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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 22 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte I)

Leia aqui a Nota Inicial.
(Parte I)
RESENHA DA “TEORIA PURA DO DIREITO” DE HANS KELSEN
1      Referência
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009 (Biblioteca Jurídica WMF).
2     Apresentação do Autor e de suas Obras [1]
Hans Kelsen nasceu em Praga (República Tcheca) – à época pertencente ao Império Austro-Húngaro que se dissolveu em 1918 −, em 11/10/1881, e faleceu em Berkeley (EUA), em 19/4/1973. Ainda criança, foi levado para Viena, onde empreendeu seus estudos, vindo a obter o doutorado em direito em 1906. Iniciou no magistério em 1911, como livre-docente nas cátedras de Direito Público e de Filosofia Jurídica, na Universidade de Viena, passando à titularidade em 1919, cargo que ocupou até 1930. Kelsen foi um dos mais importantes contribuintes na elaboração da nova Constituição Austríaca, promulgada em 1920. Em 1930, foi removido da Corte Constitucional Austríaca, cargo que ocupava desde 1925.
Depois de haver aceitado, nesse mesmo ano, uma cátedra na Universidade de Colônia, na Alemanha, com a ascensão de Hitler ao poder e por ser judeu, teve que emigrar para Genebra (Suíça), passando, posteriormente, a Praga, novamente Genebra, depois Paris. Em 1940, a Universidade de Havana (Cuba) convidou-o para um breve curso. Em seguida, passou à Universidade de Harvard (EUA), que lhe ofereceu uma cátedra. Logo após, também como catedrático, passou à Universidade da Califórnia (Berkeley), onde permaneceu até a sua jubilação, em 1952.
Entre as obras mais significativas de Kelsen tem-se: O Problema da Justiça (1960), Justiça e Direito Natural (1959), Teoria Geral do Direito e do Estado (1945), Teoria Pura do Direito (1ª edição - 1934; 2ª edição - 1960) e Teoria Geral do Direito Internacional Público (1928).
3     Síntese das Principais Ideias [2]
PREFÁCIOS (p. XI-XVIII)
No prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, Kelsen, ao fazer referência ao conceito de pureza, assinala que tal noção retrata a sua intenção de elaborar uma teoria apartada de conteúdos ideológicos e políticos. Trata-se de abordar o direito a partir de sua dimensão normativa, pretendendo transformá-lo em ciência, com a maior objetividade possível, vale dizer, a partir de uma filosofia do método e dos conceitos fundamentais da ciência jurídica. Não é sem motivo que muitos dos seus críticos se opõem a esse ideal que torna destacável apenas um dos contornos de que se reveste o direito − a norma −, apartando-o dos seus conteúdos axiológicos e fáticos. Diz ele que:
Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é − asseguram muitos − aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta (p. XIII).
Segundo Kelsen, a depuração da ciência jurídica há de se realizar em duas direções: de um lado, frente à tendência ético-política, que estuda as normas jurídicas atentando para as finalidades concretas a que servem; por outro, frente à tendência sociológica, que circunscreve fatos às normas, explicações causais com preceitos.
Já no prefácio à segunda edição, redigido em Berkeley, Califórnia, em 1960, Kelsen afirma haver reelaborado alguns conceitos e questões, em relação à primeira edição de 1934. Nada obstante, persiste em conceber uma ciência jurídica livre de influências e imposições políticas, pelo que se opõe àqueles que “[...] creem poder definir um direito justo e, consequentemente, um critério de valor para o direito positivo” (p. XVIII).
I.      DIREITO E NATUREZA (p. 1-65)
Preliminarmente, Kelsen analisa o conceito de pureza, entendido como um pressuposto de uma concepção científica do direito, daquilo que é comum a toda normatividade jurídica, como parte de uma ciência jurídica mais universal. Para tanto, propõe-se a expurgar dessa ciência quaisquer elementos que lhe sejam estranhos, como os fatores políticos, ideológicos, éticos, sociológicos etc.
Kelsen concebe a realidade como um acontecimento no qual determinadas condutas, no tempo e no espaço, adquirem um significado jurídico. Nos atos humanos, produtos da razão, é necessário reconhecer tanto o sentido subjetivo, expressão de uma decisão interna, como o sentido externo ou objetivo, que se manifesta como conduta visível. Em ambas as ações há uma atribuição que pode ter ou não significado jurídico, ainda que apenas o direito seja capaz de explicá-lo. Kelsen observa, ademais, que um ato de conduta humana pode “[...] muito bem levar consigo uma autoexplicação jurídica, isto é, uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa” (p. 3).
O significado de um fato externo e natural, sujeito a leis de causalidade, pode ser distinto graças à norma, a funcionar como esquema de interpretação. “Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa” (p. 4). Kelsen exemplifica com um homicídio e uma sentença de morte. Fática e naturalmente parecem iguais. Não obstante, são distintos, porquanto o primeiro é um ato contrário ao direito e o segundo pode estar ajustado a um código penal e a um código de procedimentos penais.
O direito é o conhecimento de uma ordenação normativa: “Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira” (itálico do autor) (p. 5). “‘Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém” (p. 6).
A norma configura o sentido de uma conduta humana como conforme ou contrária ao direito, com fundamento na vontade do legislador e do sujeito de direitos e obrigações que deve acatá-la. O dualismo entre o ser e o dever-ser não implica que um esteja ao lado do outro sem relação, já que o processo legislativo é um conjunto de ações que estabelece um sentido:
Um dever-ser objetivo obriga, diz Kelsen, pois está fundado em uma norma válida do direito que, por sua vez, pressupõe uma norma fundante. A palavra validade designa a existência específica de uma norma. O autor insiste em que não se deve confundir a validade com a vontade, nem das pessoas nem do legislador, tampouco do Estado, porquanto esse ato com significado volitivo pode haver-se dissipado e a norma que o expressa ainda assim permanece. Por isso também é necessário distinguir a validade da eficácia: “Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que [...] não é eficaz em certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia [...] é a condição da sua vigência” (p. 12).
O autor observa que não coincidem, no âmbito temporal, a validade e a eficácia de uma norma jurídica: a norma jurídica adquire validade antes de ser eficaz, porém deixa de ser considerada como válida se, durante muito tempo, deixar de ser aplicada, ou que dá no mesmo, haja perdido a sua eficácia.
A validade da norma se manifesta no tempo e no espaço. No primeiro caso, a norma, em determinadas ocasiões, refere-se ao passado e, habitualmente, a um presente ou futuro; no segundo, ao território aplicável. Kelsen também assinala o domínio pessoal de validade, a enfatizar o comportamento da pessoa em relação à norma, no que diz respeito às suas qualidades. Finalmente: “Pode falar-se ainda de um domínio material de validade tendo em conta os diversos aspectos da conduta humana que são normados: aspecto econômico, religioso, político etc.” (negrito nosso) (p. 15-16).
A norma jurídica é uma regulação positiva ou negativa, segundo imponha limites ou proíba algumas condutas, o que implica obrigar, facultar ou permitir, segundo cada caso. De modo similar, também está relacionada ao valor: “Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo. É a realidade que se avalia” (negritos nossos) (p. 19).
As normas, por sua vez, são boas ou, quando defeituosas, más. Trata-se, para Kelsen, de juízos de valor que se referem aos valores expressos e não ao juízo como função do conhecimento: “Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante” (p. 22).
Passa-se, agora, a examinar a relação entre ordem normativa e a ordem social que a estabelece, premiando ou estimulando condutas ou desalentando e castigando outras. Para Kelsen, parece duvidoso que existam sociedades − ou como ele denomina “ordens sociais” − sem sanções: “Quem desaprova a conduta prescrita, ou aprova a conduta oposta, comporta-se imoralmente e deve ser, ele próprio, moralmente reprovado” (p. 29).
Há que se distinguir entre sanções transcendentes, em particular, de sistemas religiosos, e sanções socialmente imanentes, quando impostas pelo grupo humano, tais como as jurídicas. Para Kelsen, o direito estabelece ordem na conduta humana, inclusive de maneira coativa, isto é, a uma conduta indevida impõe-se uma sanção, ainda que contra a vontade de seu autor. A ordem que impõe o direito, até chegar à coerção ou o uso da força para subjugar uma vontade rebelde e contrária à norma válida, fundamenta-se em normas processuais específicas geradas pela comunidade jurídica, que detém o monopólio da ação.
O direito não tem por fim a coerção, mas apenas em casos extremos e bem mais por exceção, já que a ordem jurídica aspira a uma sociedade coletiva sob os auspícios da paz, ainda que relativa, já que não é infrequente a violação da norma válida. Em função disso, diz Kelsen: “O direito é uma ordem de coerção e, como ordem de coerção, é – conforme o seu grau de evolução – uma ordem de segurança, quer dizer, uma ordem de paz” (p. 41).
Os atos de coerção não devem vulnerar as normas jurídicas e os valores que as acompanham. O direito, tendo que garantir um mínimo de liberdade, deve especificar quais condutas devem ser sancionadas, deixando um vasto campo de ações reservadas e protegidas como esfera de liberdade. A fronteira entre o jurídico, a liberdade e a conduta ilícita nem sempre é fácil de se fixar e menos ainda de se proteger. Ainda assim, o império do direito há de ser forte o suficiente para fazer frente ao que Kelsen chama por bando de salteadores, assegurando, desse modo, a paz.
Kelsen entende, por fim, que pode haver obrigações jurídicas sem sanção ou normas jurídicas não autônomas, isto é, que no primeiro caso o desconhecimento ou o não-cumprimento não acarretam punição ou coerção; e no segundo, ao cumprir-se a norma, viola-se outra mais importante. No entanto, o autor acredita que isso não nega a natureza coercitiva do direito. A razão é que nada mais são do que normas, “[...] pois apenas têm validade em ligação com uma norma estatuidora de um ato de coerção” (p. 64).
(Fim da Parte I)
Leia aqui a Parte II.

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