Três poemas, mantidos em sua grafia original, com o português de
Portugal, são a recolha que hoje postamos para o deleite dos leitores deste
bloguinho.
O primeiro, da pena de António Gedeão, possui um título similar a um dos
mais abonados poemas do mineiro Carlos Drummond de Andrade: “(A) Máquina do
Mundo”.
Contudo, a sua leitura permite uma associação mais imediata com a
temática do filme “Mindwalk: The Turning Point” (“O Ponto de Mutação”), de 1991,
dirigido por Bernt Amadeus Capra, no qual um poeta, um político e uma cientista
discutem as possibilidades de se encarar o mundo a partir de uma visão
holística.
Há determinada passagem na referida película em que a cientista –
interpretada pela conhecida atriz Liv Ullmann –, se concentra em explicar aos
outros dois interlocutores as proporções do que seria a estrutura de um átomo:
o núcleo, de dimensão insignificante, como se constituísse o local em que se
encontravam – a abadia de São Michel, na Normandia (França) –, e os elétrons a
girar à sua volta a muitos quilômetros de distância. Em síntese: há um vazio
imenso na estrutura dos átomos, mas a aparência compacta da matéria resulta de
miríades de conexões entre eles.
Em seguida, no poema de Eduardo Guerra, persiste a temática do espaço
vazio, a dialogar com a ideia da distância lógica do zero ao infinito e o poder
de nossas mentes para açambarcar todas as esferas dimensionais do passado,
presente e futuro.
Por último, Paulo Teixeira – o único dos três poetas desta recolha ainda
vivo –, retrata o conflituoso devir humano, num proponente de espírito acima
dos dramas quotidianos, onde pairam as fortunas do trabalho sob o sol, do
sofrimento e da morte, matizados por circunstanciais ondas de prazer. Nesse
intercurso, paira a verdade, confrangida por linhas de argumentação temerárias,
para que não venha a confessar aquilo que são os propósitos primeiros
daqueles que, pretensamente, a veiculam.
J.A.R. – H.C.
António Gedeão
(1906-1997)
Máquina do Mundo
O Universo é feito
essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos,
distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em
suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este
arrepio,
este chamá-lo e tê-lo,
erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada
aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
(Extraído da obra
“Máquina de fogo”).
Eduardo Guerra Carneiro
(1942-2004)
(1942-2004)
Zero
Igual a zero a
distância ao infinito
Impossível de tocar
com nossos braços
Valores estranhos aos
corpos
ignorados noite e dia
Zero a distância
zero o próprio espaço
Para quê voltar aos
caminhos sem regresso
quando nossas mãos
agarram toda a vida?
(Extraído da obra “O
perfil da estátua”)
Paulo Teixeira
(n.: 1962)
O Espírito e o Tempo
Pudesse elevar-se o
espírito acima do tempo,
ser o mundo só um
espectáculo comovente,
qualquer coisa de
especioso abaixo das nuvens,
e onde a luz ao
incidir fosse pura estesia.
Estábulo onde
fechados esperamos o drama
por encenar no
presente o espaço que é nosso:
chaminés, gólgotas,
campos de batalha,
domínio de prazer
forense, breve e matizado
pela dor, onde,
providos de um costume,
fomos, instruídos em
verdades que se ocultam
e sem outra instância
de apelação que a morte,
em busca de conforto
pelo fim do dia.
Pudesse elevar-se o
espírito acima do tempo,
consigo levando nos
dedos um pouco de terra queimada;
por pudor não olhasse
em baixo o mundo,
já sem relógios e
informes profecias,
envolto em luz
espectral e fundado no que não existe.
(Extraído da obra “As esperas e outros poemas”)
Referências:
CARNEIRO, Eduardo Guerra. Zero. In:
COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 371.
GEDEÃO, António. Máquina do mundo. In:
COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 53.
TEIXEIRA, Paulo. O espírito e o tempo.
In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 445.
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