Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 17 de agosto de 2014

Shakespeare – Os Espíritos Imaginativos

Vejam que palavras provocativas Shakespeare coloca na boca de Teseu (Theseus), o duque de Atenas, em “Sonho de uma Noite de Verão”, para enunciar aquilo do que são capazes os espíritos mais imaginativos sobre a face da terra: os lunáticos, os amantes e os poetas.

Tais são as áreas mais afeitas a gerar comportamentos a partir de percepções, corretas ou não. Mas o que o bardo expressa não caracteriza uma imagem positiva das três figuras que enumera, haja vista que busca contrastar exatamente o que vai em suas mentes ilusionistas e a realidade palpável ao seu redor:

“The lunatic, the lover and the poet
Are of imagination all compact:
One sees more devils than vast hell can hold,
That is, the madman: the lover, all as frantic,
Sees Helen’s beauty in a brow of Egypt:
The poet’s eye, in fine frenzy rolling,
Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven;
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes and gives to airy nothing
A local habitation and a name.
Such tricks hath strong imagination,
That if it would but apprehend some joy,
It comprehends some bringer of that joy;
Or in the night, imagining some fear,
How easy is a bush supposed a bear!”

“O lunático, o amante e o poeta
São compostos tão somente de imaginação.
Um enxerga tantos demônios que estes não cabem em todo o vasto inferno;
Assim é o louco. O amante, tão desvairado quanto,
Enxerga a beleza de Helena de Troia no rosto de uma cigana.
O poeta revira os olhos num fino e furioso frenesi,
Lança um olhar do céu para a terra, outro da terra para o céu
E, à medida que a imaginação vai desenhando
O contorno de coisas não conhecidas, a pena do poeta
Vai lhes dando formas, e coloca um nada etéreo
Em uma habitação local e inventa-lhe um nome.
Uma imaginação forte tem truques tais
Que, se concebe uma alegria,
Inclui também um causador dessa alegria;
Ou então, à noite, imaginando algum medo,
Como é fácil confundir um arbusto com um urso!”
(SHAKESPEARE, 2013, p. 101-102)

The Quarrel of Oberon and Titania
(Joseph Noel Paton: 1821-1901)

Mas uma pergunta: poeta dos maiores como foi, Shakespeare não terá percebido que estava dando um tiro no pé?! Haverá em toda a literatura um criador tão imaginativo quanto ele?! O fato é que as peças do autor inglês é o ‘locus’ preferencial dos espíritos que sofrem ante a exposição à realidade, exibindo comportamentos fora da norma. E a bem da verdade, nem sempre são simples voos de imaginação, senão, por vezes, incursões no psicótico e no psiquiátrico.

Mas Shakespeare se explica a contento nas palavras derradeiras de Bute (Puck), um duende bufão e endiabrado, na mesma Cena I do Quinto Ato, ao afirmar que é possível que venha a se emendar:

If we shadows have offended,
Think but this, and all is mended,
That you have but slumber’d here
While these visions did appear.
And this weak and idle theme,
No more yielding but a dream,
Gentles, do not reprehend:
If you pardon, we will mend:

Se nós, sombras, vos ofendemos,
Pensai nos seguintes termos:
O que vos sucedeu foi adormecer,
E essas visões que a vós parecíeis ver
Compuseram o nosso tema, tolo
E à toa, nada mais que um sonho.
Não censureis este nosso tema;
Perdoai-nos, e haverá emenda.
(SHAKESPEARE, 2013, p. 121-122)

Como sublinha a escritora norte-americana Laurie Rozakis, o quinto ato da peça em referência é nitidamente devotado à relação entre os sonhos e a realidade, a arte e a vida: “Como num sonho, a peça apresenta uma estranha mistura de personagens realísticos e fantásticos, de falas cotidianas e poesia sublime, de acontecimentos verossímeis e arrojados voos de imaginação” (ROZAKIS, 2002, p. 101).

E uma vez que “a poesia verdadeira é a mais fingida” (SHAKESPEARE apud FARACO, 2012, p. 106), estão franqueadas as portas mesmo às criações que emanam das emoções mais insinceras: como as do poeta-fingidor Fernando Pessoa. Tudo como fruto da imaginação. Afinal, a poesia não tem um vínculo necessário com a verdade!

J.A.R. – H.C.

Referências:

FARACO, Sérgio (Sel.). Shakespeare de A a Z: livro das citações. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Porto Alegre: L&PM, 2012.

ROZAKIS, Laurie. Tudo sobre Shakespeare. Tradução de Tereza Tillett. Barueri (SP): Manole, 2002.

SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Quinto Ato, Cena I. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2013.
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