A digressão é uma das formas pelas quais os escritores entretêm os
leitores, enquanto ganham fôlego para fazer progredir o enredo de seus romances
até o decisivo desate.
E o “Tristram Shandy”, de Sterne, é bem uma das referências fundantes do
referido procedimento que, em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”,
Machado de Assis lhe presta a devida reverência.
Alguns consideram a tentação digressiva como uma investida contra a
cadência e o fluxo natural das obras literárias – vulgarmente, um “encher de linguiça”
que multiplica desnecessariamente o seu número de páginas –; outros, em sentido
bem diverso, a apreciam por seus efeitos estéticos, quando prevalecentes.
Para apreciar o que o próprio escritor irlandês tem a dizer sobre o
tema, transcrevemos algumas passagens selecionadas, extraídas de sua sobrecitada
obra, alertando que os acentos em cores no aludido excerto são de nossa
autoria, para demarcar o mérito da reflexão nas passagens onde constam.
J.A.R. – H.C.
Laurence Sterne
(1713-1768)
Pintura de Joshua
Reynolds (1760)
Tristram Shandy
Volume I 1760
Capítulo 22
(STERNE, 1998, p. 99-100)
[...] Quando algo é executado de uma
maneira magistral que talvez não seja percebida, – penso ser igualmente
abominável o homem perder o mérito dela e deixar o mundo com tal vaidade
apodrecendo-lhe na cabeça.
Essa é precisamente a minha situação.
Pois nessa longa digressão a que fui
acidentalmente levado, como em todas as minhas digressões (com exceção de uma
só), há um toque de mestre na proficiência digressiva, cujo mérito receio tenha
passado inteiramente despercebido ao leitor – não por falta de sagacidade de
sua parte, – mas porque há uma excelência raras vezes buscada, ou sequer
esperada, numa digressão; – que é: conquanto minhas digressões sejam todas
consideráveis, como observais, – e eu possa desviar-me daquilo de que estava
falando com tanta frequência e abundância quanto qualquer outro escritor da
Grã-Bretanha, tomo o cuidado de constantemente ordenar as coisas de tal maneira
que meu assunto principal não fique parado durante a minha ausência.
[...]
Graças a esse dispositivo, a maquinaria
de minha obra é de uma espécie única; dois movimentos contrários são nela
introduzidos e reconciliados, movimentos, movimentos que antes se julgava
estarem em discrepância mútua. Numa só palavra, minha obra é digressiva, mas
progressiva também, – isso ao mesmo tempo.
Trata-se, senhor, de história muito
diversa da de a Terra mover-se em redor do seu eixo, em sua rotação diurna, com
o avanço em sua órbita elíptica que é o que traz o ano e constitui aquela
variedade e vicissitude das estações que desfrutamos; – embora eu confesse que
isso me sugeriu a ideia, – porquanto acredito terem provido nossos progressos e
descobertas, tão alardeados, de tais sugestões triviais.
As digressões são incontestavelmente a
luz do sol; – são a vida, a alma da leitura; – retirai-as deste livro, por
exemplo, – e será melhor se tirardes o livro juntamente com ela; – um gélido e
eterno inverno reinará em cada página; devolvei-as ao autor; – ele se adiantará
como um noivo, – e as saudará a todas; elas trazem a variedade e impedem que a
apetência venha a faltar.
Toda a destreza está no bom cozimento e
manejo delas, não só para proveito do leitor como igualmente no próprio autor,
cuja aflição, neste particular, é verdadeiramente comovente: pois, quando ele
começa uma digressão, – observo que toda a sua obra para a partir desse
momento; – e quando ele avança na obra principal, – tem então de pôr fim à sua
digressão.
– Este é um trabalho ingrato. – Por tal
razão, desde o começo desta obra, como vedes, construí a parte principal e as
adventícias com tais interseções, e compliquei e envolvi os movimentos digressivo
e progressivo de tal maneira, uma roda dentro da outra, que toda a máquina, no
geral, tem se mantido em movimento; – e, o que é mais, se manterá em movimento
nos próximos quarenta anos, se aprouver à fonte da saúde bendizer-me com vida
tão longa e tanto bom humor.
Referência:
STERNE, Laurence. Volume I 1760;
Capítulo 22. In: __________. A vida e as
opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução, introdução e notas de
José Paulo Paes. 2. ed. corrig. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.
41-105.
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