Não conheço outro autor que tenha escrito ou dito tantas coisas
relativas ao próprio ofício da poesia quanto o gaúcho Mario Quintana. Há
prodigalidade e inspiração em seus ‘insights’, originários de um espírito que
planou nas instâncias do retraimento.
Para ilustrar, coligi inúmeras passagens contidas na recolha “Poesia
Completa”, editada pela Nova Aguilar. Algumas são no formato de poemas, outras
como máximas, outras ainda se parecem com ditirambos. E para atingir as alturas
do Parnaso, nos moldes replicados por Nietzsche nas elucubrações de Zaratustra,
“só louco, só poeta”.
E como Quintana não tangenciou a loucura absoluta – embora, de louco,
como se diz, todos temos um pouco! –, restou a rubrica do poeta. E que poeta! E
não se conhecem os motivos pelos quais não lhe conferiram o mérito de pertencer
à Academia Brasileira de Letras. Aliás, tal qual Drummond! É
possível entender ou aceitar essas desditas?!
J.A.R. – H.C.
Mario Quintana
(1906-1994)
❁
O POEMA
Um poema como um gole d’água bebido no
escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida
para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua
misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(QUINTANA, 2006, p. 197)
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ALMA & FORMA
Dizes que a beleza não é nada? Imagina
um hipopótamo com alma de anjo... Sim, ele poderá convencer alguém da sua
angelitude – mas que trabalheira!
(QUINTANA, 2006, p. 276)
❁
RESSALVA
Poesia não é a gente tentar em vão
trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: poesia é trepar mesmo
pelas paredes.
(QUINTANA, 2006, p. 279)
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POESIA & MAGIA
A beleza de um verso não está no que
diz, mas no poder encantatório das palavras que diz: um verso é uma fórmula
mágica.
(QUINTANA, 2006, p. 281)
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ÉPOCA
Subnutrido de beleza, meu
cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro
andará desperdiçado por aí...
Quanto filhotinho de estrela atirado no
lixo!
(QUINTANA, 2006, p. 288)
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A TRISTE BELEZA
Esse verso de pé-quebrado que atravessa
a página de um lado a outro, como um pobre cachorro estropiado...
(QUINTANA, 2006, p. 352)
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ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO
Ah! Os versos das línguas pouco lidas como
a nossa – pouco lidas por nós mesmos e desconhecidas pelo resto do mundo...
Sua incomunicabilidade os torna de uma
beleza única e irreparável.
Quando descubro um belo verso nosso,
sempre me dá vontade de chorar, porque é escrito em português.
(QUINTANA, 2006, p. 353)
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DA RELATIVA INSPIRAÇÃO
Inspiração? Sim... Mas convém não
esquecer que a poesia, como todo verdadeiro jogo, é uma luta da astúcia contra
o acaso.
(QUINTANA, 2006, p. 369)
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CUIDADO!
A poesia não se entrega a quem a
define.
(QUINTANA, 2006, p. 375)
❁
SEM TÍTULO
Quem disse que a poesia é apenas
agreste avena?
agreste avena?
A poesia é a eterna Tomada da Bastilha
o eterno quebra-quebra
o enforcar de Judas, executivos e catedráticos em todas as esquinas
e,
a um ruflar poderoso de asas,
entre cortinas incendiadas
os Anjos do Senhor estuprando as mais belas filhas dos mortais...
Deles, nascem os poetas.
Não todos... Os legítimos
espúrios:
um Rimbaud, um Poe, um Cruz e Souza...
(Rege-os, misteriosamente, o décimo terceiro signo do Zodíaco.)
o eterno quebra-quebra
o enforcar de Judas, executivos e catedráticos em todas as esquinas
e,
a um ruflar poderoso de asas,
entre cortinas incendiadas
os Anjos do Senhor estuprando as mais belas filhas dos mortais...
Deles, nascem os poetas.
Não todos... Os legítimos
espúrios:
um Rimbaud, um Poe, um Cruz e Souza...
(Rege-os, misteriosamente, o décimo terceiro signo do Zodíaco.)
(QUINTANA, 2006, p. 485-486)
❁
2005
Com a decadência da arte da leitura,
daqui a 30 anos os nossos romancistas serão reeditados exclusivamente em
histórias de quadrinhos... A grande consolação é que jamais poderão fazer uma
coisa dessas com os poetas. A poesia é irredutível.
(QUINTANA, 2006, p. 511)
❁
O MENINO E O MILAGRE
O primeiro verso que um poeta faz é
sempre o mais belo porque toda a poesia do mundo está em ser aquele o seu
primeiro verso...
(QUINTANA, 2006, p. 524)
❁
POESIA E EMOÇÃO
O palavrão é a mais espontânea forma da
poesia. Brota do fundo d'alma e maravilhosamente ritmada. Se isto indigna o
leitor e ele solta sem querer uma daquelas, veja o belo verso que lhe saiu, com
as características do próprio: ritmo e emoção sem o que, meu caro senhor, não
há Poesia. Escute, não perca discussão de rua, especialmente entre comadres italianas,
e se verá então em plena poesia dramática de empalidecer de inveja o
maravilhoso e refinado Racine, mas não o bárbaro Shakespeare, igualmente
maravilhoso, embora destrambelhado de boca. Por isso é que não nos toca a
poesia feita a frio, de fora para dentro, mas a que nos surge do coração como
um grito, seja de amor, de dor, de ódio, espanto ou encantamento.
(QUINTANA, 2006, p. 525)
❁
DE UMA ENTREVISTA PARA O BOLETIM DO INBA
Não pretendo que a poesia seja um
antídoto para a tecnocracia atual. Mas sim um alívio. Como quem se livra de vez
em quando de um sapato apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando assim
mais próximo da natureza, mas por dentro da vida. Porque as máquinas um dia
viram sucata. A poesia, nunca.
(QUINTANA, 2006, p. 527)
❁
A POESIA É NECESSÁRIA
Título de uma antiga seção do velho
Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos
deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus. É preferível, para a alma humana,
fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética é sempre um
esforço de autossuperação e, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria
da alma.
E, mesmo para os simples leitores de
poemas, que são todos eles uns poetas inéditos, a poesia é a única novidade
possível. Pois tudo já está nas enciclopédias, que só repetem estupidamente,
como robôs, o que lhes foi incutido. Ou embutido. Ah, mas um poema, um poema é
outra coisa...
(QUINTANA, 2006, p. 564)
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NOTAS DE UM LEITOR (I)
Os versos de Jorge Luis Borges são
premeditados, implacavelmente lógicos. A sua prosa tem mais mistérios, isto é,
mais poesia.
(QUINTANA, 2006, p. 641)
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MISTÉRIOS
Um dos espantosos mistérios da poesia é
que uma coisa só parece ela própria quando comparada a outra coisa.
(QUINTANA, 2006, p. 676)
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LEITURAS
Não leia romances, leia poesias. Ou
melhor, leia dicionários. Se poesia é sugestão – semente que germina e floresce
na alma do leitor – vá lendo ao acaso um dicionário e nem pode imaginar o que
lhe acontece. Ler um dicionário é até mais variado, poético e inspirativo do
que olhar uma vitrine de bric.
(QUINTANA, 2006, p. 681)
❁
POESIA PURA
A poesia pura? Coisa tão impossível
como a imaginação pura. Ambas se compõem de resíduos, detritos, restos de maré
vazante...
Mas sabe lá o que pode um mágico
extrair daí! E a imponente, luzente cartola desses prestidigitadores de palco é
apenas um pobre símbolo da maravilhosa lata de lixo dos Grandes e Verdadeiros
Magos.
(QUINTANA, 2006, p. 681)
❁
LIBERDADE
O preço da poesia é a eterna
liberdade... E aderir a determinada escola poética é o mesmo que internar-se, Voluntariamente,
num asilo de incuráveis.
(QUINTANA, 2006, p. 704)
❁
POESIA
Impossível qualquer explicação: ou a
gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério
evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um axioma. E, embora evidente, traz
sempre um imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.
(QUINTANA, 2006, p. 812)
❁
A DIFERENÇA
A diferença entre um poeta e um louco é
que o poeta sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.
(QUINTANA, 2006, p. 828)
❁
A PEDRA E O GRITO
Há cerca de mais de cinquenta anos foi
para nos uma lição de poesia aquele poema da pedra no meio do caminho. Pelo seu
despojamento. Pela Sua expressividade. Por si mesmo, sem mais explicações.
Ah! era um encanto e um gozo, na
verdade vos digo, primeiro pela indiferença a todos os cânones e depois pela
cara com que ficavam os canônicos.
Nem foi por outro motivo que eu disse,
em resposta a inquérito, que aquela pedra foi um marco histórico na poesia
brasileira. Desde então, Como depois da bomba atômica, nunca mais fomos os
mesmos.
(QUINTANA, 2006, p. 829)
❁
O IMAGISTA
Arte participante? Nem a dos cartazes!
A beleza de um cartaz independe do que anuncia. A vida não passa de um livro de
figuras, para o verdadeiro artista.
E até na poesia (que muitos julgam
apenas um desfrute sentimental e outros um jogo do intelecto), até na poesia,
se lhe tiram as imagens – que é que sobra? Não sobra nem a alma!
(QUINTANA, 2006, p. 807)
❁
ORAÇÃO
Dai-me a alegria
Do poema de cada dia.
E que ao longo do caminho
As almas eu distribua
Minha porção de poesia
Sem que ela diminua...
Poesia tanta e tão minha
Que por uma eucaristia
Possa eu fazê-la sua
“Eis minha carne e meu sangue!”
A minha carne e meu sangue
Em toda a ardente impureza
Deste humano coração...
Mas, ó Coração Divino,
Deixai-me dar de meu vinho,
Deixai-me dar de meu pão!
Que mal faz uma canção?
Basta que tenha beleza...
(QUINTANA, 2006, p. 889)
❁
Referência:
QUINTANA, Mario. Poesia completa. Primeira Reimpressão da Primeira Edição. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2006. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Brasileira)
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