Que Borges é daqueles espíritos com um acervo cultural enorme – e muito
especialmente na seara literária –, ninguém há de discutir. E quanto discorre
sobre a matéria, especificamente em suas palestras – cada vez mais frequentes
já próximo ao desenlace de sua vida, haja vista que perdeu a visão aos poucos –,
ou em entrevistas, são notórias e recorrentes, especificamente, as alusões à
literatura inglesa, objeto de um curso que ministrou em 1966, na Universidade
de Buenos Aires, e que, por obra de colaboradores, virou o livro que hoje temos
já traduzido para o português “Curso de Literatura Inglesa”, editado pela WMF
Martins Fontes e vertido por Eduardo Brandão.
E para expressar como Borges avaliava as criações de Shakespeare, um dos
expoentes maiores – ou seria o maior deles?! – das letras em língua inglesa,
extraímos excerto da entrevista que o argentino concedeu a Ronald Christ, em julho
de 1966, e publicada no renomado magazine “Paris Review”, cujo inteiro teor
pode ser consultado, no original, no seguinte endereço eletrônico.
Ronald Christ: o entrevistador
“Penso em Johnson
como um escritor mais inglês do que Shakespeare. Porque, se há uma coisa típica
dos ingleses, é o cultivo dos subentendidos. Bem, no caso de Shakespeare, não
há subentendidos. Pelo contrário, ele está ‘empilhando as agonias’ (*), como
diz o americano, acho eu. Creio que Johnson, que escreveu num tipo de inglês
latino, e Wordsworth, que escreveu mais com palavras saxônicas, e há um
terceiro escritor cujo nome agora não me ocorre – bem – digamos que Johnson,
Wordsworth e também Kipling, acho que eles são muito mais tipicamente ingleses
do que Shakespeare. Não sei por que, mas sempre sinto algo de italiano, algo de
judaico em Shakespeare, e talvez os ingleses o admirem tanto por isso mesmo,
por ser tão diferente deles” (BORGES, 2011, p. 159-160).
Ronald Christ afirma, então, que Shakespeare era bombástico, a provável
razão de os franceses o desprezarem tanto. Borges ratifica tal impressão, e
complementa:
“Mesmo numa frase
famosa como as últimas palavras de Hamlet, acho eu, ‘The rest is silence’ [‘O
resto é silêncio’]. Há algo de falso aí; ela foi feita para impressionar. Não
acho que ninguém diria nada parecido” (BORGES, 2011, p. 161).
E mais à frente:
“‘Qual o problema’ é
o oposto de ‘O resto é silêncio’. Pelo menos para mim, ‘O resto é silêncio’ tem
um toque de vazio. Você sente que Shakespeare está pensando: Bem, agora o príncipe
Hamlet da Dinamarca está morrendo; ele tem que dizer algo impressionante. Então
ele aplica essa frase, ‘O resto é silêncio’. Ora, isso pode ser impressionante,
mas não é verdade! Ele estava empenhado na sua tarefa de poeta, mas sem pensar
no personagem real, Hamlet, o dinamarquês” (BORGES, 2011, p. 161).
Borges: o entrevistado
Tal como imagino, as palavras de Borges expressam suas dúvidas quanto à
real capacidade de o bardo qualificar melhor os personagens de suas peças,
restando no fundo de todos os seus textos, plasmada para a eternidade, a sua
extraordinária aptidão para criar imagens e frases contundentes, que fazem a
delícia dos que se encantam com o primor das sentenças perfeitas, mas que dão
margem a adversativas para os que atentam, antes de tudo, para a qualidade da
história e a sua verossimilhança.
J.A.R. – H.C.
Nota:
(*) O tradutor da entrevista para o
português observa em uma nota de rodapé: “Empilhando as agonias, da expressão
em inglês ‘to pile on the agony’, que significa algo como ‘dramatizar’, tentar
atrair a empatia dos outros fazendo seus problemas parecerem piores do que são”
(BORGES, 2011, p. 160).
Referência:
BORGES, Jorge Luis. A arte da ficção
39. In: AUDEN, W. H. et al. As entrevistas da Paris Review. v. 1. Tradução de Christian Schwartz
e Sérgio Alcides. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 120-176.
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