Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 24 de agosto de 2014

Gedeão, Guerra e Teixeira: o espaço-tempo na poesia

Três poemas, mantidos em sua grafia original, com o português de Portugal, são a recolha que hoje postamos para o deleite dos leitores deste bloguinho.

O primeiro, da pena de António Gedeão, possui um título similar a um dos mais abonados poemas do mineiro Carlos Drummond de Andrade: “(A) Máquina do Mundo”.

Contudo, a sua leitura permite uma associação mais imediata com a temática do filme “Mindwalk: The Turning Point” (“O Ponto de Mutação”), de 1991, dirigido por Bernt Amadeus Capra, no qual um poeta, um político e uma cientista discutem as possibilidades de se encarar o mundo a partir de uma visão holística.

Há determinada passagem na referida película em que a cientista – interpretada pela conhecida atriz Liv Ullmann –, se concentra em explicar aos outros dois interlocutores as proporções do que seria a estrutura de um átomo: o núcleo, de dimensão insignificante, como se constituísse o local em que se encontravam – a abadia de São Michel, na Normandia (França) –, e os elétrons a girar à sua volta a muitos quilômetros de distância. Em síntese: há um vazio imenso na estrutura dos átomos, mas a aparência compacta da matéria resulta de miríades de conexões entre eles.

Em seguida, no poema de Eduardo Guerra, persiste a temática do espaço vazio, a dialogar com a ideia da distância lógica do zero ao infinito e o poder de nossas mentes para açambarcar todas as esferas dimensionais do passado, presente e futuro.

Por último, Paulo Teixeira – o único dos três poetas desta recolha ainda vivo –, retrata o conflituoso devir humano, num proponente de espírito acima dos dramas quotidianos, onde pairam as fortunas do trabalho sob o sol, do sofrimento e da morte, matizados por circunstanciais ondas de prazer. Nesse intercurso, paira a verdade, confrangida por linhas de argumentação temerárias, para que não venha a confessar aquilo que são os propósitos primeiros daqueles  que, pretensamente, a veiculam.

J.A.R. – H.C. 
António Gedeão
(1906-1997)

Máquina do Mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

(Extraído da obra “Máquina de fogo”).

Eduardo Guerra Carneiro
(1942-2004)

Zero

Igual a zero a distância ao infinito
Impossível de tocar com nossos braços

Valores estranhos aos corpos
ignorados noite e dia

Zero a distância
zero o próprio espaço

Para quê voltar aos caminhos sem regresso
quando nossas mãos agarram toda a vida?

(Extraído da obra “O perfil da estátua”)


Paulo Teixeira
(n.: 1962)

O Espírito e o Tempo

Pudesse elevar-se o espírito acima do tempo,
ser o mundo só um espectáculo comovente,
qualquer coisa de especioso abaixo das nuvens,
e onde a luz ao incidir fosse pura estesia.

Estábulo onde fechados esperamos o drama
por encenar no presente o espaço que é nosso:
chaminés, gólgotas, campos de batalha,
domínio de prazer forense, breve e matizado

pela dor, onde, providos de um costume,
fomos, instruídos em verdades que se ocultam
e sem outra instância de apelação que a morte,
em busca de conforto pelo fim do dia.

Pudesse elevar-se o espírito acima do tempo,
consigo levando nos dedos um pouco de terra queimada;
por pudor não olhasse em baixo o mundo,
já sem relógios e informes profecias,

envolto em luz espectral e fundado no que não existe.

(Extraído da obra “As esperas e outros poemas”)

Referências:

CARNEIRO, Eduardo Guerra. Zero. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 371.

GEDEÃO, António. Máquina do mundo. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 53.

TEIXEIRA, Paulo. O espírito e o tempo. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 445.

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