Leia aqui a Parte I.
(Parte II)
II. DIREITO
E MORAL (p. 67-78)
O
direito é uma ciência que, distintamente das ciências naturais, dirige-se às
normas sociais, ainda que não seja a única nesse sentido. A moral também se orienta às normas sociais e o seu conhecimento
como ciência configura o domínio da ética.
Kelsen
julga incorreta a distinção entre moral e direito baseada em que a primeira se
refere a normas internas e o segundo
a normas externas, pois as normas
dessas duas ordens contemplam ambas as espécies de conduta. Além disso, a lei moral também é positiva, porque
suas normas derivam do costume ou das proposições de um profeta. A diferença
entre moral e direito reside, de fato, no uso
da coerção e da força, mesmo a física. Com efeito, na moral, as “[...] sanções apenas consistem na aprovação
da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas,
nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força
física” (p. 71).
Kelsen,
como se sabe, recebe a influência do pensamento ético e jurídico de Kant, que
se reflete em várias dimensões de sua doutrina. Por isso, o autor não admite
que o direito convirja para constituir um mínimo
de moral. Reportam-se a duas ordens de conduta diferentes. Não há razão
para identificar o direito com a justiça e conceber a moral como um valor
absoluto. Pelo contrário, quer o valor moral quer o valor jurídico são
relativos, uma vez que são balizadores de normas sociais: “Do exposto resulta
que o que aqui se designa como valor jurídico não é um mínimo moral neste
sentido, e especialmente que o valor de paz não representa um elemento
essencial ao conceito de direito” (p. 74).
A
concepção relativista dos valores
não significa que estes não existam ou que não exista justiça alguma. Ele não
admite valores absolutos ou justiça absoluta, senão diversos sistemas morais e jurídicos que relativizam seus valores. Acrescenta
ainda que o direito, como ciência, não necessita de justificações, nem absolutas nem relativas, para a sua existência.
O direito encontra sua justificação em sua própria estrutura lógica: “[...] a
ciência jurídica não tem de legitimar o direito, não tem por forma alguma de
justificar [...] a ordem normativa que lhe compete – tão-somente – conhecer e
descrever” (p. 78).
Em
resumo: a distinção entre moral e direito deriva não de valores absolutos, tampouco de valores
relativos, mas da ausência de coerção ante o cumprimento ou não da norma
moral, enquanto que o não cumprimento da norma jurídica pode levar,
paralelamente, ao uso da coerção física contra o responsável.
III. DIREITO
E CIÊNCIA (p. 79-119)
Normas
e conduta são, como as imagina Kelsen, um binômio inseparável para a concepção
e estruturação do direito enquanto ciência. Como já se disse, a ciência jurídica tem por objeto as normas jurídicas. Daí decorre a
distinção entre a teoria estática e a teoria dinâmica do direito: “A primeira
tem por objeto o direito como um sistema de normas em vigor, o direito no seu
momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o direito é
produzido e aplicado, o direito no seu movimento” (p. 80).
Kelsen
faz distinção entre proposições e normas jurídicas. As primeiras são proposições condicionais que, em
conformidade a um determinado ordenamento jurídico nacional ou internacional,
devem produzir certas consequências. As normas
jurídicas, por seu turno, são mandamentos,
imperativos, comandos, permissões e atribuições de poder ou competência.
Elas podem enunciar ou declarar algo relativo aos fatos humanos, enquanto
dotados de significado jurídico. “Na medida, porém, em que as normas jurídicas
são expressas em linguagem, isto é, em palavras e proposições, podem elas
aparecer sob a forma de enunciados do mesmo tipo daqueles através dos quais se
constatam fatos” (p. 81).
A
diferença entre proposição jurídica
e norma jurídica é importante porque
permite a distinção entre a função do
conhecimento jurídico e a função que
a autoridade jurídica cumpre. Uma coisa é a ciência jurídica, outra a
autoridade jurídica. A ciência jurídica descreve,
a atividade jurídica prescreve: as
normas jurídicas não são nem verdadeiras nem falsas, mas unicamente válidas ou
inválidas, sendo aplicáveis às condutas humanas.
Com
o objetivo de conferir nitidez à distinção entre a natureza e a ciência
jurídica, Kelsen recorre à dicotomia entre ciência
causal e ciência normativa. À
primeira pertencem a ordem regular e as leis da natureza física ou cósmica; à
segunda, os ordenamentos reguladores sociais, sendo o direito um deles. Há,
desse modo, dois tipos de legalidades: a natural e a jurídica, que se
distinguem pelo princípio de imputação ou atribuição, unicamente aplicável à
interação humana, expresso pelo verbo dever,
a abarcar três significados, objeto das normas jurídicas: o ordenar, o facultar
e o permitir condutas humanas e suas consequências.
A
causalidade ocorre, com frequência,
no mundo fático, enquanto que a
imputação − jurídica − nem sempre se lhe corresponde, pois não é raro que
determinados fatos fiquem sem sanção, uma vez que a norma reguladora não se
lhes aplica. A imputação não tem,
portanto, natureza causal. Kelsen entende ainda que seja possível que o princípio da causalidade tenha se originado
da norma de retribuição: “É o
resultado de uma transformação do princípio da imputação, em virtude do qual,
na norma da retribuição, a conduta não reta é ligada à pena e a conduta reta é
ligada ao prêmio” (p. 94).
As
leis naturais, formuladas pelas ciências naturais, orientam-se pelos fatos. “Os
fatos das ações e omissões humanas, porém, devem orientar-se pelas normas que à
ciência jurídica compete descrever. Por isso, as proposições que descrevem o direito
têm de ser asserções normativas ou de dever-ser” (p. 98).
Em
seguida, Kelsen introduz o problema da
liberdade, a respeito do qual assinala que existe um ponto terminal da
imputação (mas não um ponto terminal da causalidade), que se fundamenta na liberdade
do homem em sociedade, extensível à responsabilização pelos seus atos, sendo
básica para se entender as relações normativas que daí decorrem. Para o autor,
a liberdade humana é resultante da necessidade de se responsabilizar uma
conduta em termos morais ou jurídicos. Apenas porque o homem é livre é que se
fazê-lo responsável por sua conduta, “[...] é que ele pode ser recompensado
pelo seu mérito, é que se pode esperar dele que faça penitência pelos seus
pecados, é que o podemos punir pelo seu crime” (p. 105).
Com
isso, Kelsen quer exprimir que é a determinabilidade causal da vontade que
possibilita a imputação. “Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas,
ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. Imputação e liberdade
estão, de fato, essencialmente ligadas entre si” (p. 109).
O
autor assinala, posteriormente, que as normas de imputação podem ser categóricas ou hipotéticas. As primeiras são as normas que, positivamente,
prescrevem, autorizam ou permitem algo. As normas hipotéticas, por seu turno,
estabelecem determinada conduta como devida pelos indivíduos, sob a forma
condicionada (p. 113).
Ao
final deste capítulo, o autor deprecia a crítica que se faz à ideia de uma
ciência que descreve o direito como um sistema de normas, ao afirmar que o
dever − sustentáculo da norma − carece de sentido ou é um simulacro ideológico.
Kelsen objeta que, se é para retirar o significado de dever como o fundamento da norma, toda a ordem jurídica desmorona
sem poder justificar o permitido ou o proibido, sem distinguir entre o que
pertence a um ou a outro indivíduo. Uma coisa é a norma e outra a sua
individualização ou aplicação ao caso concreto.
Quanto
à ideologia, argumenta que, com
frequência, pretende encobrir a realidade para fins diversos de conservá-la,
defendê-la, transformá-la, atacá-la, destruí-la ou substituí-la por outra: “Tal
ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento, nasce de certos
interesses, melhor, nasce de outros interesses que não o interesse pela
verdade” (p. 119).
IV. ESTÁTICA
JURÍDICA (p. 121-213)
Começando
pelo tema da coerção, Kelsen afirma
que ela é uma propriedade da ordem jurídica: “Atos de coerção são atos a
executar mesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de
resistência, com o emprego da força física” (p. 121).
As
sanções, enquanto atos de coerção
estatuídos contra uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica, podem
ser de dois tipos: umas, como a coerções estatuídas por lei, e outras que
carecem desse caráter, qual o internamento compulsório de indivíduos com enfermidades
perigosas, ou em razão de sua raça, convicções políticas, credo religioso ou
ainda a aniquilação compulsória da propriedade no interesse público. Kelsen
observa que as sanções, no sentido específico da palavra, aparecem nas ordens
jurídicas estatais sob duas formas: como pena
ou como execução forçada e, em ambos
os casos, consistem na realização compulsória de um mal ou na privação
compulsória de um bem. Elas podem ainda ser de caráter penal, civil ou administrativo, impostas pelos órgãos
respectivos. No que diz respeito às sanções do direito internacional, aparecem
como represálias e guerras, a serem tratadas no capítulo VII da obra.
O
autor observa que expressões como ilícito,
violação do direito ou que tais, expressam
a ideia de uma negação do direito. Essa tese induz ao erro por interpretar como
uma contradição lógica a relação entre a norma que ordena uma conduta e a
conduta fática que é oposta à ordenada, porquanto “[...] o ilícito não é um
fato que esteja fora do direito e contra o direito, mas é um fato que está
dentro do direito e é por este determinado, que o direito, pela sua própria
natureza, se refere precisa e particularmente a ele” (p. 127).
As
obrigações jurídicas decorrem da
exigência de certos comportamentos às pessoas em interação na sociedade. Sua
vigência depende menos de um impulso interno que da mesma norma jurídica
associada ao dever: “É o indivíduo que, através da sua conduta, pode violar os
deveres, isto é, provocar a sanção, e que, portanto, pode cumprir o dever, isto
é, evitar a sanção” (p. 131). Já o dever
jurídico revela-se pelo cumprimento de algo que pode estar permitido, ordenado ou facultado. O
indivíduo cumpre com seu dever ou, caso contrário, será sancionado conforme a
norma. Neste caso, fala-se de norma
individualizada. O dever jurídico se encontra essencialmente vinculado à responsabilidade. Geralmente, há
identidade entre o sujeito de uma obrigação e o da conduta que constitui o
conteúdo da obrigação. No entanto, a ordem jurídica pode responsabilizá-lo pela
conduta de outro, mesmo que a obrigação sempre tenha por objeto a conduta da
pessoa obrigada.
O
autor faz distinções entre responsabilidade
pela culpa e responsabilidade pelo
resultado. A primeira se refere a condutas ilícitas em que a ação se produz
como efeito de uma previsão ou intenção deliberada para atingir o resultado,
atribuindo-se-lhe, subjetivamente, uma intenção
má. A segunda diz respeito à hipótese em que o evento se verifica sem
qualquer intenção ou efetiva previsão, nela abrangidos os casos de negligência.
Para
Kelsen, a reparação de danos morais ou
materiais “[...] não é uma sanção, mas [...] dever subsidiário” (p. 139), uma
obrigação, portanto, uma vez que a
sanção se aplica a condutas ilícitas, violadora de um bem jurídico de
hierarquia superior. A primeira e principal obrigação é não causar dano e, na
medida em que se cause, deve-se repará-lo. Na hipótese de o obrigado não
reparar o dano, o órgão jurídico encarregado haverá de intervir e impor −
inclusive por meio de coerção, se necessária − o cumprimento dessa obrigação
acessória.
Em
seguida, o autor passa a analisar o conceito de direito subjetivo. Partindo de análise linguística, Kelsen conclui
que palavras como “recht”, em alemão, e “droit”, em francês, possuem o mesmo
significado, ou seja, são ordens de conduta humana. No entanto, distingue-se,
no inglês, a palavra “right”, a referir-se a direito de um indivíduo, do
vernáculo “law”, a distinguir uma ordem jurídica de um povo.
Kelsen
julga que a distinção, a partir da jurisprudência romana, entre direito em face de uma pessoa (jus in personam) e direitos sobre uma coisa (jus
in rem), induz ao erro, pois “[...] o direito sobre uma coisa é um direito
em face de pessoas” (p. 145). Ele assegura que o direito subjetivo por
excelência, sobre o qual se fundamenta a distinção anterior, é a propriedade, daí porque essa distinção
tem um pronunciado sentido ideológico.
O
Direito subjetivo se manifesta por
um interesse juridicamente protegido,
ou seja, como o reflexo do dever jurídico de outrem, de respeito ao interesse
do titular desse direito, que não há de ser violado. O conceito de direito
subjetivo também é extensível ao poder
jurídico que permite a alguém exercer uma ação frente a um obrigado, que
desconhece ou deixa de cumprir uma obrigação junto àquele: “O exercício deste
pode jurídico é exercício de um direito no sentido próprio da palavra” (p. 151).
“Em resumo, pode dizer-se: o direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples
direito reflexo [...]; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico
[...]” (p. 162).
Passando
a enfrentar o tema da capacidade de
exercício, Kelsen argumenta que a ordem jurídica pode ser compreendida como
atribuição de um poder ou competência, ou melhor, a autorização
de condutas específicas de um indivíduo, capazes de produzir efeitos jurídicos.
Mas nem toda atribuição de poder implica capacidade, ou seja, o cumprimento de
todos os pressupostos para o exercício de um direito. A competência ou jurisdição
está especialmente associada aos órgãos judiciais e administrativos.
A
ordem jurídica regula a defesa de direitos, a própria produção das normas, a
aplicação de sanções etc., tarefas essas que devem ser levadas a cabo pelos
órgãos jurisdicionais ou administrativos a partir da competência que lhes seja
atribuída. Infere-se, por conseguinte, que são diferentes a capacidade jurídica, ou atribuição de
agir conforme as normas, da competência ou
jurisdição em seu âmbito de validade
espácio-temporal, associada, com mais propriedade, aos órgãos jurídicos.
Kelsen
vê diferenças entre a jurisdição ou
competência para aplicação da norma e o órgão jurídico: “Um indivíduo é órgão de uma comunidade na medida
em que exerce uma função que pode ser atribuída
à comunidade, uma função da qual por isso se diz que é exercida pela
comunidade, pensada como pessoa, através do indivíduo que funciona como seu
órgão” (itálico do autor) (p. 167-168). Trata-se de uma ficção porque, de fato,
a função é exercida não pelo órgão, mas por uma pessoa autorizada, como
corolário do processo de divisão do trabalho. A capacidade, a competência e o
órgão são definidos pela norma jurídica e, ainda que se vinculem, são
categorias diferentes, cada uma com seus atributos específicos.
Kelsen
fala ainda daqueles indivíduos que, sem capacidade de agir, ainda assim possuem
direitos, tal como na hipótese de menores de idades e doentes mentais, que
necessitam de um representante, o
qual atuará no interesse daqueles. Além disso, há a representação por convenção dos indivíduos que detenham capacidade
de fato – o caso dos mandatários –, não obrigatória, contudo, mas potestativa.
O
autor considera a relação jurídica,
à luz da teoria tradicional, como sempre ocorrente entre pessoas, mesmo entre pessoas físicas ou jurídicas e a pessoa do
Estado: “As relações que aqui são tomadas em consideração são relações entre
normas jurídicas ou relações entre fatos determinados pelas normas jurídicas.
Para um conhecimento dirigido ao direito como um sistema de normas não há
quaisquer outras relações jurídicas” (p. 187-188).
Com
efeito, o sujeito jurídico é concebido como detentor de uma pretensão ou
titularidade jurídica ou de um dever jurídico. O sujeito de direitos e
obrigações passa, então, a ser identificado com a pessoa física. “Neste sentido, a chamada pessoa física é uma pessoa
jurídica” (p. 194). Analogamente à pessoa física, existe a pessoa jurídica ou corporação,
também sujeito de direitos e deveres, a surgir de um ato jurídico entre duas ou
mais pessoas, para alcançar “[...] certos fins econômicos, políticos,
religiosos, humanitários ou outros” (p. 196), dentro do domínio de validade de
uma ordem jurídica estatal. Seus membros
e órgãos expressam a figurativa
vontade das corporações, sob as regras de seu estatuto.
Reconhecendo
que a pessoa jurídica e a pessoa física são construções da ciência do direito,
Kelsen afirma que o direito cria deveres e direitos, os quais têm por conteúdo
a conduta humana, mas não cria pessoas. “Assim como não é lícito reconhecer à
ciência jurídica uma função própria do direito, assim também se não pode
reconhecer ao direito uma função própria da ciência jurídica” (p. 212).
Em
decorrência do exposto anteriormente, Kelsen informa que, com a teoria pura do direito, afasta-se o
dualismo do direito subjetivo frente ao direito objetivo, como herança do
direito romano ou mesmo daquela “[...] concepção forense ou advocacial que
apenas considera o direito do ponto de vista dos interesses das partes” (p.
213).
(Fim
da Parte II)
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