Leia
aqui a Parte III.
(Parte IV)
VI. DIREITO
E ESTADO (p. 309-353)
O problema central da dinâmica jurídica é o dos diversos modos de criação do
direito, ou seja, se suas obrigações nascem com o seu consentimento ou sem ele,
e ainda contra a sua própria vontade. Essa distinção entre autonomia e heteronomia aparece,
sobretudo, na teoria do direito público. Assim, podem-se distinguir dois
métodos distintos de criação de normas e, por conseguinte, de Estado: (i)
aquele em que o indivíduo que vai ser obrigado a cumpri-la participa de sua
criação (democracia/república); (ii) e aquele em que as normas são criadas sem
a sua participação (autocracia/monarquia).
Kelsen
considera insatisfatória a distinção, essencial na moderna ciência do direito, entre
direito público e direito privado. Refere-se ela a um
princípio de classificação das relações jurídicas, em que o privado seria uma
relação entre dois sujeitos iguais, e o público uma relação entre dois sujeitos
na qual um está subordinado ao outro. A relação de direito privado seria, mais
propriamente, uma relação jurídica tout
court, enquanto que a relação de direito público seria uma relação de poder
ou de domínio.
O
valor superior atribuído a certos sujeitos firma-se numa diferença no modo de
criação do direito. A ordem jurídica confere aos indivíduos qualificados como
órgãos do Estado – a autoridade pública – o poder de obrigar os súditos
mediante uma declaração unilateral de vontade, o que, para Kelsen, consistiria
numa criação normativa autocrática.
Por outro lado, os sujeitos ligados por um contrato participam na formação da
norma à qual se submeteram, a constituir verdadeira criação jurídica democrática.
A
distinção entre direito público e direito privado configura, para Kelsen, um
dualismo de caráter ideológico, porquanto os caracteres democráticos e
autocráticos se intercambiam na produção das normas, seja em um sistema
econômico socialista seja em um sistema democrático, em particular entre as
normas jurídicas gerais e as normas jurídicas individuais, intervindo em ambas
os particulares e o Estado.
Outro
dualismo tradicional entre o Estado
e o direito, também com funções
ideológicas, é o que apresenta o Estado como uma pessoa distinta da do direito
e, assim, o direito que produz o Estado é ordem que se submete ao próprio
Estado e com o qual se justifica: “E o direito só pode justificar o Estado
quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta
à sua originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em um
qualquer sentido” (p. 316).
Segundo
o autor, nem toda ordem jurídica é um Estado, tampouco uma ordem jurídica supra
ou interestatal do chamado direito internacional. Para chegar a ser um Estado,
a ordem jurídica deve realizar a função específica de “[...] instituir órgãos
funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação
das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização” (p.
317).
Como
comunidade social, e de acordo com a teoria tradicional, o Estado requer
população, território e poder (p. 318), poder esse que nada mais é do que a
eficácia da ordem jurídica estatal: “Desta forma, o Estado [...] define-se como
uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial
e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente ao direito
internacional e que é [...] eficaz” (p. 321).
O
Estado, para Kelsen, nada mais é do que uma pessoa jurídica ou um sujeito ativo
de direitos e obrigações, à semelhança das corporações, e a atividade do Estado
se expressa por intermédio de seus órgãos. As pessoas realizam atos, enquanto as pessoas jurídicas,
como o Estado, efetuam funções. O
Estado é uma construção auxiliar do
pensamento jurídico.
As
funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do
Estado, em três categorias: legislativa, administrativa (incluindo o governo) e
a de jurisdição. Elas são realizadas sob o pressuposto de unidade jurídica, em
conformidade com as normas que configuram os órgãos do Estado, por intermédio de
seus funcionários.
Questionando-se
sobre a hipótese de o Estado poder cometer ilícitos, assim disserta: “Como o
ilícito é um fato definido na ordem jurídica, pode ele muito bem ser referido à
unidade personificada desta ordem jurídica, ou seja, pode ser atribuído ao
Estado” (p. 338).
Assoma,
em seguida, o tema do Estado de direito.
A Kelsen parece que não se pode afirmar que preexista um Estado anterior ou
prévio à existência de seu direito, para logo submeter-se ao último. O direito
é que regula a conduta dos homens e, com sua produção, os submete tanto quanto
o Estado. Com o termo “Estado de direito” pretende-se aludir às exigências da
democracia e à segurança jurídica, como uma espécie de autolimitação que se
impõe o Estado como personificação da ordem jurídica:
Esta atribuição ao Estado, isto é, a referência à
unidade de uma ordem jurídica e a personificação desta, daí mesmo resultante,
é, como importa sempre acentuar, uma operação mental, um instrumento auxiliar
do conhecimento. O que existe como objeto do conhecimento é apenas o direito
(p. 346).
O
direito dá origem ao Estado e não o contrário. A unidade de uma ordem jurídica
pressupõe a existência do Estado e a correlação de ambos é indispensável
sublinhar.
Todo
Estado é um Estado de direito, motivo pelo qual a expressão, segundo Kelsen,
mostra-se pleonástica. A divisão de poderes, a realização de suas funções conforme
as normas e através de seus respectivos órgãos, com tribunais e garantias aos
direitos das pessoas etc., tudo isso outorgaria ao Estado a qualidade de Estado
de direito.
Intimamente
vinculado às ideias anteriores é o tema da centralização
e descentralização no Estado e que
Kelsen relaciona com uma concepção estática ou dinâmica do direito. O Estado,
como um sistema de normas, implica que estas possuem validade tanto no tempo
quanto no espaço. O problema das divisões geográficas num território governado
por um Estado remete à articulação territorial do próprio Estado, segundo os
modelos unitário ou federal, atrelados a uma maior centralização ou
descentralização de suas funções.
Quando
se considera que as normas de um Estado valem para todo o território é evidente
que estas são normas gerais. Caso se refiram a normas individualizadas em atos
concretos de administração e de sentenças judiciais, somente se aplicam a uma
parte do território do Estado e a algumas pessoas.
Por
fim, o autor propõe a dissolução do dualismo entre direito e Estado.
Epistemologicamente, não se pode sustentar, por um lado, que o Estado transcenda
o direito e, por outro, a imanência do Estado no direito. Kelsen identifica
nisso um resquício do jusnaturalismo, a enfatizar que o direito tem relação com
a justiça. A identidade do direito e do Estado parece a Kelsen como o resultado
da própria ordem normativa e de seu caráter coercitivo que desterra todo
antropomorfismo e ideologia.
VII. O
ESTADO E O DIREITO INTERNACIONAL (p. 355-386)
Esta
seção procura analisar a natureza jurídica de direito internacional, como um
conjunto de normas que regulam o comportamento mútuo dos Estados. Como sanções
específicas, o direito internacional estabelece as represálias e a guerra. A
primeira é uma ação de intervenção − que o direito internacional proíbe sob
circunstâncias diversas − na esfera dos interesses de outros Estados. Essa
intervenção pode ser com ou sem normas. A segunda é um poder armado de um
Estado dirigido a outro com algum propósito.
Quanto
à guerra, há duas teses. Para a
primeira, a guerra não é nem delito nem sanção. Para a segunda, a guerra
somente é admitida como uma reação, ao abrigo do direito internacional, em face
de que um Estado haja prejudicado os interesses ou os direitos de outro.
Trata-se do princípio do bellum iustum
ou guerra justa. As represálias e, em particular, as guerras causam danos às pessoas e a
diversos bens de maneira irreparável, ainda que se trate de uma suposta guerra
justa. Esses dois fenômenos, de alguma maneira, pensa Kelsen, deveriam ser
enquadrados no direito.
O
direito internacional, argumenta Kelsen, não tem órgãos que funcionem como uma
divisão de trabalho, como sucede com o direito estatal. As normas que vigoram
no direito internacional são resultado do costume,
da convenção ou do tratado, elaboradas não por órgãos
legislativos, mas pelos próprios Estados interessados ou implicados.
Na
construção escalonada do direito internacional há normas gerais que obrigam e
facultam a todos os Estados, expressas sob o princípio pacta sunt servanda: “Ela
autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional a regular, através de
tratados, a sua conduta recíproca, quer dizer, a conduta dos seus órgãos e
súditos em relação aos órgãos e súditos dos outros” (p. 359). As convenções,
acordos e tratados no direito internacional têm um caráter mais particular e
não valem para todos, mas apenas para os Estados signatários. O direito
internacional, mediante suas normas, indica aquilo que se deve fazer ou omitir,
mas não qual a pessoa indicada para tanto: “O direito internacional deixa à
ordem jurídica de cada Estado a determinação deste indivíduo” (p. 361).
Isso
significa que os efeitos da normatividade internacional criada pelos Estados e
com consequências sobre seus súditos − os nacionais − ficam subordinados à
normatividade estatal de cada Estado, para sua aplicação a casos particulares.
Para
Kelsen, a partir de uma perspectiva epistemológica, é inevitável uma concepção monista ou unitária da relação entre os dois sistemas normativos, tanto do
direito estatal como do direito internacional, porquanto. Isso ocorre em razão
de que a norma fundante básica de cada Estado estabelece o princípio de coordenação, que implica a delimitação de sua esfera
de validade normativa, mediante o qual se alcança não apenas a unidade como
também a coordenação para a validade e eficácia normativa.
Para
o propósito anterior, assinala Kelsen, deve existir uma terceira ordem superior
que determine a produção e validade dos doutros dois. Isso se alcança mediante
o princípio da delegação, que liga
uma ordem normativa inferior à outra superior, ou então esta assinala como deve
se produzir a norma inferior para dar-lhe validez dentro de limites, tanto a
normas gerais como individualizadas. O princípio da delegação liga
unitariamente as ordens normativas parciais. A propósito, Kelsen discorre do
seguinte modo:
O direito internacional tem de ser concebido, ou
como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estadual e, por conseguinte,
como incorporada nesta, ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens
jurídicas estaduais, supraordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens
jurídicas parciais (p. 369-370).
Para
Kelsen, a primazia de uma ou outra ordem normativa, seja a estatal ou a do
direito internacional, parece-lhe que finalmente são falácias de conteúdo
político que não se justificam e que a Teoria Pura do Direito exibe como tais e
ante as quais se mostra indiferente por suas carências de justificação gnosiológica.
VIII. A
INTERPRETAÇÃO (p. 387-397)
Para
Kelsen, a interpretação é “[...] uma operação mental que acompanha o processo
da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão
inferior” (p. 387), sendo basicamente de dois tipos: uma que levam a efeito os
órgãos encarregados da aplicação do direito, e outra segundo o juízo de uma
pessoa privada. Uma, por intermédio dos tribunais, e outra, por meio dos
indivíduos, em especial, os advogados.
A
relação entre um escalão superior e um inferior da ordem jurídica é uma
relação, afirma Kelsen, de determinação ou vinculação ao regular a produção de
uma norma jurídica, a sua aplicação e, eventualmente, o seu conteúdo. Não se
trata de uma determinação completa, pois há de ficar uma margem, maior ou
menor, de livre apreciação, de modo que “[...] a norma do escalão superior tem
sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o
caráter de um quadro ou moldura a
preencher por este ato” (p. 388).
Na
aplicação de uma norma, o legislador não pode nem deve prever todos os atos
para que a norma se faça efetiva ou se individualize. Daí esse marco de
indeterminação e discricionariedade da autoridade competente. Afirma Kelsen que
a indeterminação na aplicação da
norma pode ser intencional ou não intencional. No primeiro caso, é
estabelecida por vontade do órgão que instaurou a norma que há de aplicar-se.
Kelsen dá o exemplo da norma penal que faculta ao juiz impor uma sanção
pecuniária ou a prisão. O segundo caso se produz quando a chamada vontade do
legislador ou a intenção das partes num negócio jurídico não coincidem ou
existe tal discrepância, que torna necessária a interpretação dos órgãos
jurisdicionais.
Kelsen
insiste em que muitas interpretações que se fazem no campo do direito levam a revolver
conteúdos políticos e ideológicos, os quais não se podem evitar, tanto menos
por parte dos advogados. Porém não se tratam de interpretações científicas
próprias da ciência do direito. O mesmo acontece quando a jurisprudência fixa
um só sentido à norma em nome da segurança
jurídica. Tampouco as lacunas do
direito são cobertas mediante uma só interpretação. Apreciar assim as
coisas é uma ficção: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o
máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em
todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’” (p. 396).
(Fim
da Parte IV)
Leia
aqui a Parte V.
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