Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 24 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte III)

Leia aqui a Parte II.
(Parte III)
V.    DINÂMICA JURÍDICA (p. 215-308)
A pluralidade de normas jurídicas forma um ordenamento somente quando a sua validade pode ser reconduzida a uma única norma, ou seja, a norma fundamental. Essa norma fundamental, enquanto fonte comum, representa a unidade na pluralidade de todas as normas que formam o ordenamento:
Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido, pela via de um raciocínio lógico, de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma determinada forma − em última análise, de uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta (p. 221).
A norma fundamental de um ordenamento jurídico histórico ou concreto representa um fundamento hipotético, isto é, um pressuposto lógico-transcendental. Ao empregar essa terminologia, Kelsen faz clara alusão a Kant, para afirmar que se trata de uma estrutura lógica do pensamento jurídico, uma norma pensada que poupa qualquer remissão das demais normas a uma instância metajurídica. Desse modo, ela permite outorgar unidade lógica ao ordenamento jurídico e solucionar eventuais conflitos normativos.
As contradições entre normas, mais aparentes que reais, podem ser resolvidas pela busca de um sentido que não as contradiga logicamente – ainda que se possa fazê-lo também no âmbito material –, recorrendo-se à norma fundamental, conformadora de uma ordem jurídica específica.
Seguem, conectadas ao tema precedente, as alusões de Kelsen aos problemas da legitimidade e da efetividade de um ordenamento jurídico particular. Diz ele que uma ordem jurídica mantém-se válida até que ela termine por um determinado modo especificado por essa mesma ordem jurídica, ou até ser substituída por outra norma válida dessa mesma ordem. Tal é o princípio da legitimidade a operar em um ordenamento jurídico estatal, não aplicável, todavia, nas hipóteses de revolução ou golpe de Estado. Se a constituição válida é modificada ou substituída pela força, o princípio de validade deixa de operar. Na sequência de sua exposição, Kelsen passa a examinar a validade e a eficácia das normas. Desde logo, o autor rechaça que validade e eficácia sejam conceitos idênticos:
A fixação positiva e a eficácia são, pela norma fundamental, tornadas condição da validade. A eficácia é-o no sentido de que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como um todo, e bem assim a norma jurídica singular, não percam a sua validade (p. 236).
A eficácia da ordem jurídica em seu conjunto é uma condição necessária para a validez de cada uma das normas que o integram. As normas de um ordenamento jurídico valem porque a norma fundamental é pressuposta como válida, porém aquelas têm validade enquanto tal ordenamento jurídico seja eficaz. A validade decai pelo desuso ou, com se diz em direito, pelo desuetudo, “[...] um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente” (p. 237).
A norma fundamental também gera a validade para a norma do direito internacional, ou melhor, a norma que produz o direito internacional é válida se um Estado a reconhece conforme a sua ordem jurídica ou constituição. Os Estados regulam suas relações recíprocas mediante tratados: “Nesta norma, consuetudinariamente criada, têm o seu fundamento de vigência as normas jurídicas do direito internacional criadas por tratados. Esta norma é usualmente formulada no princípio: pacta sunt servanda” (negrito nosso) (p. 241).
Kelsen entende por direito natural aquele que busca o fundamento de validade do direito positivo em uma norma independente dele mesmo − incluindo a própria norma fundamental −, à luz da qual se analisa se o direito positivo se adéqua ou não àquela norma. Trata-se de um modelo, em todo caso, axiológico ou uma espécie de padrão ou métrica ético-política para apreciar a presença ou não de justiça no âmbito de um determinado ordenamento jurídico positivo. Como se vê, o autor rejeita o direito natural como parâmetro para julgar o direito positivo, em virtude de que tal pretensão se afasta do pressuposto lógico-transcendental de origem e aplicação do direito, ao pretender remetê-lo a outras suposições − no caso a Deus ou à vontade da natureza – inadmissíveis para o alcance de conhecimentos científicos fundamentados em bases sólidas.
Passando ao tópico da estrutura escalonada da ordem jurídica, que serve de fundamento à ideia de pirâmide jurídica e compreende toda a última parte da dinâmica jurídica, permeada por inúmeros institutos do direito positivo, Kelsen observa que a ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais, entrelaçadas entre si, de acordo com o princípio de que o direito regula a sua própria criação. Cada norma é criada conforme as prescrições de outra norma e, em última instância, de acordo com o que estabelece a norma fundamental que constitui a unidade do sistema:
Nesse caso, a norma fundamental − como constituição em sentido lógico-jurídico − institui como fato produtor de direito não apenas o ato do autor da constituição, mas também o costume constituído pela conduta dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica constitucionalmente criada (p. 249).
Kelsen faz distinção entre constituição material e constituição formal. A primeira faz referência à norma positiva através da qual é regulada a produção das normas jurídicas gerais, seja por meio consuetudinário seja por um ato legislativo, pelos órgãos e procedimentos nela estabelecidos. A segunda não apenas contém normas que regulam a produção de normas gerais, ou seja, a legislação, como também normas referentes a outros assuntos politicamente importantes, bem assim a forma pela qual ela poderá ser modificada.
O nível inferior à constituição se configura por normas geradas por via legislativa e pelo costume. É possível que haja contradições entre o direito legislado e o direito consuetudinário, as quais se derrogam segundo o princípio da lex posterior, isto é, a norma mais recente, via legislação, resolve diferenças e contradições entre leis e costumes anteriores.
De outra parte, a validade e a vigência do costume que condiciona o comportamento humano é limitado, “[...] na medida em que a aplicação de normas gerais produzidas por via consuetudinária aos casos concretos apenas se pode realizar através de direito estatuído” (p. 254), haja vista que só se pode operar mediante normas individuais, como as sentenças, a serem estabelecidas pelos órgãos aplicadores do direito.
Com relação à lei e ao decreto, referem-se às diversas modalidades, num escalão mais abaixo, classificadas quer quanto à produção quer quanto ao tipo de normas. Kelsen diferencia a lei em sentido material da lei em sentido formal. Enquanto a primeira designa toda norma jurídica geral, a segunda alude seja às normas jurídicas gerais que se revistam sob a forma de lei, publicadas de determinada maneira, seja a qualquer conteúdo que apareça sob essa forma. Por outro lado, os decretos, quer os regulamentares quer os decretos-leis, são “[...] normas gerais que provêm não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa” (p. 255).
Seguindo nesse diapasão, Kelsen distingue as normas de direito formal das normas de direito material. Normas de direito formal são aquelas que regulam a organização e a atuação dos órgãos judiciais e administrativos, tais como os códigos de procedimentos civis e penais, bem assim o direito processual administrativo. Quanto às normas de direito material, são as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos, conformando os direitos civil, penal e administrativo.
No âmbito das fontes de direito, Kelsen julga que as principais são a legislação e o costume. Para o autor, o termo “fontes de direito” mostra-se plurissignificativo, pois nele cabe até mesmo o fundamento último de validade de uma ordem normativa jurídica: a norma fundamental. Numa acepção mais ampla, até mesmo não jurídica, pode designar todas as representações que, de fato, influam sobre a função de produção e de aplicação do direito, tais como os princípios morais e políticos, teorias jurídicas, pareceres de especialistas etc., ainda que devam “[...] ser claramente distinguidas das fontes de direito positivo” (p. 259).
Para Kelsen, a criação, a aplicação e a observância do direito são funções jurídicas no sentido lato, detendo as duas primeiras, porém, um sentido mais estrito e específico. Uma função é produzir normas (função legislativa); outra, aplicá-las (poder judicial); e outra ainda é acatar o direito, seja voluntariamente seja por meio de ato coativo (órgão judicial). Todo ato jurídico é, ao mesmo tempo, aplicação de uma norma superior e criação, regulada por essa mesma norma, de uma norma inferior, exceções feitas à própria norma fundamental e à sanção. A observância do direito, por seu turno, é a conduta contrária à que está associada à coação sancionatória, ou seja, a conduta que evita a sanção.
Passando à questão da jurisprudência, Kelsen observa que a função judicial expressa na individualização da norma, através da sentença, não é um ato puramente declaratório de direito, mas também constitutivo: “O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também à quaestio juris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstrato na norma jurídica geral” (p. 264).
O tribunal deve analisar as questões de fato, para aplicar, mediante um juízo intelectivo de subsunção, o caráter abstrato das normas jurídicas gerais vigentes a situações específicas, criando assim a norma individual a ser aplicada ao caso concreto: “A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual” (p. 272).
Ao aplicar o direito, o juiz pode se encontrar com as denominadas lacunas, isto é, a ausência de direito válido aplicável ao caso concreto. Aqui também Kelsen distingue as lacunas próprias – que ocorrem quando uma norma não pode ser aplicada se não for acompanhada de uma determinação legal contida em outra norma –, das lacunas técnicas, que se apresentam “[...] quando o legislador omite normar algo que deveria ter normado para que de todo em todo fosse tecnicamente possível aplicar a lei” (p. 276).
Para Kelsen, o julgador somente postula pela existência de lacunas no ordenamento quando a solução por este oferecida não o satisfaz. Assim, lacunas são ficções, a compatibilizarem os pressupostos lógico-operacionais do direito com os postulados éticos do julgador. O autor advoga a tese de que a teoria das lacunas é errônea, pois se funda “[...] na ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta” (p. 273).
No âmbito da criação do direito, Kelsen considera a existência de dois modelos ou tipos ideais: um em que a jurisprudência vincula-se diretamente às leis estatais e outro em que se ela se encontra liberta destas. Em uma situação intermediária se encontra, por exemplo, a common law anglo-americana, na qual as normas jurídicas gerais não são, pelo menos a título principal, criadas por um órgão legislativo central, mas pelo costume e aplicadas pelos tribunais, constituindo legítimo direito consuetudinário, distintamente do modelo europeu continental, no qual se considera que os tribunais somente aplicam o direito posto e não o produzem. Tais sistemas apresentam “[...] diferentes graus de centralização ou descentralização da função produtora do direito e, portanto, diferentes graus de realização do princípio da flexibilidade do direito (p. 282)”, que, por sua vez, está na razão inversa do princípio de segurança jurídica. Kelsen conclui o seu exame desta maneira:
Os tribunais criam direito, a saber − em regra − direito individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui um órgão legislativo ou reconhece o costume como fato produtor de direito, fazem-no aplicando o direito geral já de antemão criado pela lei ou pelo costume. A decisão judicial é a continuação, não o começo, do processo de criação jurídica.
Abordando agora a temática do negócio jurídico e do contrato, Kelsen logo afirma que são fatores criadores de direito. Conforme o fato jurídico-negocial seja constituído pelo ato de somente um ou de dois ou mais indivíduos, distinguem-se, respectivamente, os negócios jurídicos unilaterais, bilaterais ou plurilaterais. “O negócio jurídico de longe mais importante no direito moderno é o negócio jurídico bilateral ou plurilateral chamado contrato” (p. 286). Observe-se que relações contratuais, no sentido lato do termo, não se circunscrevem apenas às pessoas físicas, mas estendem-se às pessoas jurídicas e aos Estados, neste último caso, por exemplo, sob a forma de tratados e acordos internacionais.
O tópico subsequente da exposição de Kelsen trata da administração, uma das três funções essenciais do Estado, conforme a teoria tradicional, ao lado das funções jurisdicional e legislativa. A administração, tal como a jurisdição, é individualização e concretização da norma, vale dizer, da norma administrativa. Mais precisamente: “A atividade designada como administração estadual é, em grande parte, da mesma natureza que a legislação e a jurisdição, a saber, função jurídica no sentido estrito de criação e aplicação de normas jurídicas” (p. 291).
Mais à frente, na exposição de Kelsen, surge o tema do conflito entre normas de diferentes escalões, ou seja, de um possível conflito entre uma norma de escalão superior e uma de escalão inferior. Conflitos da espécie se manifestam em sentenças judiciais contrárias ao sentido da lei ou de leis inconstitucionais, contrárias à norma fundamental, ou mesmo de uma norma jurídica contrária ao direito. Esta última hipótese, segundo Kelsen, é uma contradição (contradictio inadjecto); e uma norma que não se ajusta a uma norma prévia que regula sua produção não poderá ser vista como válida, por ser nula, ou melhor, não é norma jurídica, tampouco pode ser anulada pela via do direito.
Torna-se difícil sustentar a unidade do ordenamento jurídico como um sistema de normas logicamente coeso, se existe uma contradição lógica entre duas normas de distintos escalões nesse mesmo sistema, se permanecerem em vigor tanto a constituição quanto a lei que a viola, tanto a lei quanto a sentença que a contradiz. Por isso, esse caso, em que o direito é contrário ao próprio direito, é contemplado pelo direito positivo. Ao admiti-lo, o direito positivo acaba por aceitar a sua existência e, implicitamente, a sua antijuridicidade.
Na esfera do direito, a contradição entre normas de distintos escalões se manifesta simultaneamente à revogação da norma contraditória. A contrariedade à norma de uma determinada norma presumidamente válida, na realidade, é apenas a possibilidade de sua revogação por determinadas razões, ou seja, a sua anulabilidade por meio de outro ato jurídico, ou a sua nulidade, isto é, a sua negação como uma norma válida no meio jurídico. A norma contrária à norma ou é simplesmente anulável – norma válida e, portanto, conforme o direito até que seja anulada –, ou então é nula e, portanto, não é norma.
(Fim da Parte III)
Leia aqui a Parte IV.

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