Baudelaire, depois de definir
a beleza como um correlato de uma escultura feminina, fria e quase inacessível,
com interfaces ambíguas, senão contraditórias, vem agora dedicar-lhe um hino:
nele sobressai a referência às origens do belo, que tanto pode vir do divino
quanto do satânico, ou por outra, das paragens dos céus quanto dos infernos!
Em suma: alusões colidentes,
nos contrafortes do paradoxo, às fontes do belo, a congregar “bênçãos” e “crimes”,
“claros” e “escuros”, “firmamento” e “abismos” etc.
São sete quadras com versos
alexandrinos de rimas cruzadas, plenas de alegorias duais, a revelar a incômoda
sensação de que o poeta tornou-se refém de polos antagônicos, os quais, nada obstante, são capazes de prover-lhe com a mesma sedução da beleza!
J.A.R. – H.C.
O Despertar de Vênus
(A Deusa da Beleza)
Charles-Joseph Natoire (1700-1777)
Hino à Beleza
Vens
do fundo do céu ou sais do precipício,
Beleza?
O teu olhar celestial e daninho,
Verte
confusamente o crime e o benefício,
Pode-se
pois dizer que és sempre igual ao vinho.
Nos
olhos podes ser matutina e noturna;
E
sabes perfumar como a borrasca à tarde;
Teus
beijos são um filtro e tua boca uma urna:
Se
à criança dão valor, tornam o herói covarde.
Das
estrelas provéns ou dos negros abismos?
Segue-te
como um cão a Fortuna encantada;
Semeias
a alegria além dos cataclismos,
E
tu governas tudo e respondes por nada.
Pisando
mortos vais, com ar de desacato;
O
horror em teu escrínio é uma joia fulgente,
Por
berloque melhor só tens o assassinato:
Sobre
o teu ventre vão dança amorosamente.
Uma
efêmera vai ao teu encontro, ó vela,
E
a chamuscar-se diz: “Bendito lampadário!”
O
amoroso anelante a pender sobre a bela
Tem
o ar de um moribundo a afagar o sudário.
Que
tu venhas do céu ou do inferno, que importa?
Beleza!
monstro ingênuo e de feição adunca!
Se
teu olhar, teu pé, teu riso abrem a porta
De
um infinito que amo e não conheci nunca?
De
Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se
és a Fada que faz – olhos de penas de aves,
Ritmo,
aroma, clarão, rainha de halos cheia –
Menos
odiento o mundo e as horas menos graves.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução
e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 121-122.
P.s.: Aproveito esta postagem
para fornecer um endereço de vídeo em que a sua autora, a Profª Cláudia Bonfim,
faz uma análise, bastante interessante, exatamente sobre o mesmo tema das
minhas últimas intervenções: a beleza em Baudelaire. Nele, chama a atenção a
música empregada no início do vídeo, como que querendo fazer referência exatamente
à natureza antitética da definição do belo, pelo autor francês: “O Bem e o Mal”,
de Danilo Caymmi, interpretada por sua irmã Nana Caymmi.
O Bem e o Mal
(Danilo
Caymmi)
Eu
guardo em mim
dois
corações
um
que é do mar
um
das paixões
um
canto doce
um
cheiro de temporal
eu
guardo em mim
um
deus, um louco, um santo
um
bem e um mal.
Eu
guardo em mim
tantas
canções
de
tanto mar
tantas
manhãs
encanto
doce
o
cheiro de um vendaval
guardo
em mim
o
deus, o louco, o santo
o
bem, o mal.
J.A.R. – H.C.
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