Leia aqui a Nota Inicial.
(Parte
I)
KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito.
Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009
(Biblioteca Jurídica WMF).
Hans
Kelsen nasceu em Praga (República Tcheca) – à época pertencente ao Império
Austro-Húngaro que se dissolveu em 1918 −, em 11/10/1881, e faleceu em Berkeley
(EUA), em 19/4/1973. Ainda criança, foi levado para Viena, onde empreendeu seus
estudos, vindo a obter o doutorado em direito em 1906. Iniciou no magistério em
1911, como livre-docente nas cátedras de Direito Público e de Filosofia
Jurídica, na Universidade de Viena, passando à titularidade em 1919, cargo que
ocupou até 1930. Kelsen foi um dos mais importantes contribuintes na elaboração
da nova Constituição Austríaca, promulgada em 1920. Em 1930, foi removido da
Corte Constitucional Austríaca, cargo que ocupava desde 1925.
Depois
de haver aceitado, nesse mesmo ano, uma cátedra na Universidade de Colônia, na
Alemanha, com a ascensão de Hitler ao poder e por ser judeu, teve que emigrar
para Genebra (Suíça), passando, posteriormente, a Praga, novamente Genebra,
depois Paris. Em 1940, a Universidade de Havana (Cuba) convidou-o para um breve
curso. Em seguida, passou à Universidade de Harvard (EUA), que lhe ofereceu uma
cátedra. Logo após, também como catedrático, passou à Universidade da
Califórnia (Berkeley), onde permaneceu até a sua jubilação, em 1952.
Entre
as obras mais significativas de Kelsen tem-se: O Problema da Justiça (1960), Justiça
e Direito Natural (1959), Teoria
Geral do Direito e do Estado (1945), Teoria
Pura do Direito (1ª edição - 1934; 2ª edição - 1960) e Teoria Geral do Direito Internacional Público (1928).
PREFÁCIOS (p. XI-XVIII)
No
prefácio à primeira edição da Teoria
Pura do Direito, de 1934, Kelsen, ao fazer referência ao conceito de pureza, assinala que tal noção retrata
a sua intenção de elaborar uma teoria apartada de conteúdos ideológicos e
políticos. Trata-se de abordar o direito a partir de sua dimensão normativa, pretendendo
transformá-lo em ciência, com a maior objetividade possível, vale dizer, a
partir de uma filosofia do método e dos conceitos fundamentais da ciência
jurídica. Não é sem motivo que muitos dos seus críticos se opõem a esse ideal
que torna destacável apenas um dos contornos de que se reveste o direito − a
norma −, apartando-o dos seus conteúdos axiológicos e fáticos. Diz ele que:
Os fascistas declaram-na liberalismo democrático,
os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado
do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo
capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como
bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é − asseguram
muitos − aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem
reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do
Estado e do direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a
marca de ateísta (p. XIII).
Segundo
Kelsen, a depuração da ciência jurídica há de se realizar em duas direções: de
um lado, frente à tendência ético-política, que estuda as normas jurídicas
atentando para as finalidades concretas a que servem; por outro, frente à
tendência sociológica, que circunscreve fatos às normas, explicações causais com
preceitos.
Já
no prefácio à segunda edição, redigido em Berkeley, Califórnia, em 1960, Kelsen
afirma haver reelaborado alguns conceitos e questões, em relação à primeira
edição de 1934. Nada obstante, persiste em conceber uma ciência jurídica livre
de influências e imposições políticas, pelo que se opõe àqueles que “[...]
creem poder definir um direito justo e, consequentemente, um critério de valor
para o direito positivo” (p. XVIII).
I. DIREITO
E NATUREZA (p. 1-65)
Preliminarmente,
Kelsen analisa o conceito de pureza,
entendido como um pressuposto de uma concepção científica do direito, daquilo
que é comum a toda normatividade jurídica, como parte de uma ciência jurídica mais
universal. Para tanto, propõe-se a expurgar dessa ciência quaisquer elementos
que lhe sejam estranhos, como os fatores políticos, ideológicos, éticos,
sociológicos etc.
Kelsen
concebe a realidade como um acontecimento no qual determinadas condutas, no
tempo e no espaço, adquirem um significado
jurídico. Nos atos humanos, produtos da razão, é necessário reconhecer
tanto o sentido subjetivo, expressão
de uma decisão interna, como o sentido
externo ou objetivo, que se manifesta como conduta visível. Em ambas as
ações há uma atribuição que pode ter
ou não significado jurídico, ainda que apenas o direito seja capaz de explicá-lo.
Kelsen observa, ademais, que um ato de conduta humana pode “[...] muito bem
levar consigo uma autoexplicação
jurídica, isto é, uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa”
(p. 3).
O
significado de um fato externo e natural, sujeito a leis de causalidade, pode
ser distinto graças à norma, a
funcionar como esquema de interpretação.
“Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana
constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação
específica, a saber, de uma interpretação normativa” (p. 4). Kelsen exemplifica
com um homicídio e uma sentença de morte. Fática e naturalmente parecem iguais.
Não obstante, são distintos, porquanto o primeiro é um ato contrário ao direito
e o segundo pode estar ajustado a um código penal e a um código de
procedimentos penais.
O
direito é o conhecimento de uma ordenação normativa: “Com o termo ‘norma’ se
quer significar que algo deve ser ou
acontecer, especialmente que um homem se deve
conduzir de determinada maneira” (itálico do autor) (p. 5). “‘Norma’ é o
sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou,
especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém” (p.
6).
A
norma configura o sentido de uma conduta humana como conforme ou contrária ao
direito, com fundamento na vontade do legislador e do sujeito de direitos e
obrigações que deve acatá-la. O dualismo entre o ser e o dever-ser não
implica que um esteja ao lado do outro sem relação, já que o processo
legislativo é um conjunto de ações que estabelece um sentido:
Um
dever-ser objetivo obriga, diz
Kelsen, pois está fundado em uma norma válida do direito que, por sua vez,
pressupõe uma norma fundante. A
palavra validade designa a existência
específica de uma norma. O autor insiste em que não se deve confundir a
validade com a vontade, nem das pessoas nem do legislador, tampouco do Estado,
porquanto esse ato com significado volitivo pode haver-se dissipado e a norma
que o expressa ainda assim permanece. Por isso também é necessário distinguir a
validade da eficácia: “Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e
respeitada, isto é, uma norma que [...] não é eficaz em certa medida, não será
considerada como norma válida (vigente). Um
mínimo de eficácia [...] é a condição da sua vigência” (p. 12).
O
autor observa que não coincidem, no âmbito temporal, a validade e a eficácia de
uma norma jurídica: a norma jurídica adquire validade antes de ser eficaz,
porém deixa de ser considerada como válida se, durante muito tempo, deixar de
ser aplicada, ou que dá no mesmo, haja perdido a sua eficácia.
A
validade da norma se manifesta no tempo e no espaço. No primeiro caso, a norma, em determinadas ocasiões,
refere-se ao passado e, habitualmente, a um presente ou futuro; no segundo, ao
território aplicável. Kelsen também assinala o domínio pessoal de validade, a enfatizar o comportamento da pessoa
em relação à norma, no que diz respeito às suas qualidades. Finalmente: “Pode
falar-se ainda de um domínio material
de validade tendo em conta os diversos aspectos da conduta humana que são
normados: aspecto econômico, religioso, político etc.” (negrito nosso) (p.
15-16).
A
norma jurídica é uma regulação positiva ou negativa, segundo imponha limites ou
proíba algumas condutas, o que implica obrigar, facultar ou permitir, segundo
cada caso. De modo similar, também está relacionada ao valor: “Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo. É a realidade que se
avalia” (negritos nossos) (p. 19).
As
normas, por sua vez, são boas ou,
quando defeituosas, más. Trata-se,
para Kelsen, de juízos de valor que se referem aos valores expressos e não ao
juízo como função do conhecimento: “Como função do conhecimento tem um juízo de
ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e
da vontade do sujeito judicante” (p. 22).
Passa-se,
agora, a examinar a relação entre ordem
normativa e a ordem social que a
estabelece, premiando ou estimulando condutas ou desalentando e castigando
outras. Para Kelsen, parece duvidoso que existam sociedades − ou como ele
denomina “ordens sociais” − sem sanções: “Quem desaprova a conduta prescrita,
ou aprova a conduta oposta, comporta-se imoralmente e deve ser, ele próprio,
moralmente reprovado” (p. 29).
Há
que se distinguir entre sanções
transcendentes, em particular, de sistemas religiosos, e sanções socialmente imanentes, quando
impostas pelo grupo humano, tais como as jurídicas. Para Kelsen, o direito estabelece
ordem na conduta humana, inclusive de maneira coativa, isto é, a uma conduta
indevida impõe-se uma sanção, ainda que contra a vontade de seu autor. A ordem
que impõe o direito, até chegar à coerção
ou o uso da força para subjugar uma
vontade rebelde e contrária à norma válida, fundamenta-se em normas processuais
específicas geradas pela comunidade jurídica, que detém o monopólio da ação.
O
direito não tem por fim a coerção, mas apenas em casos extremos e bem mais por
exceção, já que a ordem jurídica aspira a uma sociedade coletiva sob os
auspícios da paz, ainda que relativa, já que não é infrequente a violação da
norma válida. Em função disso, diz Kelsen: “O direito é uma ordem de coerção e,
como ordem de coerção, é – conforme o seu grau de evolução – uma ordem de
segurança, quer dizer, uma ordem de paz” (p. 41).
Os
atos de coerção não devem vulnerar
as normas jurídicas e os valores que as acompanham. O direito, tendo que
garantir um mínimo de liberdade,
deve especificar quais condutas devem ser sancionadas, deixando um vasto campo
de ações reservadas e protegidas como esfera
de liberdade. A fronteira entre o jurídico, a liberdade e a conduta ilícita
nem sempre é fácil de se fixar e menos ainda de se proteger. Ainda assim, o
império do direito há de ser forte o suficiente para fazer frente ao que Kelsen
chama por bando de salteadores,
assegurando, desse modo, a paz.
Kelsen
entende, por fim, que pode haver obrigações
jurídicas sem sanção ou normas
jurídicas não autônomas, isto é, que no primeiro caso o desconhecimento ou
o não-cumprimento não acarretam punição ou coerção; e no segundo, ao cumprir-se
a norma, viola-se outra mais importante. No entanto, o autor acredita que isso
não nega a natureza coercitiva do direito. A razão é que nada mais são do que
normas, “[...] pois apenas têm validade em ligação com uma norma estatuidora de
um ato de coerção” (p. 64).
(Fim
da Parte I)
Leia
aqui a Parte II.
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