Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de março de 2014

Santo Agostinho – A Tentação do Olhar

O santo de Hipona nos traz uma reflexão sofre os “perigos” da beleza, que podem nos levar à concupiscência e à corrupção da alma, fazendo-a acobertar-se, em favor da visibilidade dos corpos, ou melhor, da matéria. E tais “perigos” entram-nos, primordialmente, pelos olhos, já que a visão é o mais poderoso dos sentidos – isso a despeito de a beleza também poder ser experimentada por outras vias sensoriais, como a audição (ah! a poderosa sugestão da música de Mozart!).

Como não poderia deixar de ser, os argumentos de Agostinho voltam-se às invocações de uma vida consagrada e virtuosa, em que a pureza da alma há de prevalecer sobre a exposição do corpo à degeneração moral e, com a idade, física.

O apelo do autor tem a contundência que se fundamenta em sua própria experiência de vida, porquanto – narra-nos ele em suas “Confissões” – antes de se dedicar aos serviços do Eterno, teve experiências absolutamente dissolutas e desregradas!

Mas um breve aparte: o que diria o santo homem se tivesse a capacidade de, num salto de séculos, vaguear pelas galerias e corredores do Museu do Vaticano, exposto ao possante efeito de suas obras de arte – em sua maior parte, é verdade, de caráter religioso? Ficaria a tartamudear como muitos turistas, diante do esplendor que emana do belo? Reprovaria as suas repercussões?

Vamos às palavras literais de Agostinho: os negritos, no corpo do excerto abaixo, são de minha autoria.

J.A.R. – H.C. 

Santo Agostinho
Philippe de Champaigne (1602-1674)

34. A Tentação do Olhar

(51) Resta-me falar da voluptuosidade destes olhos da minha carne. Confessarei essas fraquezas, a fim de que cheguem aos ouvidos do teu templo [1], ouvidos fraternos e piedosos. Concluiremos assim as tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar dos meus gemidos e meu ardente desejo de ser revestido de minha habitação celeste [2].

Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a luminosidade das cores. Oxalá tais atrativos não me acorrentem a alma. Que ela somente seja possuída por aquele Deus que criou essas coisas “tão boas” [3]. Somente ele é o meu sumo bem, não elas. Todos os dias, enquanto estou acordado, elas me importunam sem dar-me descanso, como dão as vozes que cantam, e outros sons, quando silenciam. Apropria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, me alcança de mil maneiras, onde quer que eu esteja, durante o dia, e acaricia-me até mesmo quando me ocupo de outra coisa e dela me abstraio. Insinua-se com tal vigor que, se de repente me falta, a procuro com ansiedade, e se permanece ausente por muito tempo, minha alma se entristece.

(52) Ó luz, que Tobias contemplava quando, cego dos olhos do corpo, ensinava ao filho o caminho da vida e o precedia, caminhando com os passos do amor sem jamais se perder [4]; ou luz que Isaac via, tendo embora os olhos da carne oprimidos e velados pela velhice, quando, abençoando os filhos sem reconhecê-los, mereceu reconhecê-los ao abençoá-los [5]; ou luz que Jacó via quando, cego também pela idade avançada, irradiou, do coração ilumina do, clarões sobre as gerações futuras, representadas nos seus filhos, e impôs as mãos, misteriosamente cruzadas, sobre os filhos de José, seus netos, não segundo a ordem em que o pai exteriormente os colocara, mas segundo a ordem que ele distinguia interiormente [6]. É esta a luz verdadeira, a luz única, e os que a veem e amam são todos um. A outra luz corporal, aquela à que me referia, ameniza a vida dos cegos amantes do mundo, com sua sedutora e perigosa doçura. Contudo, os que sabem louvar-te por causa dessa luz, “ó Deus, criador de todas as coisas” [7], adotam-na nos hinos em teu louvor, sem por ela serem dominados no sono [8]. É assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que não se enredem os meus pés ao trilhar os teus caminhos. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes os meus pés das armadilhas [9]. Tu o fazes continuamente, pois frequentemente eles se deixam prender. Não cessas de libertar-me, e eu, continuo a cair nas insídias esparsas por toda parte, porque não dormirás nem cochilarás, ó tu, que cuidas de Israel [10].

(53) Quantas e quantas coisas os homens não acrescentaram às seduções da vista, com a variedade das artes e com o trabalho de suas mãos, na roupa, nos calçados, nos vasos e objetos de todos os gêneros, e também na pintura e outras reproduções, indo além dos limites da necessidade, da moderação e de uma pia significação! Seguindo exteriormente suas criações, os homens abandonam interiormente o Criador deles, deturpando em si a obra divina. Eu, porém, ó meu Deus e minha glória, encontro também aí oportunidade de erguer um hino e um sacrifício de louvor [11] àquele que sacrifica por mim. A beleza que, através da alma do artista, é transmitida às suas mãos, procede daquela Beleza que está acima de nossas almas, e pela qual a minha alma suspira noite e dia [12]. No entanto, aqueles que fabricam ou admiram essas obras dotadas de beleza exterior, delas tiram o critério para um julgamento estético, e não a norma para bem usá-las. Todavia, essa norma aí está, mas eles não enxergam, do contrário, não se afastariam tanto de ti, mas te reservariam todas as suas forças [13], não as dispersando em prazeres que cansam. Eu mesmo, apesar de expor e compreender essas verdades, também me deixo prender por essas belezas exteriores; mas tu, Senhor, me libertas! Tu me libertas, porque “ante os meus olhos está a tua misericórdia” [14]. Caio miseravelmente, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem eu perceber, apenas resvalado de leve, às vezes penosamente, por ter ficado preso ao chão.

Notas:

[1]    O templo de Deus são os fiéis de Cristo: cf. 3,16s e De Civ. Dei 17,8.
[2]   Cf. 2Cor 5,2.
[3]   Gn 1,31.
[4]   Cf. Tb 4,2.
[5]   Cf. Gn 27, 1-40.
[6]   Cf. Gn 48,3 e 49,28.
[7]   Ambrósio Hymni 4,1.
[8]   Agostinho faz alusão aos maniqueus, que consideravam o sol como criador de tudo: cf. De moribus manichaeorum 2,8.
[9]   Cf. Sl 24,15.
[10]  Cf. Sl 120,4.
[11]  Cf. Sl 115,17.
[12]  Cf. Sl 1,2.
[13]  Cf. Sl 58,10.
[14]  Sl 25,3.

Referência:

Agostinho, Santo [354-430]. A tentação do olhar. In: __________.  Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. (Coleção Espiritualidade). p. 305-308.

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