Leia
aqui a Parte IV.
(Parte V)
A
obra Teoria Pura do Direito, de Kelsen, certamente ainda é um das referências
no ramo do direito, pois busca assentar as bases daquilo que, para o autor,
deveria ser a ciência jurídica, desprovida de elementos valorativos que a
descaracterizam. Sob esse enfoque, ela submete à apreciação um tropel de
esclarecimentos acerca de conceitos e questões jurídicas, com rigor
metodológico e sistematização: a estrutura da norma, o ordenamento jurídico, a
relação entre o direito e o Estado, a interpretação etc. Nisso está o seu
inestimável mérito.
Não
há como atribuir a Kelsen algum desvalor que possa decorrer de presumível
incoerência expositiva ou doutrinária, pois a sua contribuição é um todo
demarcado por vigor lógico e profundidade cognoscitiva. Ainda assim, persistem
questões irrespondidas ou insuficientemente apreendidas pelo contributo do
austríaco: a relação entre norma e conduta, a conexão entre eficácia e
validade, a natureza da norma fundamental etc.
Partem
elas, no mais das vezes, de seus principais fundamentos doutrinários, a saber,
cientificismo, realismo, purismo, relativismo axiológico, formalismo,
normativismo, perspectiva anti-ideológica, positivismo e antijusnaturalismo, a
tal ponto de Enrique Aftalion e outros (1980, p. 851), em crítica sustentada
pela escola egológica do direito, afirmar que a Teoria Pura do Direito não é ciência jurídica, como pretende o seu
autor, mas filosofia jurídica, ou melhor, metodologia ou epistemologia
jurídica, isto é, uma parte daquela.
O
elenco de objeções que se faz à obra sob comento é tão extenso que não cabem em
uma resenha previamente limitada em sua extensão, de sorte que, aqui,
mencionam-se tão-somente as três mais recorrentes entre os seus comentadores:
(i) Gustav Radbruch: o que se excluiu, na teoria pura, em nome dessa
pureza – o direito natural – foi justamente o que faltou para se evitar a
apropriação ideológica dessa teoria por regimes totalitários (VASCONCELOS,
2003, p. 194-195);
(ii) Mario G. Losano: a norma fundamental nada mais é que do que uma
aporia inconciliável com a própria definição de norma jurídica, bem assim com
as demais partes da teoria pura; ademais, a descrição da norma fundamental
oferecida por Kelsen não permite utilizá-la como fundamento de validade de todo
o ordenamento jurídico, pois se confundem as proposições descritivas da ciência
jurídica com as proposições prescritivas do ordenamento jurídico positivo (
2010; p. 87 e 93); e
(iii) Luis Recaséns Siches: a Teoria Pura do Direito é parcial e
fragmentária, pois atenta unicamente para a dimensão normativa do direito,
sendo alheia, portanto, às dimensões fáticas e valorativas, embora não as
ignore; basta ver que a pureza a que se refere diz respeito ao método empregado
por Kelsen, não ao próprio direito enquanto experiência humana (p. 141-142;
196-197).
Importante
é a observação que faz o mencionado jurista Mario G. Losano no sentido de que
as críticas a serem oferecidas à Teoria Pura do Direito, para serem mais fundamentadas,
devem partir de uma perspectiva interna à própria teoria, pois se mostra
claramente improdutivo opor explicações diversas à teoria kelseniana, como se o
seu autor necessitasse ser doutrinado sobre a existência e sobre os méritos de
outras direções de pesquisa, quer jurídicas quer extrajurídicas (2010, p.
73-74):
As críticas externas, ao contrário, se
fundamentam, em última análise, num juízo de valor: a doutrina proposta
substitui a de Kelsen, porque é considerada melhor. Assim fazendo, contudo, não
se descobrem as incoerências internas da doutrina criticada e, portanto, não se
justifica seu abandono em favor de outra, considerada melhor.
Como
se infere, trata-se de observação similar à que se faz sobre o ponto de vista
de adeptos do marxismo, os quais, presos a um reducionismo paralisante, expõem
com convicção suas certezas, rejeitando todas as ideias que lhes sejam opostas,
sob o argumento de expressarem valores burgueses [3]. Mas o certo é que ninguém
ousará negar o engenho da explicação kelseniana, ainda que a sua descrição
morfológica do direito deixe a paisagem jurídica suspensa “[...] no ar, no
plano da pura normatividade lógica, máxime quando reduz o Estado à sua pura
dimensão normativa” (REALE, 1998, p. 155).
NOTAS
[1]. Material
condensado, constante no seguinte endereço eletrônico da internet: WIKIPEDIA. Hans Kelsen. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Hans_Kelsen>.
Acesso em: 5 mar. 2014.
[2]. Por simplificação, deixar-se-á de fazer referência completa
autor-data para as páginas em que se encontram eventuais passagens citadas
nesta síntese. Sabendo-se, desde já, que se trata da obra mencionada no subitem
I.1 ou nas referências finais, na edição então referida, serão apresentados tão
somente os números das páginas em que aquelas se encontram. Na hipótese de
menção a outras referências, serão elas apresentadas integralmente, nos moldes
padronizados pela ABNT: (autor, ano, página).
[3]. As ciências sociais, sobretudo quando às voltas com seus
pressupostos de auto-observação e de objetividade positivista, parecem
convergir para situações paradoxais, a ponto de Michel Löwy (2003, p. 91)
afirmar que, em tais situações, elas agem de modo similar ao Barão de
Münchhausen, protagonista de uma velha história picaresca, segundo a qual,
atolado num pântano (as motivações inconscientes-coletivas), com seu cavalo, e
vendo que não contava com a ajuda de ninguém para salvá-lo, o mencionado
personagem agarrou os seus próprios cabelos (autoanálise crítica) e, por meio
deles, puxou-se para cima, saiu da lama, trazendo também seu cavalo entre as
pernas, tirando-o do atoleiro.
AFTALION,
Enrique R.; OLANO, Fernando G.; VILANOVA, José. Introducción ao derecho. 11. ed. Buenos Aires: Cooperadora de
derecho y ciencias sociales, 1980.
CALVINO,
Ítalo. Por que ler os clássicos.
Tradução de: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito.
Tradução de: João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009
(Biblioteca Jurídica WMF).
LOSANO,
Mario G. Sistema e estrutura no direito:
o século XX, V. 2. Tradução de: Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010.
LÖWY,
Michael. As aventuras de Karl Marx
contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
REALE,
Miguel. Fundamentos do direito. 3.
ed. São Paulo: Ed. RT, 1998.
SICHES,
Luis R. Panorama del pensamiento
jurídico en El siglo XX, tomo II. México – DF: Porrúa, 1963.
(FIM)
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