Dom Quixote, o “cavaleiro da triste figura”, é uma das criações da
imaginação humana que paira sobre o “inconsciente coletivo” da humanidade [ou
seria melhor afirmar da “sociedade ocidental”? (rs)]. Quem não conhece a
história de um certo cavaleiro espanhol, ensandecido pela leitura de tantos
romances de cavalaria?!
Ele, o fiel escudeiro Sancho Pança, o pangaré Rocinante e sua fugaz amada
Dulcineia del Toboso são os personagens centrais daquele que foi considerado
por 100 escritores de 54 países – em Oslo, 2002 –, o melhor livro de todos os
tempos.
Talvez tal reconhecimento ratifique a importância que a criação teve,
desde que levada ao público no já distante século XVII: nenhuma romance parece
ter gerado tanta literatura secundária, metaliteratura portanto, quanto a obra-prima
de Miguel de Cervantes Saavedra. Digo isso pela quantidade exuberante de poemas,
que venho encontrando nos últimos meses, tendo por tema quer a obra em si, quer
os aludidos personagens.
E para ilustrar o que afirmo, postarei, em sequência, alguns sonetos e
passagens constantes em diversos livros de autores brasileiros e estrangeiros,
a começar pelo tomo “Ondas”, de Euclides da Cunha, o afamado escritor de “Os
Sertões”.
Observo que o soneto de Euclides possui duas versões, ambas transcritas
a seguir: uma que se considera a final, e outra que parece ser uma sua variante,
e que, por isso mesmo, não lhe é tão dessemelhante.
J.A.R. – H.C.
Miguel de Cervantes
(1547-1616)
D. Quixote
Assim à aldeia volta o da “triste figura”,
Assim à aldeia volta o da “triste figura”,
Ao tardo caminhar do
Rocinante lento:
No arcabouço dobrado
– um grande desalento,
No entristecido olhar
– uns laivos de loucura...
Sonhos, a glória, o
amor, a alcantilada altura
Do Ideal e da Fé,
tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num
desmoronamento,
Entre os risos boçais
do Bacharel e do Cura...
Mas, certo, ó D.
Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao
pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da ilusão do
espírito doente;
Porque há coisa pior:
é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual
perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões – e
não se ficar louco!
__________
CUNHA, Euclides da. D. Quixote. In:
__________. Ondas. São Paulo: Martin
Claret, 2005. p. 72.
Euclides da Cunha
(1866-1909)
Volta à Aldeia
E assim à aldeia
torna el da triste figura.
Acabrunhado e triste,
exangue e macilento
Na acorvada postura –
em torno desalento
No desvairado olhar –
um laivo de loucura.
Dias de Glória!
Ideais! A alcantilada altura
De um sonho! Nada
mais resta de tal intento.
Essa nossa carcaça
vil – o Rocinante lento
E amigos carnais – o
bacharel e o cura…
Feliz Herói! Que
importa o riso mau das gentes
Se ele não sói entrar
dentro de um crânio oco
Repleto das visões
dos cérebros doentes…
Há uma coisa pior que
é ir-se a pouco a pouco
Perdendo qual
perdeste – ideais grandes e ardentes
E ardentes ilusões –
e não ficar-se louco!
__________
CUNHA, Euclides da. Volta à aldeia. In:
__________. Poesia Reunida. Principais
Variantes & Cotejos: Poemas. Org. de Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot
Hardman. São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. p. 368.
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