Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Carlos Drummond de Andrade - Interpretação de Dezembro

Início de dezembro, mês de balanços, quer daqueles mais comezinhos, como os de nossas dívidas ou investimentos, mas também de nossas conquistas, venturas, felicidades. Ou mesmo de seus contrários. O que mudar, lastimar, recordar ou esquecer?

O poema em destaque, extraído daquele que considero um dos mais representativos livros de poesia de Drummond, "A Rosa do Povo", consegue capturar o ambiente fantasioso, físico e mental, de uma criança, mas já na percepção de um homem adulto feito poeta. Uma criança que persiste no adulto, um infante a rememorar-lhe o mito incrustado na história do Natal.

Juntamente ao belo poema do poeta mineiro, posto abaixo um pequeno vídeo, em que o solista Lluis Travesset, da Escolania de Montserrat, na Catalunha, Espanha, interpreta a composição "Vater Unser" (Pai Nosso), do célebre músico estoniano Arvo Pärt. Que voz! Que puro deleite, a preencher um momento apenas, mas pleno de eternidade!



INTERPRETAÇÃO DE DEZEMBRO

É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.

O cheiro do fogão
vário a cada panela.
São pés caminhando
na neve, no sertão
ou na imaginação.

A boneca partida
antes de brincada,
também uma roda
rodando no jardim,
e o trem de ferro
passando sobre mim
tão leve: não me esmaga,
antes me recorda.

É a carta escrita
com letras difíceis,
posta num correio
sem selo e censura.

A janela aberta
onde se debruçam
olhos caminhantes,
olhos que te pedem
e não sabes dar.

O velho dormindo
na cadeira imprópria.
O jornal rasgado.
O cão farejando.
A barata andando.
O bolo cheirando.
O vento soprando.
E o relógio inerte.

O cântico de missa
mais do que abafado,
uma rua branca
o vestido branco
revoando ao frio.
O doce escondido,
o livro proibido,
o banho frustrado,
o sonho do baile
sobre chão de água
ou aquela viagem
ao sem-fim do tempo
lá onde não chega
a lei dos mais velhos.

É o isolamento
em frente às castanhas,
a zona de pasmo
na bola de som,
a mancha de vinho
na toalha bêbeda,
desgosto de quinhentas
bocas engolindo
falsos caramelos
ainda orvalhados
do pranto das ruas.

A cabana oca
na terra sem música.
O silêncio interessado
no país das formigas.
Sono de lagartos
que não ouvem o sino.
Conversa de peixes
sobre coisas líquidas.
São casos de aranha
em luta com mosquitos.
Manchas na madeira
cortada e apodrecida.
Usura da pedra
em lento solilóquio.
A mina de mica
e esse caramujo.
A noite natural
e não encantada.

Algo irredutível
ao sopro das lendas
mas incorporado
ao coração do mito.

É o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.

Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 44. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 131-134.

J.A.R. – H.C.

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