Encontrei numa antologia do falecido poeta carioca Bruno Tolentino, uma
versão para o inglês do poema em epígrafe, que, sob o escrutínio dos escritores
contatados pela Folha de São Paulo, a pedido do editor do Caderno “Mais”, para
a edição de 2.1.2000, seria o “melhor poema brasileiro de todos os tempos”.
Como se pode notar mais abaixo, a versão de Tolentino não é uma tradução
literal do poema – embora em diversas passagens muito se aproxime disso –, mas
aquilo que ele mesmo afirma ser uma “leitura pessoal”.
Independentemente do que se possa dispor em contraditas, o poema – pertencente
a uma obra que, com “A Rosa do Povo”, considero o que de melhor há em Drummond,
diga-se, “Claro Enigma” –, gerou bastantes controvérsias em sua interpretação,
a tal ponto de haver levado o ensaísta José Guilherme Merquior a refutar
aquelas abordagens que nele vislumbram um “niilismo” de “terra nua e deserta”
(1996, p. 102). Pondera Merquior:
“Ao conhecimento pela religião e pelo
amor, o viajante mineiro contrapõe um invencível pessimismo epistemológico. Rejeita
voluntário a ciência rara, inumana, hermética e sacra. [...] Não é possível
dizer que o poema seja negativista, em relação à possibilidade do conhecimento,
sem atestar que, onde ele é mais negativo, é em relação à viabilidade de um
conhecimento sobrenatural, sobre-humano, extra-humano. A recusa decidida dessa
via – apresentada como alternativa para os fracassos do espírito humano – está,
mais do que qualquer outro tema, extensa e intensamente plasmada nos seus
versos. É facultado ver, por trás do cerrado pessimismo de Drummond, um não
menos compacto humanismo” (1996, p. 112-113).
Como o vejo, há muito ceticismo, um nítido receio a todos os recursos de
ordem sobrenatural – como bem o percebe Merquior –, certa carga de desânimo com
as chaves de seu próprio devir, embora talvez não com os limites das possibilidades
humanas. Ou por outra: há informe e abundante massa de dúvidas incrustada no poema,
num vaivém que deixa o leitor em suspenso sobre o que existiria de “firme” no
pensamento do poeta. Tudo muito “humano,
demasiado humano!”.
J.A.R. – H.C.
Bruno Tolentino
(1940-2007)
The Machine of
the World
(Carlos Drummond de Andrade)
(A Personal Reading)
Versão por Bruno
Tolentino
(TOLENTINO, 2002, p.167-171)
As I went on one day trudging alone
down a street of Minas, a stony one,
at close of eve a hoarse-timbered bell
joined its tolling to the measured sound
of my leaden soles; as birds fell
and soared through barren skies, upon the ground
their silhouettes blended with the dark;
a darkness greater still was coming down
from mountainside as from myself now,
my disillusioned self; out of a stark,
utter silence – I cannot fathom how –
the machine of the world suddenly started
to open up unto my very eyes –
eyes shrunk from all dreams of such a prize,
pained at the very thought of having asked.
Circumspect, majestic all the way,
it opened with no sound impure, or glare
to human eyes impossible to bear;
nothing would force itself nor dismay
my pupils long wasted in the task
of surveilling a desert, nothing asked
of my exhausted mind to work out
an entire reality transcending
all image of itself sketched out
on the face of the mysteries, on the abyss.
It opened quietly, in perfect calm inviting
what senses-intuitions were amiss
yet still haunted him who long since
had lost them, nor desired to have them back
to repeat the same and random lacks
while circumnavigating that or this;
it invited them all, called on their throng
to try again, to apply themselves strong
and mighty upon the pure feast and wring
out of a cornucopia past all song
the full mythical nature of all things.
It told me so (though no voice nor breathing
nor echoes nor percussion testified
that from a mountainside a single sigh
was addressing a miserable, nightly being):
“What you sought in yourself or far above
those narrow confines, what wouldn’t do
though you humbled yourself often enough
‘til at the last moment you withdrew,
regard, attend, examine – all these riches
beyond the priceless pearl, this science which
is hermetic, formidable and sublime,
this total explanation of life,
this primal, singular nexus past all rhyme,
all of it unconceivable to you,
so evasive it was, so out of reach
even after you burned your best and worst
on the last, outermost and ardent quest –
see, contemplate it all, open your breast
and hold it, keep it all with you at last!”
The bridges most superb, the buildings past
all conceivable craft, all though of first
or last causes gone beyond all pitch,
all resources and means of earth steep
– all passions, all impulses, all of pain
and whatever defines us human beings
then proceeds through animals and plants
to soak in the angry sleep of minerals deep;
what will turn round the world until again
is engulfed in the wholesome, all too plain
geometrical order of all things,
and the absurd original, its enigmas
more truthful and higher still than all the
grandest
monuments ever built to truth on earth;
ant the memory of the gods, and that solemn
sentiment of death which mars all birth
as we see it flowering through the stem
of even the most glorious thing alive
– everything in a glimpse was there to drive
my senses back to a realm august
finally given to the human gaze…
Why, as I was too reticent to cast
an eye, as I would offer no reply
to such a marvel calling unto praise
a faithless, undesirable, sad, ungrateful
and consequently hopeless outcast
(too tired to be told of things higher
or else to let go of shadows baleful
as filter through all rays in brighter skies),
my defunct beliefs far below
weren’t as quick as to colour or to repaint
a face neutral: faith was too slow
to build a newer face upon the faces
I go on demonstrating pale and faint
to each path I tread upon of late;
as if another being, a distant mate
of the one I had been, had now replaced
for years countless what of me became,
I resigned my will and thus abandoned
what I might have wanted – no command
was offered: as some flower, say a rose
reluctant to being open is well nigh close,
as though a tardy gift were now too bland
to be longed for – how much less
possessed! – I set my eyes upon my feet
and proceeded uncurious, void of sense
and tired, quite tired and quite unfit
to behold any splendour, any gift.
Night had finally landed, thick and strict;
a quiet darkness was all round, all dense,
almighty… The machine of the world
recomposed itself as slow and wordless
as it had been repulsed. I weighed the cost:
my hands hanging be my sides, tense,
my whole body bending on the road
of old, stony Minas, there I strolled
evaluating what I had lost.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de
Andrade
(ANDRADE, 2001, p.
281-285)
E como eu palmilhasse
vagamente
uma estrada de Minas,
pedregosa,
e no fecho da tarde
um sino rouco
se misturasse ao som
de meus sapatos
que era pausado e
seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e
suas formas pretas
lentamente se fossem
diluindo
na escuridão maior,
vinda dos montes
e de meu próprio ser
desenganado,
a máquina do mundo se
entreabriu
para quem de a romper
já se esquivava
e só de o ter pensado
se carpia.
Abriu-se majestosa e
circunspecta,
sem emitir um som que
fosse impuro
nem um clarão maior
que o tolerável
pelas pupilas gastas
na inspeção
contínua e dolorosa
do deserto,
e pela mente exausta
de mentar
toda uma realidade
que transcende
a própria imagem sua
debuxada
no rosto do mistério,
nos abismos.
Abriu-se em calma
pura, e convidando
quantos sentidos e
intuições restavam
a quem de os ter
usado os já perdera
e nem desejaria
recobrá-los,
se em vão e para
sempre repetimos
os mesmos sem roteiro
tristes périplos,
convidando-os a
todos, em coorte,
a se aplicarem sobre
o pasto inédito
da natureza mítica
das coisas,
assim me disse,
embora voz alguma
ou sopro ou eco ou
simples percussão
atestasse que alguém,
sobre a montanha,
a outro alguém,
noturno e miserável,
em colóquio se estava
dirigindo:
“O que procuraste em
ti ou fora de
teu ser restrito e
nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se
ou se rendendo,
e a cada instante
mais se retraindo,
olha, repara,
ausculta: essa riqueza
sobrante a toda
pérola, essa ciência
sublime e formidável,
mas hermética,
essa total explicação
da vida,
esse nexo primeiro e
singular,
que nem concebes
mais, pois tão esquivo
se revelou ante a
pesquisa ardente
em que te
consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para
agasalhá-lo”.
As mais soberbas
pontes e edifícios,
o que nas oficinas se
elabora,
o que pensado foi e
logo atinge
distância superior ao
pensamento,
os recursos da terra
dominados,
e as paixões e os
impulsos e os tormentos
e tudo que define o
ser terrestre
ou se prolonga até
nos animais
e chega às plantas
para se embeber
no sono rancoroso dos
minérios,
dá volta ao mundo e
torna a se engolfar,
na estranha ordem
geométrica de tudo,
e o absurdo original
e seus enigmas,
suas verdades altas
mais que todos
monumentos erguidos à
verdade:
e a memória dos
deuses, e o solene
sentimento de morte,
que floresce
no caule da
existência mais gloriosa,
tudo se apresentou
nesse relance
e me chamou para seu
reino augusto,
afinal submetido à
vista humana.
Mas, como eu
relutasse em responder
a tal apelo assim
maravilhoso,
pois a fé se
abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais
mínima – esse anelo
de ver desvanecida a
treva espessa
que entre os raios do
sol inda se filtra;
como defuntas crenças
convocadas
presto e fremente não
se produzissem
a de novo tingir a
neutra face
que vou pelos
caminhos demonstrando,
e como se outro ser,
não mais aquele
habitante de mim há
tantos anos,
passasse a comandar
minha vontade
que, já de si
volúvel, se cerrava
semelhante a essas
flores reticentes
em si mesmas abertas
e fechadas;
como se um dom tardio
já não fora
apetecível, antes
despiciendo,
baixei os olhos,
incurioso, lasso,
desdenhando colher a
coisa oferta
que se abria gratuita
a meu engenho.
A treva mais estrita
já pousara
sobre a estrada de
Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo,
repelida,
se foi miudamente
recompondo,
enquanto eu,
avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de
mãos pensas.
Referências:
ANDRADE, Carlos Drummond. A máquina do
mundo. In: __________. Antologia poética
(organizada pelo autor). 48 ed. Prefácio de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
MERQUIOR, José Guilherme. “A máquina do
mundo” de Drummond. In: __________. Razão
do poema: ensaios de crítica e de estética. 2. ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996.
TOLENTINO, Bruno. The machine of the
world by Carlos Drummond de Andrade. In: __________. O mundo como ideia. São Paul: Globo, 2002.
&
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