A história de Emma Bovary pode não ser venturosa – e, claro, sequer consegue ocultar o nexo moral subjacente –, mas ainda assim, em seu vaticínio tresloucado, está permeada de sentimentos humanos em estado puro, o que a submete ao escrutínio silente do leitor, o melhor julgador entre todos os que conhecem as peripécias de Emma.
Ordenado em torno das sempre mais insinuantes ações da esposa de Bovary – um médico por demais complacente e truão, que a verossimilhança de sua existência poderia ser colocada à prova –, a obra converge, de modo implacável, para o seu fim trágico e determinístico, de sorte que, não fosse a estilística explícita e reconhecidamente realista de seu texto, poder-se-ia qualificá-la como espreitando, por exemplo, as tendências naturalistas de um Zola.
Emma, insatisfeita com a vida tacanha que leva junto ao marido no universo provinciano do interior da França, passa a sonhar platonicamente com outros amores e, pouco depois, não mais se satisfaz com tais prazeres meramente metafísicos, senão que suas aventuras se materializam, primeiramente com Rodolphe, um contumaz sedutor, posteriormente com León, ainda um estudante universitário em Rouen.
Nessa toada, vem a comprometer o patrimônio da família por meio da assunção de obrigações cambiárias, que, mais tarde, levariam o casal à suprema humilhação de ver seus bens executados em hasta pública, para saldar as dívidas contraídas pela dissoluta senhora.
Pouco antes, Emma buscando salvar as aparências, procura por Rodolphe e León para que lhe ajudassem financeiramente, tendo ainda recebido de um outro pretendente a petulante proposta de "troca de favores", mas tudo em vão, o que a levou a suicidar-se com arsênico.
Mostra-se tão semelhante o fim trágico de Emma Bovary com a morte sob os trilhos de Anna Karenina, personagem do clássico homônimo de Tolstoi, que ilações outras não se poderiam adotar que não fossem as atinentes ao tom moralista de ambas as obras, a conduzir suas heroínas à morte, pela pretensão insana de romperem as relações conjugais, tornando os esposos alvo de considerações depreciativas.
É tão onipresente a comparação entre as mencionadas personagens, que nem mesmo o crítico norteamericano Harold Bloom dela escapou:
"A auto-imolação de Emma estabelece estranho contraste com a de Anna Karenina, de Tolstoi. O moralismo apocalíptico de Tolstoi causa a destruição de Anna, mas a sua morte nos causa uma sensação de alívio trágico; o seu sofrimento é grande demais para continuar existindo. Comparado ao de Anna, o sofrimento de Emma é banal, mas Emma é hedonista demais para suportá-lo. A morte de Emma carece de grandiosidade, mas o fato muito nos comove, porque tamanha perda de vitalidade sexual representa a derrota do sentido bíblico da noção de Benção, isto é, mais vida. A morte de Emma significa menos vida, menos possibilidade de prazer natural, menos de nós mesmos, nos dias que ainda nos restam" (Gênio; Ed. Objetiva; 2003; p. 674-675).
À parte a conotação de grandiosidade ou pequenez do sofrimento das heroínas, Bloom não é convincente sobre a pretensão de que tudo não se acabe logo e os leitores se aliviem do sentimento trágico de Emma, tal como no caso de Anna: neste ponto, ambas as obras se equivalem e o vaticínio a que nos reportamos mais acima acaba por sustentar a tese de valoração moral que as lastreia.
(Harold Bloom, à esquerda, e George Steiner, à direita)
Mais convincente, George Steiner afirma que Tolstoi, em sua obra-prima, condenou a sociedade que persegue Anna até a morte, invocando, ao mesmo tempo, as punições inexoráveis da lei moral. Neste último caso, tonrou-se famosa a epígrage paulina que emprega: "A vingança é minha, e eu a executarei". Nada tão distante de Flaubert, que, no entanto, "distancia-se da tela e pinta à distância de um braço, com maldade fria". Steiner sintetiza:
"Os dois romances são obras-primas do seu gênero. Zola considerava 'Madame Bovary' a consumação do realismo, a obra máxima de gênio numa tradição que remetia aos realistas do século XVIII e a Balzac. Romain Rolland o considerava o único romance francês passível de se comparar a Tolstoi 'devido ao seu poder de transmitir vida, e a totalidade da vida'. Entretanto, as duas realizações não se igualam de maneira alguma; 'Anna Karenina' é indubitavelmente maior, maior em escopo, em humanidade, em realização técnica. A similaridade de certos temas apenas reforça nossa percepção de magnitudes distintas" (Tolstoi ou Dostoiévski; Ed. Perspectiva; 2006; p. 35, 43 e 48).
"Os dois romances são obras-primas do seu gênero. Zola considerava 'Madame Bovary' a consumação do realismo, a obra máxima de gênio numa tradição que remetia aos realistas do século XVIII e a Balzac. Romain Rolland o considerava o único romance francês passível de se comparar a Tolstoi 'devido ao seu poder de transmitir vida, e a totalidade da vida'. Entretanto, as duas realizações não se igualam de maneira alguma; 'Anna Karenina' é indubitavelmente maior, maior em escopo, em humanidade, em realização técnica. A similaridade de certos temas apenas reforça nossa percepção de magnitudes distintas" (Tolstoi ou Dostoiévski; Ed. Perspectiva; 2006; p. 35, 43 e 48).
Nada obstante, tal como Bloom, Steiner não responde à pergunta que remanesce ao término da leitura de "Madame Bovary": por que Emma tem que morrer ao final ? Se há suficiente maldade em Flaubert, maior não seria se deixasse Emma a sofrer as humilhações em vida ? Ou a morte não quereria significar que os casos da espécie têm que ser purgados pelo limite incontornável da existência ?
(JAR/HC)
Emma viver seria uma humilhação para o marido; um exemplo que ainda poderia ser seguido por outras mulheres. Só a morte poderia resgatar a dignidade daquele e afastar de qualquer mulher a tentação da carne.
ResponderExcluirEmma morreu porque percebeu que não poderia viver como nos romances em que ela lia e sonhava, os homens só estavam a usando, aquele marquês era uma aventureiro, por isso nunca havia casado. A miséria só iria aumentar mais ainda essa impossibilidade. Quanto a dignidade do marido, muitos já sabiam das aventuras dela, e o vendedor, como era perspicaz, usou as insatisfações dela para tirar mais e mais. Emma queria romances e prazeres como na literatura sentimental de sua infância.
ResponderExcluirConcordo com a percepção de que Anna Karenina é muito maior que Madame Bovary. A vida de Emma é prosaica e seus amores, são devaneios quase infantis. A vida de Anna é cheia de dramas, de tragédias de desespero. A forma de escrever de Tolstoi é sublime. Criou uma Anna valente, corajosa que assume seu amor totalmente e enfrenta todas as regras da sociedade, todas as adversidades. É uma narrativa apaixonante.
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