Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 27 de setembro de 2014

Laurence Sterne: Elogios à Digressão

A digressão é uma das formas pelas quais os escritores entretêm os leitores, enquanto ganham fôlego para fazer progredir o enredo de seus romances até o decisivo desate.

E o “Tristram Shandy”, de Sterne, é bem uma das referências fundantes do referido procedimento que, em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis lhe presta a devida reverência.

Alguns consideram a tentação digressiva como uma investida contra a cadência e o fluxo natural das obras literárias – vulgarmente, um “encher de linguiça” que multiplica desnecessariamente o seu número de páginas –; outros, em sentido bem diverso, a apreciam por seus efeitos estéticos, quando prevalecentes.

Para apreciar o que o próprio escritor irlandês tem a dizer sobre o tema, transcrevemos algumas passagens selecionadas, extraídas de sua sobrecitada obra, alertando que os acentos em cores no aludido excerto são de nossa autoria, para demarcar o mérito da reflexão nas passagens onde constam.

J.A.R. – H.C. 
Laurence Sterne
(1713-1768)
Pintura de Joshua Reynolds (1760)

Tristram Shandy
Volume I 1760
Capítulo 22
(STERNE, 1998, p. 99-100)

[...] Quando algo é executado de uma maneira magistral que talvez não seja percebida, – penso ser igualmente abominável o homem perder o mérito dela e deixar o mundo com tal vaidade apodrecendo-lhe na cabeça.

Essa é precisamente a minha situação.

Pois nessa longa digressão a que fui acidentalmente levado, como em todas as minhas digressões (com exceção de uma só), há um toque de mestre na proficiência digressiva, cujo mérito receio tenha passado inteiramente despercebido ao leitor – não por falta de sagacidade de sua parte, – mas porque há uma excelência raras vezes buscada, ou sequer esperada, numa digressão; – que é: conquanto minhas digressões sejam todas consideráveis, como observais, – e eu possa desviar-me daquilo de que estava falando com tanta frequência e abundância quanto qualquer outro escritor da Grã-Bretanha, tomo o cuidado de constantemente ordenar as coisas de tal maneira que meu assunto principal não fique parado durante a minha ausência.

[...]

Graças a esse dispositivo, a maquinaria de minha obra é de uma espécie única; dois movimentos contrários são nela introduzidos e reconciliados, movimentos, movimentos que antes se julgava estarem em discrepância mútua. Numa só palavra, minha obra é digressiva, mas progressiva também, – isso ao mesmo tempo.

Trata-se, senhor, de história muito diversa da de a Terra mover-se em redor do seu eixo, em sua rotação diurna, com o avanço em sua órbita elíptica que é o que traz o ano e constitui aquela variedade e vicissitude das estações que desfrutamos; – embora eu confesse que isso me sugeriu a ideia, – porquanto acredito terem provido nossos progressos e descobertas, tão alardeados, de tais sugestões triviais.

As digressões são incontestavelmente a luz do sol; – são a vida, a alma da leitura; – retirai-as deste livro, por exemplo, – e será melhor se tirardes o livro juntamente com ela; – um gélido e eterno inverno reinará em cada página; devolvei-as ao autor; – ele se adiantará como um noivo, – e as saudará a todas; elas trazem a variedade e impedem que a apetência venha a faltar.

Toda a destreza está no bom cozimento e manejo delas, não só para proveito do leitor como igualmente no próprio autor, cuja aflição, neste particular, é verdadeiramente comovente: pois, quando ele começa uma digressão, – observo que toda a sua obra para a partir desse momento; – e quando ele avança na obra principal, – tem então de pôr fim à sua digressão.

– Este é um trabalho ingrato. – Por tal razão, desde o começo desta obra, como vedes, construí a parte principal e as adventícias com tais interseções, e compliquei e envolvi os movimentos digressivo e progressivo de tal maneira, uma roda dentro da outra, que toda a máquina, no geral, tem se mantido em movimento; – e, o que é mais, se manterá em movimento nos próximos quarenta anos, se aprouver à fonte da saúde bendizer-me com vida tão longa e tanto bom humor.


Referência:

STERNE, Laurence. Volume I 1760; Capítulo 22. In: __________. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução, introdução e notas de José Paulo Paes. 2. ed. corrig. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 41-105.

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