Vejam que palavras provocativas Shakespeare coloca na boca de Teseu
(Theseus), o duque de Atenas, em “Sonho de uma Noite de Verão”, para enunciar aquilo do que são capazes os espíritos mais
imaginativos sobre a face da terra: os lunáticos,
os amantes e os poetas.
Tais são as áreas mais afeitas a gerar comportamentos a partir de
percepções, corretas ou não. Mas o que o bardo expressa não caracteriza uma
imagem positiva das três figuras que enumera, haja vista que busca contrastar
exatamente o que vai em suas mentes ilusionistas e a realidade palpável ao seu
redor:
“The lunatic, the lover and the poet
Are of imagination all compact:
One sees more devils than vast hell can hold,
That is, the madman: the lover, all as frantic,
Sees Helen’s beauty in a brow of Egypt:
The poet’s eye, in fine frenzy rolling,
Doth glance from heaven to earth, from earth to
heaven;
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes and gives to airy nothing
A local habitation and a name.
Such tricks hath strong imagination,
That if it would but apprehend some joy,
It comprehends some bringer of that joy;
Or in the night, imagining some fear,
How easy is a bush supposed a bear!”
“O lunático, o amante
e o poeta
São compostos tão
somente de imaginação.
Um enxerga tantos
demônios que estes não cabem em todo o vasto inferno;
Assim é o louco. O
amante, tão desvairado quanto,
Enxerga a beleza de
Helena de Troia no rosto de uma cigana.
O poeta revira os
olhos num fino e furioso frenesi,
Lança um olhar do céu
para a terra, outro da terra para o céu
E, à medida que a
imaginação vai desenhando
O contorno de coisas
não conhecidas, a pena do poeta
Vai lhes dando
formas, e coloca um nada etéreo
Em uma habitação
local e inventa-lhe um nome.
Uma imaginação forte
tem truques tais
Que, se concebe uma
alegria,
Inclui também um
causador dessa alegria;
Ou então, à noite,
imaginando algum medo,
Como é fácil
confundir um arbusto com um urso!”
(SHAKESPEARE, 2013,
p. 101-102)
The Quarrel of Oberon and Titania
(Joseph Noel Paton: 1821-1901)
Mas uma pergunta: poeta dos maiores como foi, Shakespeare não terá
percebido que estava dando um tiro no pé?! Haverá em toda a literatura um
criador tão imaginativo quanto ele?! O fato é que as peças do autor inglês é o ‘locus’
preferencial dos espíritos que sofrem ante a exposição à realidade, exibindo
comportamentos fora da norma. E a bem da verdade, nem sempre são simples voos
de imaginação, senão, por vezes, incursões no psicótico e no psiquiátrico.
Mas Shakespeare se explica a contento nas palavras derradeiras de Bute
(Puck), um duende bufão e endiabrado, na mesma Cena I do Quinto Ato, ao afirmar que
é possível que venha a se emendar:
If we shadows have offended,
Think but this, and all is mended,
That you have but slumber’d here
While these visions did appear.
And this weak and idle theme,
No more yielding but a dream,
Gentles, do not reprehend:
If you pardon, we will mend:
Se nós, sombras, vos
ofendemos,
Pensai nos seguintes
termos:
O que vos sucedeu foi
adormecer,
E essas visões que a
vós parecíeis ver
Compuseram o nosso
tema, tolo
E à toa, nada mais
que um sonho.
Não censureis este
nosso tema;
Perdoai-nos, e haverá
emenda.
(SHAKESPEARE, 2013,
p. 121-122)
Como sublinha a escritora norte-americana Laurie Rozakis, o quinto ato
da peça em referência é nitidamente devotado à relação entre os sonhos e a
realidade, a arte e a vida: “Como num sonho, a peça apresenta uma
estranha mistura de personagens realísticos e fantásticos, de falas cotidianas
e poesia sublime, de acontecimentos verossímeis e arrojados voos de imaginação”
(ROZAKIS, 2002, p. 101).
E uma vez que “a poesia verdadeira é a mais fingida” (SHAKESPEARE apud
FARACO, 2012, p. 106), estão franqueadas as portas mesmo às criações que emanam
das emoções mais insinceras: como as do poeta-fingidor Fernando Pessoa. Tudo
como fruto da imaginação. Afinal, a poesia não tem um vínculo necessário com a
verdade!
J.A.R. – H.C.
Referências:
FARACO, Sérgio (Sel.). Shakespeare de A a Z: livro das citações.
Tradução de Carlos Alberto Nunes. Porto Alegre: L&PM, 2012.
ROZAKIS, Laurie. Tudo sobre Shakespeare. Tradução de Tereza Tillett. Barueri (SP):
Manole, 2002.
SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Quinto Ato,
Cena I. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2013.
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