O santo de Hipona nos traz uma reflexão sofre os “perigos”
da beleza, que podem nos levar à concupiscência e à corrupção da alma,
fazendo-a acobertar-se, em favor da visibilidade dos corpos, ou melhor, da
matéria. E tais “perigos” entram-nos, primordialmente, pelos olhos, já que a
visão é o mais poderoso dos sentidos – isso a despeito de a beleza também poder
ser experimentada por outras vias sensoriais, como a audição (ah! a poderosa
sugestão da música de Mozart!).
Como não poderia deixar de ser, os argumentos de Agostinho
voltam-se às invocações de uma vida consagrada e virtuosa, em que a pureza da
alma há de prevalecer sobre a exposição do corpo à degeneração moral e, com a
idade, física.
O apelo do autor tem a contundência que se fundamenta
em sua própria experiência de vida, porquanto – narra-nos ele em suas “Confissões”
– antes de se dedicar aos serviços do Eterno, teve experiências absolutamente
dissolutas e desregradas!
Mas um breve aparte: o que diria o santo homem se
tivesse a capacidade de, num salto de séculos, vaguear pelas galerias e corredores do Museu
do Vaticano, exposto ao possante efeito de suas obras de arte – em sua maior
parte, é verdade, de caráter religioso? Ficaria a tartamudear como muitos
turistas, diante do esplendor que emana do belo? Reprovaria as suas
repercussões?
Vamos às palavras literais de Agostinho: os negritos,
no corpo do excerto abaixo, são de minha autoria.
J.A.R. – H.C.
Santo Agostinho
Philippe de Champaigne (1602-1674)
34. A Tentação do Olhar
(51) Resta-me
falar da voluptuosidade destes olhos da minha carne. Confessarei essas
fraquezas, a fim de que cheguem aos ouvidos do teu templo [1], ouvidos fraternos e piedosos. Concluiremos assim as
tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar dos meus gemidos e
meu ardente desejo de ser revestido de minha habitação celeste [2].
Os olhos amam a beleza e a variedade das
formas, o brilho e a luminosidade das cores. Oxalá tais atrativos não me
acorrentem a alma. Que ela somente
seja possuída por aquele Deus que criou essas coisas “tão boas” [3]. Somente
ele é o meu sumo bem, não elas. Todos os dias, enquanto estou acordado, elas me
importunam sem dar-me descanso, como dão as vozes que cantam, e outros sons,
quando silenciam. Apropria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos,
me alcança de mil maneiras, onde quer que eu esteja, durante o dia, e
acaricia-me até mesmo quando me ocupo de outra coisa e dela me abstraio.
Insinua-se com tal vigor que, se de repente me falta, a procuro com ansiedade,
e se permanece ausente por muito tempo, minha alma se entristece.
(52) Ó luz,
que Tobias contemplava quando, cego dos olhos do corpo, ensinava ao filho o
caminho da vida e o precedia, caminhando com os passos do amor sem jamais se perder
[4]; ou luz que Isaac via, tendo embora os olhos da carne oprimidos e velados
pela velhice, quando, abençoando os filhos sem reconhecê-los, mereceu
reconhecê-los ao abençoá-los [5]; ou luz que Jacó via quando, cego também pela
idade avançada, irradiou, do coração ilumina do, clarões sobre as gerações
futuras, representadas nos seus filhos, e impôs as mãos, misteriosamente
cruzadas, sobre os filhos de José, seus netos, não segundo a ordem em que o pai
exteriormente os colocara, mas segundo a ordem que ele distinguia interiormente
[6]. É esta a luz verdadeira, a luz única, e os que a veem e amam são todos um.
A outra luz corporal, aquela à que me referia, ameniza a vida dos cegos amantes
do mundo, com sua sedutora e perigosa doçura. Contudo, os que sabem louvar-te
por causa dessa luz, “ó Deus, criador de todas as coisas” [7], adotam-na nos
hinos em teu louvor, sem por ela serem dominados no sono [8]. É assim que
desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que não se enredem os meus pés ao
trilhar os teus caminhos. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes os
meus pés das armadilhas [9]. Tu o fazes continuamente, pois frequentemente eles
se deixam prender. Não cessas de libertar-me, e eu, continuo a cair nas
insídias esparsas por toda parte, porque não dormirás nem cochilarás, ó tu, que
cuidas de Israel [10].
(53) Quantas
e quantas coisas os homens não acrescentaram às seduções da vista, com a
variedade das artes e com o trabalho de suas mãos, na roupa, nos calçados, nos vasos
e objetos de todos os gêneros, e também na pintura e outras reproduções, indo
além dos limites da necessidade, da moderação e de uma pia significação!
Seguindo exteriormente suas criações, os homens abandonam interiormente o
Criador deles, deturpando em si a obra divina. Eu, porém, ó meu Deus e minha
glória, encontro também aí oportunidade de erguer um hino e um sacrifício de
louvor [11] àquele que sacrifica por mim. A beleza que, através da alma do artista, é
transmitida às suas mãos, procede daquela Beleza que está acima de nossas
almas, e pela qual a minha alma suspira noite e dia [12]. No entanto, aqueles
que fabricam ou admiram essas obras dotadas de beleza exterior, delas tiram o
critério para um julgamento estético, e não a norma para bem usá-las. Todavia,
essa norma aí está, mas eles não enxergam, do contrário, não se afastariam
tanto de ti, mas te reservariam todas as suas forças [13], não as dispersando
em prazeres que cansam. Eu mesmo, apesar de expor e compreender essas verdades,
também me deixo prender por essas belezas exteriores; mas tu, Senhor, me
libertas! Tu me libertas, porque “ante os meus olhos está a tua
misericórdia” [14]. Caio miseravelmente, e tu me levantas misericordiosamente,
às vezes sem eu perceber, apenas resvalado de leve, às vezes penosamente, por
ter ficado preso ao chão.
Notas:
[1] O templo
de Deus são os fiéis de Cristo: cf. 3,16s e De Civ. Dei 17,8.
[2] Cf. 2Cor
5,2.
[3] Gn 1,31.
[4] Cf. Tb 4,2.
[5] Cf. Gn 27,
1-40.
[6] Cf. Gn 48,3
e 49,28.
[7] Ambrósio Hymni
4,1.
[8] Agostinho
faz alusão aos maniqueus, que consideravam o sol como criador de tudo: cf. De
moribus manichaeorum 2,8.
[9] Cf. Sl 24,15.
[10] Cf. Sl 120,4.
[11] Cf. Sl 115,17.
[12] Cf. Sl 1,2.
[13] Cf. Sl
58,10.
[14] Sl 25,3.
Referência:
Agostinho, Santo [354-430].
A tentação do olhar. In: __________. Confissões. Tradução de Maria Luiza
Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. (Coleção Espiritualidade). p.
305-308.
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