Vagueando pelos mares de uma busca a um só tempo inglória e prazerosa,
pelo anseio de alcançar os manjares da poesia, o poeta paulista Amadeu Amaral
deplora o fato de quase nunca ter deparado, prodigamente, com os seios fartos
dessa metaforizada e difícil mulher.
Mas parece-me que ele a ama meio assim ao modo platônico, planando etereamente
no mundo das formas ou das ideias, ali nas esferas metafísicas, onde as coisas belas
e verdadeiras existiriam de fato, e as da realidade seriam mero arremedo ou mímese incompleta daquelas suas parelhas.
Ah... O que os filósofos – e os poetas por extensão – não são capazes
de conceber com as suas férteis mentes!
J.A.R. – H.C.
Amadeu Amaral
(1875-1929)
Epístola
(a Manuel Carlos)
Eu não sei, meu
amigo, se a Poesia,
como uma fada
complacente, voa,
à invocação deste ou
daquele fiel,
e vem ficar-lhe ao
pé, mansa em pessoa,
a dar-lhe vida e
forma à ideia fria,
a conduzir-lhe a mão
sobre o papel...
No meio desta humana
turba-multa
existem (dizem) almas
prediletas
que ela visita assim.
Vates de raça
é desse privilégio
que resulta
o seu caráter de genuínos
poetas,
iluminados de
inefável graça!
Eu não a vi jamais.
Nunca ela veio
impor-me a sua mão,
que tem imposto,
na febre do trabalho,
a tanta mão;
não lhe senti jamais
o arfar do seio
sobre o meu ombro;
nem, pelo meu rosto,
a sua musical
respiração.
Nunca a enxerguei
sequer; meus pobres olhos
debalde tentam
descobrir-lhe a cara,
e cruzar-se com os
seus, numa ansiedade.
Tenho-a buscado, como
se buscara
do universal palheiro
nos refolhos
a intangível agulha
da verdade...
Sou, pois, amigo,
como um namorado
que, na ausência da
amada, se contenta
de andar pelos
caminhos que ela andou,
e anda mil vezes o
caminho andado,
porque senti-la se
lhe representa
nas coisas que ela
viu e que tocou.
Sinto-a um pouco por
tudo, alegre ou mesta,
nos dias tristes, nos
faustosos dias,
nas ondas bravas e
nas ondas calmas.
A tudo um pouco de si
mesma empresta;
reluz nos gestos e
fisionomias,
e tanto doura as
pedras como as almas.
Os mares, os grotões,
as alvoradas,
as ideias, as nuvens,
a folhagem,
uma vida, uma
lágrima, um prazer,
tudo isso – coisas
tão disparatadas! –
reflete o seu clarão,
como a paisagem
sob o clarão de um
vago amanhecer.
E assim, nesta
ofegante e doce lida,
como um amante que o
seu bem supremo
espera vê-lo como um
sol que nasce,
dou-lhe o que há de melhor
na minha vida.
– mas não espero
vê-la, e quase temo
que possa vê-la um
dia face a face...
Nem eu mereça jamais
vê-la, amigo,
quando eu visse o
mistério, qual te vejo,
quando a Certeza me
guiasse a mão,
ter-me-ias calmo como
um deus antigo,
– mas ir-se-iam pelo
ar, num só bocejo,
as delícias do anseio
e da ilusão!
Poetry
(William Affleck: 1868-1943)
Referência:
AMARAL, Amadeu. Epístola. In:
__________. Poesias. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1931. p. 80-82.
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