Leia aqui a Parte II.
(Parte III)
V. DINÂMICA
JURÍDICA (p. 215-308)
A
pluralidade de normas jurídicas forma um ordenamento somente quando a sua validade pode ser reconduzida a uma
única norma, ou seja, a norma
fundamental. Essa norma fundamental, enquanto fonte comum, representa a unidade na pluralidade de todas as
normas que formam o ordenamento:
Uma norma jurídica não vale porque tem um
determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido, pela
via de um raciocínio lógico, de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é
criada de uma determinada forma − em última análise, de uma forma fixada por
uma norma fundamental pressuposta (p. 221).
A
norma fundamental de um ordenamento jurídico histórico ou concreto representa
um fundamento hipotético, isto é, um pressuposto
lógico-transcendental. Ao empregar essa terminologia, Kelsen faz clara
alusão a Kant, para afirmar que se trata de uma estrutura lógica do pensamento
jurídico, uma norma pensada que
poupa qualquer remissão das demais normas a uma instância metajurídica. Desse
modo, ela permite outorgar unidade lógica ao ordenamento jurídico e solucionar
eventuais conflitos normativos.
As
contradições entre normas, mais
aparentes que reais, podem ser resolvidas pela busca de um sentido que não as
contradiga logicamente – ainda que se possa fazê-lo também no âmbito material
–, recorrendo-se à norma fundamental, conformadora de uma ordem jurídica
específica.
Seguem,
conectadas ao tema precedente, as alusões de Kelsen aos problemas da legitimidade e da efetividade de um ordenamento jurídico particular. Diz ele que uma
ordem jurídica mantém-se válida até que ela termine por um determinado modo
especificado por essa mesma ordem jurídica, ou até ser substituída por outra
norma válida dessa mesma ordem. Tal é o princípio da legitimidade a operar em
um ordenamento jurídico estatal, não aplicável, todavia, nas hipóteses de
revolução ou golpe de Estado. Se a constituição válida é modificada ou
substituída pela força, o princípio de validade deixa de operar. Na sequência
de sua exposição, Kelsen passa a examinar a validade e a eficácia
das normas. Desde logo, o autor rechaça que validade e eficácia sejam conceitos
idênticos:
A fixação positiva e a eficácia são,
pela norma fundamental, tornadas condição da validade. A eficácia é-o no
sentido de que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como
um todo, e bem assim a norma jurídica singular, não percam a sua validade (p.
236).
A
eficácia da ordem jurídica em seu
conjunto é uma condição necessária para a validez de cada uma das normas que o
integram. As normas de um ordenamento jurídico valem porque a norma fundamental
é pressuposta como válida, porém
aquelas têm validade enquanto tal ordenamento jurídico seja eficaz. A validade decai pelo desuso ou, com se
diz em direito, pelo desuetudo, “[...] um costume
negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma
existente” (p. 237).
A
norma fundamental também gera a validade para a norma do direito internacional,
ou melhor, a norma que produz o direito
internacional é válida se um Estado a reconhece conforme a sua ordem
jurídica ou constituição. Os Estados regulam suas relações recíprocas mediante
tratados: “Nesta norma, consuetudinariamente criada, têm o seu fundamento de
vigência as normas jurídicas do direito internacional criadas por tratados.
Esta norma é usualmente formulada no princípio: pacta sunt servanda”
(negrito nosso) (p. 241).
Kelsen
entende por direito natural aquele
que busca o fundamento de validade do direito
positivo em uma norma independente dele mesmo − incluindo a própria norma
fundamental −, à luz da qual se analisa se o direito positivo se adéqua ou não
àquela norma. Trata-se de um modelo, em todo caso, axiológico ou uma espécie de
padrão ou métrica ético-política para apreciar a presença ou não de justiça no âmbito
de um determinado ordenamento jurídico positivo. Como se vê, o autor rejeita o direito natural como parâmetro para
julgar o direito positivo, em
virtude de que tal pretensão se afasta do pressuposto lógico-transcendental de
origem e aplicação do direito, ao pretender remetê-lo a outras suposições − no
caso a Deus ou à vontade da natureza – inadmissíveis para o alcance de
conhecimentos científicos fundamentados em bases sólidas.
Passando
ao tópico da estrutura escalonada da
ordem jurídica, que serve de fundamento à ideia de pirâmide jurídica e compreende toda a última parte da dinâmica
jurídica, permeada por inúmeros institutos do direito positivo, Kelsen observa
que a ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais, entrelaçadas
entre si, de acordo com o princípio de que o direito regula a sua própria
criação. Cada norma é criada conforme as prescrições de outra norma e, em
última instância, de acordo com o que estabelece a norma fundamental que
constitui a unidade do sistema:
Nesse caso, a norma fundamental − como constituição
em sentido lógico-jurídico − institui como fato produtor de direito não apenas
o ato do autor da constituição, mas também o costume constituído pela conduta
dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica constitucionalmente criada (p. 249).
Kelsen
faz distinção entre constituição
material e constituição formal.
A primeira faz referência à norma positiva através da qual é regulada a
produção das normas jurídicas gerais, seja por meio consuetudinário seja por um
ato legislativo, pelos órgãos e procedimentos nela estabelecidos. A segunda não
apenas contém normas que regulam a produção de normas gerais, ou seja, a
legislação, como também normas referentes a outros assuntos politicamente
importantes, bem assim a forma pela qual ela poderá ser modificada.
O
nível inferior à constituição se configura por normas geradas por via legislativa e pelo costume. É possível que haja
contradições entre o direito legislado
e o direito consuetudinário, as
quais se derrogam segundo o princípio da lex
posterior, isto é, a norma mais recente, via legislação, resolve diferenças
e contradições entre leis e costumes anteriores.
De
outra parte, a validade e a vigência do costume que condiciona o comportamento
humano é limitado, “[...] na medida em que a aplicação de normas gerais
produzidas por via consuetudinária aos casos concretos apenas se pode realizar
através de direito estatuído” (p. 254), haja vista que só se pode operar
mediante normas individuais, como as sentenças, a serem estabelecidas pelos órgãos
aplicadores do direito.
Com
relação à lei e ao decreto, referem-se às diversas
modalidades, num escalão mais abaixo, classificadas quer quanto à produção quer
quanto ao tipo de normas. Kelsen diferencia a lei em sentido material da lei
em sentido formal. Enquanto a primeira designa toda norma jurídica geral, a
segunda alude seja às normas jurídicas gerais que se revistam sob a forma de
lei, publicadas de determinada maneira, seja a qualquer conteúdo que apareça
sob essa forma. Por outro lado, os decretos,
quer os regulamentares quer os decretos-leis, são “[...] normas gerais que
provêm não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa” (p. 255).
Seguindo
nesse diapasão, Kelsen distingue as normas
de direito formal das normas de
direito material. Normas de direito formal são aquelas que regulam a
organização e a atuação dos órgãos judiciais e administrativos, tais como os
códigos de procedimentos civis e penais, bem assim o direito processual
administrativo. Quanto às normas de direito material, são as normas gerais que
determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos, conformando os
direitos civil, penal e administrativo.
No
âmbito das fontes de direito, Kelsen
julga que as principais são a legislação
e o costume. Para o autor, o termo “fontes
de direito” mostra-se plurissignificativo, pois nele cabe até mesmo o
fundamento último de validade de uma ordem normativa jurídica: a norma
fundamental. Numa acepção mais ampla, até mesmo não jurídica, pode designar
todas as representações que, de fato, influam sobre a função de produção e de
aplicação do direito, tais como os princípios morais e políticos, teorias
jurídicas, pareceres de especialistas etc., ainda que devam “[...] ser
claramente distinguidas das fontes de direito positivo” (p. 259).
Para
Kelsen, a criação, a aplicação e a observância do direito são funções jurídicas no sentido lato, detendo
as duas primeiras, porém, um sentido mais estrito e específico. Uma função é
produzir normas (função legislativa); outra, aplicá-las (poder judicial); e
outra ainda é acatar o direito, seja voluntariamente seja por meio de ato
coativo (órgão judicial). Todo ato jurídico é, ao mesmo tempo, aplicação de uma
norma superior e criação, regulada por essa mesma norma, de uma norma inferior,
exceções feitas à própria norma fundamental e à sanção. A observância do
direito, por seu turno, é a conduta contrária à que está associada à coação
sancionatória, ou seja, a conduta que evita a sanção.
Passando
à questão da jurisprudência, Kelsen
observa que a função judicial expressa na individualização da norma, através da
sentença, não é um ato puramente declaratório de direito, mas também
constitutivo: “O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também à quaestio
juris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a
fazer é ordenar in concreto a sanção
estatuída in abstrato na norma jurídica geral” (p. 264).
O
tribunal deve analisar as questões de fato, para aplicar, mediante um juízo
intelectivo de subsunção, o caráter abstrato das normas jurídicas gerais
vigentes a situações específicas, criando assim a norma individual a ser
aplicada ao caso concreto: “A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura
dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual” (p. 272).
Ao
aplicar o direito, o juiz pode se encontrar com as denominadas lacunas, isto é, a ausência de direito
válido aplicável ao caso concreto. Aqui também Kelsen distingue as lacunas próprias – que ocorrem quando
uma norma não pode ser aplicada se não for acompanhada de uma determinação
legal contida em outra norma –, das lacunas
técnicas, que se apresentam “[...] quando o legislador omite normar algo
que deveria ter normado para que de todo em todo fosse tecnicamente possível
aplicar a lei” (p. 276).
Para
Kelsen, o julgador somente postula pela existência de lacunas no ordenamento
quando a solução por este oferecida não o satisfaz. Assim, lacunas são ficções, a compatibilizarem os pressupostos
lógico-operacionais do direito com os postulados éticos do julgador. O autor
advoga a tese de que a teoria das lacunas é errônea, pois se funda “[...] na
ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever
de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta” (p.
273).
No
âmbito da criação do direito, Kelsen
considera a existência de dois modelos ou tipos ideais: um em que a
jurisprudência vincula-se diretamente às leis estatais e outro em que se ela se
encontra liberta destas. Em uma situação intermediária se encontra, por
exemplo, a common law anglo-americana, na qual as normas jurídicas gerais
não são, pelo menos a título principal, criadas por um órgão legislativo
central, mas pelo costume e aplicadas pelos tribunais, constituindo legítimo
direito consuetudinário, distintamente do modelo
europeu continental, no qual se considera que os tribunais somente aplicam
o direito posto e não o produzem. Tais sistemas apresentam “[...] diferentes
graus de centralização ou descentralização da função produtora do direito e,
portanto, diferentes graus de realização do princípio da flexibilidade do
direito (p. 282)”, que, por sua vez, está na razão inversa do princípio de
segurança jurídica. Kelsen conclui o seu exame desta maneira:
Os tribunais criam direito, a saber − em regra −
direito individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui um órgão
legislativo ou reconhece o costume como fato produtor de direito, fazem-no
aplicando o direito geral já de antemão criado pela lei ou pelo costume. A
decisão judicial é a continuação, não o começo, do processo de criação
jurídica.
Abordando
agora a temática do negócio jurídico
e do contrato, Kelsen logo afirma
que são fatores criadores de direito. Conforme o fato jurídico-negocial seja
constituído pelo ato de somente um ou de dois ou mais indivíduos,
distinguem-se, respectivamente, os negócios
jurídicos unilaterais, bilaterais
ou plurilaterais. “O negócio
jurídico de longe mais importante no direito moderno é o negócio jurídico
bilateral ou plurilateral chamado contrato” (p. 286). Observe-se que relações
contratuais, no sentido lato do termo, não se circunscrevem apenas às pessoas
físicas, mas estendem-se às pessoas jurídicas e aos Estados, neste último caso,
por exemplo, sob a forma de tratados e acordos internacionais.
O
tópico subsequente da exposição de Kelsen trata da administração, uma das três funções essenciais do Estado, conforme
a teoria tradicional, ao lado das funções jurisdicional e legislativa. A
administração, tal como a jurisdição, é individualização e concretização da
norma, vale dizer, da norma administrativa. Mais precisamente: “A atividade
designada como administração estadual é, em grande parte, da mesma natureza que
a legislação e a jurisdição, a saber, função jurídica no sentido estrito de
criação e aplicação de normas jurídicas” (p. 291).
Mais
à frente, na exposição de Kelsen, surge o tema do conflito entre normas de diferentes escalões, ou seja, de um
possível conflito entre uma norma de escalão superior e uma de escalão inferior.
Conflitos da espécie se manifestam em sentenças judiciais contrárias ao sentido
da lei ou de leis inconstitucionais, contrárias à norma fundamental, ou mesmo
de uma norma jurídica contrária ao direito. Esta última hipótese, segundo
Kelsen, é uma contradição (contradictio
inadjecto); e uma norma que não se ajusta a uma norma prévia que regula sua
produção não poderá ser vista como válida, por ser nula, ou melhor, não é norma
jurídica, tampouco pode ser anulada pela via do direito.
Torna-se
difícil sustentar a unidade do ordenamento jurídico como um sistema de normas
logicamente coeso, se existe uma contradição lógica entre duas normas de
distintos escalões nesse mesmo sistema, se permanecerem em vigor tanto a
constituição quanto a lei que a viola, tanto a lei quanto a sentença que a
contradiz. Por isso, esse caso, em que o direito é contrário ao próprio
direito, é contemplado pelo direito positivo. Ao admiti-lo, o direito positivo
acaba por aceitar a sua existência e, implicitamente, a sua antijuridicidade.
Na
esfera do direito, a contradição entre normas de distintos escalões se
manifesta simultaneamente à revogação da norma contraditória. A contrariedade à
norma de uma determinada norma presumidamente válida, na realidade, é apenas a
possibilidade de sua revogação por determinadas razões, ou seja, a sua anulabilidade por meio de outro ato
jurídico, ou a sua nulidade, isto é,
a sua negação como uma norma válida no meio jurídico. A norma contrária à norma
ou é simplesmente anulável – norma válida e, portanto, conforme o direito até
que seja anulada –, ou então é nula e, portanto, não é norma.
(Fim
da Parte III)
Leia
aqui a Parte IV.
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