual poder de irradiação.
Se Ulisses foi certamente a primeira
personagem a estar sempre presente entre nós, não é, contudo, a mais antiga,
pois encontrou-se uma mais velha. Sequer cem anos se passaram desde a
descoberta do herói mesopotâmico Gilgamesh e do reconhecimento de seu
significado. Essa epopeia inicia-se com a metamorfose de Enkidu – um ser da
natureza, vivendo em meio aos animais e ao selvagem – em um ser da cidade e
da cultura, um tema que só hoje nos toca mais de perto, uma vez que nos é dado
saber, por meio de dados concretos e precisos, de crianças que viveram entre
lobos. Com Gilgamesh perdendo o amigo Enkidu, morto, a epopeia culmina num
monstruoso confronto com a morte – o único, aliás, que não deixa no homem
moderno um ressaibo amargo de ilusão. Gostaria, aqui, de me oferecer como
testemunha de um fenômeno quase inverossímil: nenhuma obra da literatura,
literalmente nenhuma, determinou tão decisivamente a minha vida quanto essa
epopeia de mil anos de idade que, um século atrás, ninguém conhecia.
Encontrei-a quando contava dezessete anos, e, desde então, nunca mais me
deixou: retornei a ela como a uma Bíblia, e, abstraindo de sua ação específica
sobre mim, ela me encheu de expectativa quanto ao que ainda desconhecemos. É-me
impossível contemplar como um todo acabado o corpus daquilo que nos foi legado, e que nos serve de alimento.
Mesmo que se viesse a comprovar que mais nenhuma obra registrada por meio da
escrita, e de tamanha significação, advirá, restaria ainda o enorme
reservatório daquilo que é transmitido oralmente pelos povos primitivos.
Isso porque ali não há fim para as
metamorfoses, que são o que nos importa aqui. Poder-se-ia passar a vida a
interpretá-las e compreendê-las- não se teria vivido mal. Tribos, que muitas
vezes não contavam mais de uma centena de seres humanos, legaram-nos enorme
riqueza, a qual certamente não merecemos, pois por nossa culpa foram extintas,
ou ainda o estão sendo, diante de nossos olhos que sequer as contemplam. Elas
conservaram até o fim suas experiências míticas, e o mais notável é não haver
quase nada que nos venha tão a propósito, que nos inspire tanta esperança,
quanto essas incomparáveis obras antigas de homens que, caçados, logrados e
roubados por nós, sucumbiram em miséria e amargura. Eles que – por nós
desprezados em virtude de sua modesta cultura material – foram cega e
impiedosamente dizimados legaram-nos uma herança espiritual inesgotável. Jamais
poderemos ser suficientemente gratos à ciência por tê-la salvo, sua verdadeira
preservação, sua ressurreição para a nossa vida, cabe aos poetas.
Caracterizei os poetas como os
guardiães das metamorfoses, mas eles o são também num outro sentido. Num mundo
onde importam a especialização e a produtividade; que nada vê senão ápices,
almejados pelos homens em uma espécie de limitação linear; que emprega todas as
suas energias na solidão gélida desses ápices, desprezando e embaciando tudo o
que está no plano mais próximo – o múltiplo, o autêntico –, que não se ápice; a
servir ao ápice num mundo que proíbe mais e mais a metamorfose, porque esta
atua em sentido contrário à meta suprema de produção; que multiplica
irrefletidamente os meios para sua própria destruição, ao mesmo tempo que
procura sufocar o que ainda poderia haver de qualidades anteriormente
adquiridas pelo homem que poderiam agir em sentido contrário ao seu – num tal
mundo, que se poderia caracterizar como o mais cego de todos os mundos, parece
de fundamental importância a existência de alguns que, apesar dele, continuem a
exercitar o dom da metamorfose.
Esta seria, creio, a verdadeira tarefa
dos poetas. Graças a um dom que foi universal e hoje está condenado à atrofia,
e que precisariam por todos os meios preservar para si, os poetas deveriam
manter abertas as vias de acesso entre
os homens. Deveriam ser capazes de se transformar em qualquer um, mesmo no mais ínfimo, no mais ingênuo, no mais
impotente. Seu desejo íntimo pela experiência de outros não poderia jamais se
permitir ser determinado por aqueles objetivos que regem nossa vida normal,
oficial, por assim dizer: teria de ser absolutamente livre de toda pretensão de
sucesso ou prestígio, ser uma paixão por si, a paixão justamente pela
metamorfose. Para tanto, ouvidos sempre atentos seriam necessários, mas só isso
não seria suficiente, pois hoje um número enorme de seres humanos já não domina
a fala: exprimem-se por meio das frases dos jornais e das mídias, dizendo
sempre a mesma coisa, sem contudo serem os mesmos. Só pela metamorfose (no
sentido extremo em que essa palavra é usada aqui) seria possível sentir o que
um homem é por trás de suas palavras: não haveria outra forma de apreender a
verdadeira consistência daquilo que nele vive. Há em sua natureza um processo
misterioso e ainda muito pouco investigado, que constitui a única e verdadeira
via de acesso ao outro ser humano. Tentou-se de diversas formas dar um nome a
esse processo, fala-se ora, em intuição, ora em empatia; de minha parte
prefiro, por razões que não me é possível apresentar aqui, a palavra mais
exigente: “metamorfose”. Contudo, qualquer que seja o nome que se lhe empreste,
dificilmente alguém ousará duvidar de que se trata de algo real e muito
precioso. Vejo, assim, no seu exercício constante, em sua necessidade premente
de vivenciar seres humanos de toda espécie, mas especialmente aqueles que são
menos considerados, na prática desse exercício, irrequieta, não atrofiada ou
tolhida por sistema algum, o verdadeiro ofício do poeta. Pode-se pensar, e é
até mesmo provável, que apenas uma parte dessa vivência penetre em sua obra. A
forma como esta é julgada pertence àquele mundo da produtividade e dos ápices,
que hoje não pode interessar-nos, uma vez que nos ocupamos de apreender como
seria uni poeta, se existisse algum, e não daquilo que ele nos lega.
Se abstraio totalmente daquilo que se
entende por sucesso, se dele até desconfio, isso está relacionado a um perigo
que todos conhecem por si mesmos. Tanto o propósito de obtê-lo como o sucesso
em si possuem uma ação restritiva.
Aquele que conscientemente se lança a um objetivo vê como um peso morto tudo o
que não estiver a serviço de sua obtenção. Afasta-o de si para se tornar mais
leve, não pode preocupá-lo o fato de que talvez esteja jogando fora o que
possui de melhor – importante para ele são os pontos que vai atingindo; de
ponto a ponto, arroja-se a alturas maiores, calculando em metros. A posição é
tudo, e é determinada exteriormente: não é ele quem a cria, nem tem a menor
participação em seu nascimento. Ele a vê e esforça-se por alcançá-la; e, por
mais útil e necessário que seja esse esforço em muitas esferas da vida, para o
poeta – tal como pretendemos vê-lo aqui ele seria destrutivo.
Isso porque tem, sobretudo, de criar
mais e mais espaço dentro de si próprio. Espaço para o saber, que ele não
adquire em função de quaisquer objetivos reconhecíveis, e espaço para os seres
humanos, que vivencia e assume por meio da metamorfose. No que se refere ao
saber, só pode adquiri-lo com os processos honrados e puros que determinam a
estrutura interna de cada ramo do conhecimento. Porém, na escolha desses
domínios do saber, que podem distar muito uns dos outros, o poeta não é guiado
por nenhuma regra consciente, e sim por uma fome inexplicável. Uma vez que se
abre para seres humanos os mais distintos e os compreende da maneira mais
antiga, pré-científica, ou seja, através da metamorfose; uma vez que, com isso
encontra-se interiormente em movimento contínuo, que ele não pode enfraquecer e
ao qual não pode pôr um fim – pois não coleciona
seres humanos, não os coloca ordenadamente de lado, mas depara com eles e,
vivos, os acolhe –; e uma vez que experimenta por meio deles choques intensos,
e bem possível que a súbita mudança em direção a um novo ramo do saber seja
também determinada por tais encontros.
Tenho plena consciência da estranheza
dessa exigência, a qual não pode inspirar senão resistência. Soa como se o
poeta visasse ter em si um caos de conteúdos opostos e conflitantes. Em
princípio, eu teria muito pouco o que opor a essa séria objeção. O poeta está mais próximo do mundo quando
carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi nosso ponto de partida,
sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele,
não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e
desconexa, mas odeia o caos, e não perde jamais a esperança de dominá-lo em
prol dos outros e de si mesmo.
Para dizer algo sobre este mundo que
tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou evitá-lo. Tem de carregá-lo
em si enquanto caos, o que é mais do que nunca, a despeito de todas as metas e
planejamentos, pois o mundo se move com velocidade crescente em direção à
própria destruição; assim, pois, tem de carregá-lo em si, e não lustrado e
empoado ad usum Delphini, ou seja, do
leitor. Contudo, não se pode permitir sucumbir ao caos, irias, a partir
justamente da experiência que dele possui, precisa combatê-lo, contrapondo a
ele a impetuosidade de sua esperança.
O que, pois, pode ser essa esperança, e
porque ela só tem valor se se alimenta das metamorfoses – antigas, de que se
apropriou por meio dos estímulos propiciados por suas leituras, e
contemporâneas, em função de sua abertura para o inundo atual?
Há, em primeiro lugar, o poder das
personagens que o mantêm sob ocupação, que não abandonam o espaço nele
conquistado. Elas reagem a partir dele, como se ele fosse constituído por elas.
Elas são a sua “maioria”, articulada e consciente, e, à medida que vivem nele, são sua resistência contra a
morte. É parte das características dos mitos transmitidos oralmente que eles
tenham de se repetir. Sua vivacidade equivale ao seu caráter definitivo: é-lhes
dado não se modificarem. Apenas em cada caso isolado é possível descobrir o que
faz a vitalidade de tais mitos, e talvez se tenha examinado muito pouco o
porquê da necessidade de eles se propagarem. Poder-se-ia descrever muito bem o
que se passa quando alguém, pela primeira vez, depara com um desses mitos. Não
esperem hoje de mim uma tal descrição em toda a sua plenitude, e de outro modo
ela não teria valor algum. Quero mencionar um de seus aspectos, qual seja, o
sentimento de certeza irrefutável, de irrevogabilidade que eles transmitem: foi
assim, e só poderia ter sido exatamente assim. O que quer que seja que
experimentamos no mito, e por mais inverossímil que possa parecer em um outro
contexto, aqui ele permanece livre de dúvidas, possui uma configuração única e
inclassificável.
Esse reservatório repleto do
indubitável, do qual tanto chegou até nós, foi alvo dos mais extravagantes
abusos. Conhecemos muito bem o abuso político perpetuado a partir daí:
deformados, diluídos, desfigurados, mesmo esses empréstimos, já em si de valor
inferior, mantêm-se por alguns anos antes de rebentarem. Empréstimos de tipo
bem diferente são aqueles que a ciência tomou ao mito. Cito apenas um exemplo
gritante: o que quer que pensemos sobre o conteúdo de verdade, por exemplo, da
psicanálise, ela extraiu uma boa parte de sua força da palavra “Édipo”, e a
crítica séria que se faz a ela procura atingi-la justamente nessa palavra.
A partir dos abusos de toda espécie
perpetrados contra os mitos, pode-se explicar o afastamento em relação a eles
que caracteriza nossa época. São vistos como mentiras porque são conhecidos
apenas por meio de seus empréstimos, e, junto destes, são eles próprios postos
de lado. As metamorfoses que oferecem parecem ainda meramente inverossímeis. De
seus milagres, reconhecem-se apenas aqueles que se tornaram realidade com as
invenções, sem se considerar que devemos cada uma destas ao seu arquétipo no
mito.
O que, no entanto, constitui a
essência dos mitos, para além de todos os seus conteúdos específicos, é a
metamorfose que neles se exercita. Foi por meio dela que o homem passou ele
próprio a criar. Com ela, apropriou-se do mundo, tem nele a sua parte. Podemos
certamente perceber que o homem deve seu poder à metamorfose; mas deve-lhe
também algo melhor: sua compaixão.
Não tenho, pois, receio de empregar
uma palavra que soa inadequada aos que lidam com o espírito: ela foi banida para
o domínio das religiões o que também é parte do processo e especialização –, no
qual se permite que seja pronunciada e cuidada. É mantida afastada das decisões
práticas de nosso dia a dia, cada vez mais determinadas pela técnica.
Eu disse que só pode ser poeta quem
sente responsabilidade, embora ele talvez faça menos que os outros para
comprová-la em ações isoladas. Trata-se de uma responsabilidade para com a vida
que se destrói, e não se deve ter vergonha de dizer que essa responsabilidade é
alimentada pela compaixão. Não tem valor algum quando proclamada como uni
sentimento genérico, indeterminado. Ela requer a metamorfose concreta em cada
indivíduo que vive, que está entre nós. O poeta aprende e exercita a
metamorfose no mito, nas literaturas transmitidas. Ele não é nada, se não a
aplica ininterruptamente ao mundo que o cerca. A vida multifacetada que o
invade – e que, no plano sensível, permanece separada em todas as suas formas
de manifestação – não resulta nele em conceito algum, mas lhe dá forças para
opor-se à morte, transformando-se, assim, em algo universal.
Não pode ser próprio do poeta
entregar a humanidade à morte. E com consternação que ele, que não se fecha a
ninguém, percebe o poder crescente da morte em tantas pessoas. Mesmo que a
todos pareça façanha inútil, o poeta vai pôr-se a sacudir esse poder e jamais,
em hipótese alguma, capitulará. Seu orgulho consistirá em resistir aos
mensageiros do nada, que se tornam cada vez mais numerosos na literatura, e em
combatê-los com instrumentos diferentes daqueles que utilizam. Viverá segundo
uma lei que é a sua própria, mas não talhada para ele. Ela diz:
Que não se atire ao nada ninguém que lá
gostaria de estar – Que se procure o nada apenas para encontrar-lhe a saída,
indicando-a para todos. Que se persista na tristeza, bem como no desespero,
para se aprender a tirar deles os outros; mas não por desprezo da felicidade
que cabe às criaturas, ainda que estas desfigurem e dilacerem umas às outras.
O Nascimento de Vênus
Sandro Botticelli
(1445-1510)
Nota:
(*) O autor emprega sistematicamente a palavra “poeta” (Dichter) em lugar
do termo mais amplo “escritor” (Schriftsteller).
(N.T.)
Referência:
CANETTI, Elias. O ofício do poeta. In:
__________. A consciência das palavras.
Tradução de Márcio Suzuki e Herbert Caro (“O outro processo”). São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 310-322.
♨
Nenhum comentário:
Postar um comentário