Início de
dezembro, mês de balanços, quer daqueles mais comezinhos, como os de nossas dívidas ou investimentos, mas também de nossas conquistas, venturas, felicidades. Ou mesmo de seus contrários. O que mudar, lastimar, recordar ou esquecer?
O poema em destaque, extraído daquele que considero um dos mais representativos livros de poesia de Drummond, "A Rosa do Povo", consegue capturar o ambiente fantasioso, físico e mental, de uma criança, mas já na percepção de um homem adulto feito poeta. Uma criança que persiste no adulto, um infante a rememorar-lhe o mito incrustado na história do Natal.
Juntamente ao belo poema do poeta mineiro, posto abaixo um pequeno vídeo, em que o solista Lluis Travesset, da Escolania de Montserrat, na Catalunha, Espanha, interpreta a composição "Vater Unser" (Pai Nosso), do célebre músico estoniano Arvo Pärt. Que voz! Que puro deleite, a preencher um momento apenas, mas pleno de eternidade!
Juntamente ao belo poema do poeta mineiro, posto abaixo um pequeno vídeo, em que o solista Lluis Travesset, da Escolania de Montserrat, na Catalunha, Espanha, interpreta a composição "Vater Unser" (Pai Nosso), do célebre músico estoniano Arvo Pärt. Que voz! Que puro deleite, a preencher um momento apenas, mas pleno de eternidade!
INTERPRETAÇÃO DE DEZEMBRO
É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.
O cheiro do fogão
vário a cada panela.
São pés caminhando
na neve, no sertão
ou na imaginação.
A boneca partida
antes de brincada,
também uma roda
rodando no jardim,
e o trem de ferro
passando sobre mim
tão leve: não me esmaga,
antes me recorda.
É a carta escrita
com letras difíceis,
posta num correio
sem selo e censura.
A janela aberta
onde se debruçam
olhos caminhantes,
olhos que te pedem
e não sabes dar.
O velho dormindo
na cadeira imprópria.
O jornal rasgado.
O cão farejando.
A barata andando.
O bolo cheirando.
O vento soprando.
E o relógio inerte.
O cântico de missa
mais do que abafado,
uma rua branca
o vestido branco
revoando ao frio.
O doce escondido,
o livro proibido,
o banho frustrado,
o sonho do baile
sobre chão de água
ou aquela viagem
ao sem-fim do tempo
lá onde não chega
a lei dos mais velhos.
É o isolamento
em frente às castanhas,
a zona de pasmo
na bola de som,
a mancha de vinho
na toalha bêbeda,
desgosto de quinhentas
bocas engolindo
falsos caramelos
ainda orvalhados
do pranto das ruas.
A cabana oca
na terra sem música.
O silêncio interessado
no país das formigas.
Sono de lagartos
que não ouvem o sino.
Conversa de peixes
sobre coisas líquidas.
São casos de aranha
em luta com mosquitos.
Manchas na madeira
cortada e apodrecida.
Usura da pedra
em lento solilóquio.
A mina de mica
e esse caramujo.
A noite natural
e não encantada.
Algo irredutível
ao sopro das lendas
mas incorporado
ao coração do mito.
É o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A
rosa do povo. 44. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 131-134.
J.A.R. – H.C.
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