Robert Musil, o autor austríaco do ciclópico “O Homem Sem Qualidades”,
morreu subitamente sem concluir a sua obra-prima [imagine-se, caso a vida lhe
fosse pródiga, em quantas páginas teria dado por finalizado o seu romance?!
(rs)].
A. López Estrada (1972, p. 114-115), em vista do extenso cabedal conceitual
e verbal de que Musil lança mão, originário dos mananciais quer da arte quer da
ciência contemporânea, formula alguns juízos incisivos sobre a obra, o último
entre os seguintes a desnudar-lhe o vazio de suas possibilidades teleológicas:
“A ambição literária
da obra é tão descomunal que tem sido considerada um dos documentos essenciais
para a compreensão da época dourada da sociedade burguesa, finalizada abruptamente
pelo começo da Primeira Guerra Mundial”.
“A ação que se desenvolve nos dois primeiros volumes – os publicados até a morte do autor – é mínima, pois o escritor se limita a tomar contato com Ulrich [o herói da obra, o ‘homem sem qualidades, sem caráter’, desprovido de qualquer personalidade particular], Lena e Bonadeia, as duas amadas do personagem, desbancadas por Diotima, cérebro dirigente da ‘Ação Paralela’ e mulher, cuja estupidez, somente é comparável à sua formosura”.
“‘O Homem Sem Qualidades’
apresenta grandes dificuldades pelo abstrato esquematismo da ação e pela
profundidade de suas ideias filosóficas e psicológicas; é a mais aguda análise
do espírito da época, sutil, profunda e rica em intuições irônicas e
melancólicas; porém não alcança nenhuma solução, mesmo que ponderadas a
prolixidade e a intensidade de suas discussões”.
Contudo, o que queremos aqui é ilustrar a capacidade de Musil em
retratar estados d’alma com humor – e, para tanto, selecionamos o Capítulo 34,
intitulado “Um Raio Ardente e Paredes Frias” –, ao mesmo tempo que ressalvar a
nota derradeira de López Estrada, haja vista que não se poderia mesmo esperar
uma “solução” para o romance, porquanto ignora-se até onde o escritor
tencionava levar o seu herói na aventura que o enleou, já que não chegou a
completá-lo.
J.A.R. – H.C.
Robert Musil
(1880-1942),
34
UM RAIO ARDENTE E
PAREDES FRIAS
Quando Ulrich, depois de acompanhar
Bonadeia até embaixo, ficou novamente só, não teve mais vontade de trabalhar.
Saiu para a rua com o objetivo de mandar um mensageiro com algumas Unhas a
Walter e Clarisse, anunciando uma visita à noite. Quando atravessou o pequeno
saguão, notou na parede uma galhada de cervo, que tinha curvas parecidas com as
de Bonadeia quando amarrava o véu diante do espelho; apenas, não sorria para si
mesmo, com aquele ar de renúncia. Olhou em torno, contemplando o ambiente.
Todas aquelas linhas em O, em cruz, linhas retas, sinuosas e tramadas, que constituem
a decoração de uma casa, e que se tinham empilhado ao redor dele, não eram naturais
nem respondiam a alguma necessidade interior, mas eram carregadas de opulência
barroca em cada detalhe. A corrente e pulsação que fluem sem cessar através de
todas as coisas que nos rodeiam parará por um momento. Eu sou apenas casual, troçava
a Necessidade; não pareço essencialmente diferente do rosto de um doente de lúpus,
quando me contemplam sem preconceito, admitiu a Beleza. No fundo, não era preciso
muita coisa; um verniz caíra, uma ilusão caíra, um traço de hábito, expectativa
e tensão se rasgara, um equilíbrio fluido e secreto entre sentimento e mundo
inquietara-se por um segundo. Tudo o que sentimos e fazemos acontece de certa
forma “na direção da vida”, e o menor movimento para fora dessa direção é
difícil ou assustador. É assim até quando caminhamos: erguemos o centro de
gravidade, empurramo-lo para diante e o deixamos cair; mas uma diminuta
mudança, um pouco de receio desse lançar-se-no-futuro, ou simplesmente o
espanto por fazermos isso, e já não podemos ficar em pé! É melhor não refletir.
E Ulrich lembrou-se de que todos os momentos importantes e decisivos na sua
vida tinham-lhe deixado uma sensação semelhante àquela.
Chamou um portador e entregou-lhe seu
bilhete. Eram mais ou menos quatro da tarde, e resolveu seguir a pé,
lentamente. O dia outonal, com ares de fim de primavera, o deliciava. O ar
fervia. Os rostos das pessoas pareciam espumas flutuantes. Depois da tensão
monótona de seus pensamentos nos últimos dias, sentia-se transportado de uma prisão
para um banho morno. Esforçou-se para andar num passo agradável e brando. Num corpo
treinado pela ginástica há tanta disposição de movimento e luta, que naquele
dia isso lhe parecia desagradável como o rosto de um velho comediante coberto
de paixões mentirosas muitas vezes representadas. Da mesma forma, o desejo de
verdade enchera seu interior com inquietação intelectual, dividira-o em grupos
de pensamentos que se exercitavam mutuamente, colocando tudo numa expressão que,
para ser exato, era irreal como a de um comediante que finge tudo, até a
própria sinceridade, no momento em que se torna habitual. Era nisso que Ulrich
pensava. Fluía como uma onda entre suas ondas irmãs, se se pode dizer assim; e
por que não, se um ser humano que se desgastou num trabalho solitário volta à
comunidade e sente felicidade de poder correr na mesma direção que todos?
Nesses momentos nada está tão distante
quanto a ideia de que a vida que se leva, e que leva a gente, não nos interessa
muito, não intimamente. Mas todo homem sabe disso enquanto é jovem. Ulrich
recordava como lhe parecera um dia daqueles nestas ruas, há uma década ou
década e meia. Tudo fora ainda uma vez tão magnífico, e contudo, naquele anseio
fervente havia um doloroso pressentimento de cativeiro; uma sensação inquietante:
tudo o que penso alcançar, me alcança; estou corroído por uma suspeita de que
neste mundo as manifestações falsas, levianas e impessoais ecoam mais
intensamente do que as íntimas e essenciais. Essa beleza – pensamos – tudo bem,
mas será minha? A verdade que conheço, será a minha verdade? Os objetivos,
vozes, realidades, tudo isso que me seduz, me atrai e me leva, que sigo e em
que me precipito... será a verdade real, ou dela se mostra apenas um sopro
inacessível, pousado sobre a realidade oferecida?
São as divisões e formas
pré-configuradas da vida o que a desconfiança sente com tanta nitidez, a
mesmice, o que já foi preparado por gerações inteiras, a linguagem pronta, não
apenas da boca, mas das sensações e percepções. Ulrich parará diante de uma
igreja. Meu Deus, se aí na sombra se sentasse uma gigantesca matrona com grande
ventre descaído, o dorso recostado nas paredes das casas, e lá em cima o rosto
exposto ao crepúsculo, cheio de mil rugas, verrugas e espinhas: ele não o
poderia também ter considerado belo? Meu Deus, como tudo era bonito! Não nos
queremos furtar ao fato de termos vindo ao mundo para admirar isso. Mas, como
já se disse, também não seria impossível julgar belas as amplas formas que
descaem tranquilas, e a filigrana das rugas numa matrona respeitável; apenas, é
mais simples dizer: ela é velha. E essa passagem da sensação de velhice para a
de beleza do mundo é mais ou menos a mesma transição que se faz do espírito dos
jovens para a moral mais complexa do adulto, que parece uma lição ridícula até
que nós mesmos a compartilhamos. Ulrich parou diante da igreja apenas alguns
segundos, mas eles desceram às suas profundezas e comprimiram seu coração com toda
a resistência original que sentimos contra esse mundo cristalizado em milhões
de toneladas de rocha, essa hirta paisagem lunar da emoção, em que fomos
colocados sem poder reagir.
Talvez para a maioria das pessoas seja
agradável e seguro encontrar o mundo já pronto, à exceção de algumas ninharias
pessoais, e não se deve duvidar que o duradouro não é apenas conservador mas
também fundamenta todos os progressos e revoluções, embora isso cause um
profundo e espectral desconforto às pessoas independentes. Enquanto contemplava
o refinamento arquitetônico daquela construção sagrada, Ulrich teve uma
consciência surpreendentemente viva de que podemos tão bem devorar seres humanos
quanto construir ou deixar intactos aqueles monumentos. As casas ao lado, a abóbada
do céu por cima, uma harmonia indizível em todas as linhas e espaços que atraem
e dirigem o olhar, a aparência e expressão das pessoas que passam lá embaixo, seus
livros e sua moral, as árvores da rua... tudo isso por vezes parece tão hirto
quanto um biombo, e tão duro quanto o pilão de uma prensa, e tão... só se pode
dizer completo, tão completo e acabado que a seu lado não passamos de um
nevoeiro supérfluo, um pequeno sopro que não interessa muito a Deus.
Nesse momento ele desejou ser um homem
sem qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante.
No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são,
com seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e
realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa.
Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum
uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente;
os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série
de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se
lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia à
frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de
vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode
pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito,
vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a
conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente.
Mas muito mais estranho ainda é que a
maioria das pessoas nem notam isso; adotam o homem que apareceu nelas, cuja
vida viveram; suas experiências lhes parecem agora a expressão das próprias
qualidades, e seu destino lhes parece ser seu próprio mérito ou desgraça.
Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo
se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu,
até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à
forma original que tiveram um dia. E então só recordam vagamente sua juventude,
quando ainda tinham certa resistência. Essa outra força puxa e gira, não quer ficar
em lugar algum e desencadeia uma tempestade de desnorteados movimentos de fuga;
a ironia da juventude, sua rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos
jovens para tudo o que é heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa
seriedade e sua inconstância – tudo isso não significa senão movimentos de
fuga. No fundo, apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe
parece necessário e unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como
se tudo aquilo em que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e
necessário.
Alguém inventa um belo novo gesto,
exterior ou interior... como se traduzirá isso? Um gesto de vida? Uma forma em
que o interior se derrama como gás em um globo de vidro? A expressão de uma
impressão? Uma técnica do ser? Pode ser um novo bigode ou ideia. É teatro, mas
como todo teatro, faz sentido... e imediatamente as almas jovens se lançam em
cima, como pardais sobre comida que lhes jogamos. Basta imaginar: quando lá
fora o mundo pesa sobre nossa língua, olhos e mãos, a lua esfriada feita de
terra, casas, costumes, quadros e livros – e dentro de nós, apenas um nevoeiro
em movimento incessante; que felicidade deve ser alguém nos apresentar uma
expressão na qual nos reconhecemos. Haverá algo mais natural do que o homem
passional se apoderar dessa nova forma antes dos homens comuns? Ela lhe oferece
o momento do ser, o equilíbrio de tensão entre exterior e interior, entre ser
esmagado ou voar em estilhaços.
Então – pensou Ulrich, e naturalmente
tudo aquilo o tocava de modo pessoal, ele enfiara as mãos nos bolsos e tinha o
rosto apaziguado e contente de quem morre, aos raios do sol, uma doce morte por
congelamento – então também sobre isso se fundamenta o fenômeno incessante a
que chamamos nova geração, pais e filhos, revolução espiritual, mudança de
estilo, evolução, moda, renovação. E o que torna essa ânsia de renovação um perpetuam mobile é a desventura de que,
entre o nebuloso eu pessoal e o dos antepassados, já esfriado numa casca hirta,
se insere algo que é apenas um eu aparente, uma alma grupai que se adapta mais
ou menos nesse espaço. Se prestarmos um pouco de atenção, provavelmente
poderemos ver no futuro mais recente o Tempo Antigo que já está vindo. As novas
ideias terão apenas trinta anos mais, mas estarão satisfeitas e um pouco gordas
ou desgastadas como o rosto apagado da mãe que se entrevê nos traços luminosos
de uma adolescente; ou essas ideias não tiveram êxito, e estarão ressecadas e
murchas sugerindo reformas que serão pregadas por algum velho maluco a quem
seus cinquenta admiradores chamarão de grande Fulano-de-Tal.
Ele parou mais uma vez, agora numa
praça onde reconheceu algumas casas, e recordou discussões públicas e debates
intelectuais que tinham acompanhado sua construção. Pensou nos amigos de
juventude; todos tinham sido seus amigos de juventude, quer os tivesse
conhecido pessoalmente ou só de nome, quer tivessem a sua idade ou mais, os
rebeldes que queriam trazer ao mundo novas coisas e novas pessoas, quer
morassem ali ou se espalhassem por toda a parte, todos os lugares que
conhecera. Agora, essas casas se postavam como tiazinhas bondosas com chapéus
antiquados na luz do entardecer que começava a fanar, tão simpáticas e
inofensivas, e nada excitantes. Ele teve vontade de sorrir. Mas as pessoas que
tinham deixado aqueles restos agora tão despretensiosos hoje em dia eram
professores universitários, celebridades, e nomes, parte conhecida da conhecida
evolução progressista, e num caminho mais ou menos curto tinham passado do
nevoeiro à rigidez; por isso, eventualmente a história um dia dirá deles, ao
descrever o século: estavam presentes...
Referências:
MUSIL, Robert. 34. Um raio ardente e
paredes frias. In: __________. O homem
sem qualidades. Apresentação de Bia Lessa. Tradução de Lya Luft e Carlos
Abbenseth. 1. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 150-155. (40
Anos, 40 Livros)
ESTRADA, A. López. Robert Musil: El
hombre sin atributos. In: ARMIÑO, Mauro (dir.). Parnaso Diccionario Sopena de Literatura. v. III (M-Z) Autores
Extranjeros. Barcelona (ES): Editorial Ramón Sopena, 1972.
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