HAMSUN, Kunt. Fome. Tradução de Adelina Fernandes. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2004. (Coleção Excelsior, Vol. 10).
Da autoria do escritor norueguês Kunt Hamsun, o romance “Fome”, publicado em 1890, foi
uma de minhas leituras recentes e, sobre ele, teço a seguir alguns breves
comentários.
Sumário:
“Passou-se isto no tempo em que eu
perambulava faminto por Cristânia, essa cidade singular de onde ninguém sai sem
levar consigo os traços de sua estada por lá...”.
Tal
é a nota preambular da obra sob análise: vê-se aí o nome anterior atribuído à
atual capital da Noruega, Oslo, onde se passa a narrativa, plena em descrições
dos efeitos da carência alimentar sobre o equilíbrio do psiquismo e da mente do
escritor-protagonista, que aparece no texto em primeira pessoa, sem que seja
identificado nominalmente.
Ambientado em fins do século XIX, nomeadamente no trânsito entre as estações do outono para
o inverno, “Fome” retrata as condições míseras do quotidiano do autor, a ganhar
a vida escrevendo artigos e contos para jornais, circunstância que sugere a
ocorrência de elementos autobiográficos a compor a trama da novela.
Um
homem jovem, de vinte e poucos anos, mesmo ao passar por experiências
constrangedoras e humilhantes, busca a todo custo manter a dignidade: a opressão
da fome raras vezes supera-lhe a propensão a manter o bom humor.
Repetidas
vezes o personagem sugere que a intensa inércia para a produção de escritos
sobrevém-lhe como resultado de estados psíquicos alterados pelo efeito da
desnutrição. Decaem-lhe as condições social, mental e física, neste último caso,
a provocar-lhe alterações perceptíveis no corpo, como a queda de cabelos aos
tufos.
Sob
esse pano de fundo, transcorrem inúmeros episódios, desenvolvidos nas quatro
partes que compõem o livro. Num desses episódios, o faminto passa a noite em
uma cela de prisão, passando-se por um bem informado jornalista que perdeu as
chaves de seu apartamento. Em outro, conhece Ilayali, uma jovem com quem se
envolve, com algum grau de intimidade física. Noutro, ainda, viu-se admoestado
e repelido pela anfitriã da pousada em que se encontrava, tudo por não cumprir
com suas dívidas, tendo que dormir no chão da cozinha, ante os contratempos
gerados pela jogatina do marido e o banzé de seus dois filhos.
Incapaz
de se estabelecer profissionalmente, seja por debilidade de propósitos seja
pelos efeitos devastadores da carência, o protagonista se prende ao subterfúgio
recorrente de prometer saldar os seus débitos, assim que terminar alguns
trabalhos que prometem lhe resgatar do infortúnio em que está submerso.
Contudo, isso jamais ocorre.
Ao
fim, em passeio pelo porto da cidade, aceita um trabalho braçal em Leeds,
Inglaterra, onde se fará um carregamento de carvão para Cadiz, na Espanha.
Embarca então no elegante vapor de bandeira russa, o Coperogo, para um destino que lhe exigirá esforço talvez muito
superior ao de natureza intelectual, a que, até então, estivera exposto.
“No fiorde, arrastei-me uma vez
mais, suado, febril e exausto. Avistei a terra e despedi-me pelo presente da cidade,
de Cristânia, onde as janelas brilhavam tão intensamente em todas as casas”.
Avaliação:
Inicio
com um excerto de autoria de Reynaldo Damazio, em análise ao relançamento da
obra em apreço pela Geração Editorial, com tradução de Carlos Drummond de Andrade
(Guia da Folha – Livros, Discos, Filmes – 25.9.2009. p. 14.):
“Vagabundagem orgulhosa, crise de
perspectivas, caminho à beira da exclusão social e persistência no projeto de
tornar-se escritor dão ao personagem de ‘Fome’ as características do anti-herói
moderno, no enfrentamento da sociedade e de suas convenções. Se esse tipo de
rebeldia parece datado, é preciso avaliar onde a utopia se perdeu”.
Para
além de todas as possibilidades de interpretação de uma obra – tema muito bem
abordado por Umberto Eco em “Interpretação e Superinterpretação” –, julgo que
haja certa exacerbação na avaliação do jornalista da F.S.P., no que tange a
atribuir ao protagonista do romance – e, em última instância, ao seu autor –, a
intenção de confrontar a sociedade e suas convenções.
Aliás, não são tão nítidos os sentimentos antagônicos do protagonista em
relação à sociedade. Em certas passagens chega a atribuir os seus contratempos
ao destino ou à vontade divina. Veja-se:
“A ideia de Deus voltava a
inquietar-me. Parecia-me de uma cruel irresponsabilidade que Ele se
interpusesse no meu caminho, sempre que eu pretendia uma colocação, para
impedir a realização das minhas melhores esperanças. E, contudo, Senhor meu
Deus, era apenas o pão nosso de cada dia o que eu implorava!”.
Ou
seja: há mais matizes aristotélicos do que marxistas neste enredo de Hamsun. E,
por conseguinte, abordagens naturalísticas fazem o texto se aproximar bem mais
de certas linhas de argumentação de um Zola do que, propriamente,
de um Orwell.
E
mais: como não associar os transtornos psicóticos de Raskólnikov, em “Crime e
Castigo”, aos do personagem de “Fome”, muito embora tenham origens bastante
distintas? É o tratamento psicológico deferido às figuras maiores de ambos os
romances que faz o ambiente das respectivas histórias convergir para o cinzento
e o circunspecto...
Comparações
à parte, a obra de Hamsun tem brilho próprio, por sua escrita fluente e
imaginosa, submersa em atmosfera de pesadelo, sem definhar na autopiedade. Por
isso mesmo, o norueguês foi merecedor de um Nobel: o de 1920.
H.C./J.A.R.
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