Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Fome - Knut Hamsun




HAMSUN, Kunt. Fome. Tradução de Adelina Fernandes. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004. (Coleção Excelsior, Vol. 10).

Da autoria do escritor norueguês Kunt Hamsun, o romance “Fome”, publicado em 1890, foi uma de minhas leituras recentes e, sobre ele, teço a seguir alguns breves comentários.

Sumário:

“Passou-se isto no tempo em que eu perambulava faminto por Cristânia, essa cidade singular de onde ninguém sai sem levar consigo os traços de sua estada por lá...”.

Tal é a nota preambular da obra sob análise: vê-se aí o nome anterior atribuído à atual capital da Noruega, Oslo, onde se passa a narrativa, plena em descrições dos efeitos da carência alimentar sobre o equilíbrio do psiquismo e da mente do escritor-protagonista, que aparece no texto em primeira pessoa, sem que seja identificado nominalmente.

Ambientado em fins do século XIX, nomeadamente no trânsito entre as estações do outono para o inverno, “Fome” retrata as condições míseras do quotidiano do autor, a ganhar a vida escrevendo artigos e contos para jornais, circunstância que sugere a ocorrência de elementos autobiográficos a compor a trama da novela.

Um homem jovem, de vinte e poucos anos, mesmo ao passar por experiências constrangedoras e humilhantes, busca a todo custo manter a dignidade: a opressão da fome raras vezes supera-lhe a propensão a manter o bom humor.

Repetidas vezes o personagem sugere que a intensa inércia para a produção de escritos sobrevém-lhe como resultado de estados psíquicos alterados pelo efeito da desnutrição. Decaem-lhe as condições social, mental e física, neste último caso, a provocar-lhe alterações perceptíveis no corpo, como a queda de cabelos aos tufos.

Sob esse pano de fundo, transcorrem inúmeros episódios, desenvolvidos nas quatro partes que compõem o livro. Num desses episódios, o faminto passa a noite em uma cela de prisão, passando-se por um bem informado jornalista que perdeu as chaves de seu apartamento. Em outro, conhece Ilayali, uma jovem com quem se envolve, com algum grau de intimidade física. Noutro, ainda, viu-se admoestado e repelido pela anfitriã da pousada em que se encontrava, tudo por não cumprir com suas dívidas, tendo que dormir no chão da cozinha, ante os contratempos gerados pela jogatina do marido e o banzé de seus dois filhos.

Incapaz de se estabelecer profissionalmente, seja por debilidade de propósitos seja pelos efeitos devastadores da carência, o protagonista se prende ao subterfúgio recorrente de prometer saldar os seus débitos, assim que terminar alguns trabalhos que prometem lhe resgatar do infortúnio em que está submerso. Contudo, isso jamais ocorre.

Ao fim, em passeio pelo porto da cidade, aceita um trabalho braçal em Leeds, Inglaterra, onde se fará um carregamento de carvão para Cadiz, na Espanha. Embarca então no elegante vapor de bandeira russa, o Coperogo, para um destino que lhe exigirá esforço talvez muito superior ao de natureza intelectual, a que, até então, estivera exposto.

“No fiorde, arrastei-me uma vez mais, suado, febril e exausto. Avistei a terra e despedi-me pelo presente da cidade, de Cristânia, onde as janelas brilhavam tão intensamente em todas as casas”.

Avaliação:

Inicio com um excerto de autoria de Reynaldo Damazio, em análise ao relançamento da obra em apreço pela Geração Editorial, com tradução de Carlos Drummond de Andrade (Guia da Folha – Livros, Discos, Filmes – 25.9.2009. p. 14.):

“Vagabundagem orgulhosa, crise de perspectivas, caminho à beira da exclusão social e persistência no projeto de tornar-se escritor dão ao personagem de ‘Fome’ as características do anti-herói moderno, no enfrentamento da sociedade e de suas convenções. Se esse tipo de rebeldia parece datado, é preciso avaliar onde a utopia se perdeu”.

Para além de todas as possibilidades de interpretação de uma obra – tema muito bem abordado por Umberto Eco em “Interpretação e Superinterpretação” –, julgo que haja certa exacerbação na avaliação do jornalista da F.S.P., no que tange a atribuir ao protagonista do romance – e, em última instância, ao seu autor –, a intenção de confrontar a sociedade e suas convenções.

Aliás, não são tão nítidos os sentimentos antagônicos do protagonista em relação à sociedade. Em certas passagens chega a atribuir os seus contratempos ao destino ou à vontade divina. Veja-se:

“A ideia de Deus voltava a inquietar-me. Parecia-me de uma cruel irresponsabilidade que Ele se interpusesse no meu caminho, sempre que eu pretendia uma colocação, para impedir a realização das minhas melhores esperanças. E, contudo, Senhor meu Deus, era apenas o pão nosso de cada dia o que eu implorava!”.

Ou seja: há mais matizes aristotélicos do que marxistas neste enredo de Hamsun. E, por conseguinte, abordagens naturalísticas fazem o texto se aproximar bem mais de certas linhas de argumentação de um Zola do que, propriamente, de um Orwell.

E mais: como não associar os transtornos psicóticos de Raskólnikov, em “Crime e Castigo”, aos do personagem de “Fome”, muito embora tenham origens bastante distintas? É o tratamento psicológico deferido às figuras maiores de ambos os romances que faz o ambiente das respectivas histórias convergir para o cinzento e o circunspecto...

Comparações à parte, a obra de Hamsun tem brilho próprio, por sua escrita fluente e imaginosa, submersa em atmosfera de pesadelo, sem definhar na autopiedade. Por isso mesmo, o norueguês foi merecedor de um Nobel: o de 1920.

H.C./J.A.R.

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