Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Borges acerca de Shakespeare

Que Borges é daqueles espíritos com um acervo cultural enorme – e muito especialmente na seara literária –, ninguém há de discutir. E quanto discorre sobre a matéria, especificamente em suas palestras – cada vez mais frequentes já próximo ao desenlace de sua vida, haja vista que perdeu a visão aos poucos –, ou em entrevistas, são notórias e recorrentes, especificamente, as alusões à literatura inglesa, objeto de um curso que ministrou em 1966, na Universidade de Buenos Aires, e que, por obra de colaboradores, virou o livro que hoje temos já traduzido para o português “Curso de Literatura Inglesa”, editado pela WMF Martins Fontes e vertido por Eduardo Brandão.

E para expressar como Borges avaliava as criações de Shakespeare, um dos expoentes maiores – ou seria o maior deles?! – das letras em língua inglesa, extraímos excerto da entrevista que o argentino concedeu a Ronald Christ, em julho de 1966, e publicada no renomado magazine “Paris Review”, cujo inteiro teor pode ser consultado, no original, no seguinte endereço eletrônico.

Ronald Christ: o entrevistador

“Penso em Johnson como um escritor mais inglês do que Shakespeare. Porque, se há uma coisa típica dos ingleses, é o cultivo dos subentendidos. Bem, no caso de Shakespeare, não há subentendidos. Pelo contrário, ele está ‘empilhando as agonias’ (*), como diz o americano, acho eu. Creio que Johnson, que escreveu num tipo de inglês latino, e Wordsworth, que escreveu mais com palavras saxônicas, e há um terceiro escritor cujo nome agora não me ocorre – bem – digamos que Johnson, Wordsworth e também Kipling, acho que eles são muito mais tipicamente ingleses do que Shakespeare. Não sei por que, mas sempre sinto algo de italiano, algo de judaico em Shakespeare, e talvez os ingleses o admirem tanto por isso mesmo, por ser tão diferente deles” (BORGES, 2011, p. 159-160).

Ronald Christ afirma, então, que Shakespeare era bombástico, a provável razão de os franceses o desprezarem tanto. Borges ratifica tal impressão, e complementa:

“Mesmo numa frase famosa como as últimas palavras de Hamlet, acho eu, ‘The rest is silence’ [‘O resto é silêncio’]. Há algo de falso aí; ela foi feita para impressionar. Não acho que ninguém diria nada parecido” (BORGES, 2011, p. 161).

E mais à frente:

“‘Qual o problema’ é o oposto de ‘O resto é silêncio’. Pelo menos para mim, ‘O resto é silêncio’ tem um toque de vazio. Você sente que Shakespeare está pensando: Bem, agora o príncipe Hamlet da Dinamarca está morrendo; ele tem que dizer algo impressionante. Então ele aplica essa frase, ‘O resto é silêncio’. Ora, isso pode ser impressionante, mas não é verdade! Ele estava empenhado na sua tarefa de poeta, mas sem pensar no personagem real, Hamlet, o dinamarquês” (BORGES, 2011, p. 161).

Borges: o entrevistado

Tal como imagino, as palavras de Borges expressam suas dúvidas quanto à real capacidade de o bardo qualificar melhor os personagens de suas peças, restando no fundo de todos os seus textos, plasmada para a eternidade, a sua extraordinária aptidão para criar imagens e frases contundentes, que fazem a delícia dos que se encantam com o primor das sentenças perfeitas, mas que dão margem a adversativas para os que atentam, antes de tudo, para a qualidade da história e a sua verossimilhança.

J.A.R. – H.C.

Nota:

(*) O tradutor da entrevista para o português observa em uma nota de rodapé: “Empilhando as agonias, da expressão em inglês ‘to pile on the agony’, que significa algo como ‘dramatizar’, tentar atrair a empatia dos outros fazendo seus problemas parecerem piores do que são” (BORGES, 2011, p. 160).

Referência:

BORGES, Jorge Luis. A arte da ficção 39. In: AUDEN, W. H. et al. As entrevistas da Paris Review. v. 1. Tradução de Christian Schwartz e Sérgio Alcides. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 120-176.

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