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DICKENS, Charles. Conto de Natal. Adaptação de Isabel Vieira. São Paulo: Rideel, 2003. (Coleção Aventuras Grandiosas)
O
espírito do Natal futuro
O fantasma aproximou-se silenciosamente. O ar que ele atravessava
ia deixando a escuridão mais lúgubre. Sem saber por que, Scrooge ajoelhou.
O espírito estava envolvido num manto negro, que lhe ocultava a
cabeça, as faces e o corpo, deixando ver apenas um braço estendido. Era alto e
não falava nem se movia, enchendo Scrooge de misterioso terror.
– Estou na presença do espírito do Natal futuro? – perguntou.
O espectro não respondeu. Apenas apontou-lhe o caminho com o
dedo.
– Vem me mostrar coisas que ainda não aconteceram, mas que hão de
se dar no tempo que virá, não é verdade, espírito? – Scrooge continuou.
A parte superior da túnica se contraiu. Essa foi sua resposta.
Embora já estivesse habituado a fantasmas, Scrooge sentia tanto
pavor do silêncio deste que as pernas tremiam e ele não era capaz de caminhar.
O espírito percebeu e lhe deu tempo para recuperar as forças.
– Espectro do futuro! – exclamou. – Temo-o mais que aos outros
que vieram, mas, como sei que seu propósito é fazer-me bem, e como espero me
tornar um homem diferente, estou pronto para viajar em sua companhia com a
maior satisfação.
Não me responde?
Como única resposta, a mão continuou apontando firmemente.
– Vamos, então! A noite não espera e o tempo é precioso para mim!
Scrooge seguiu a sombra. Não sabia dizer se caminhavam para a
cidade ou se, ao contrário, era a cidade que vinha se expor à sua observação.
Notou que estavam na Bolsa de Valores, entre negociantes que
andavam de um lado a outro apressadamente, fazendo tilintar o dinheiro no bolso,
conversando em grupos e balançando as correntes de ouro, como Scrooge os vira
tantas vezes.
O espírito parou junto de um grupo e apontou. Scrooge ouviu-os
dizer:
– Não sei de nada. Sei apenas que morreu – falou um homem gordo.
– Quando? – perguntou outro.
– A noite passada.
– Morreu! – disse um terceiro. – Pensei que esse homem fosse
eterno!
– Que fez ele do dinheiro? – perguntou outro, de nariz grande.
– Não sei. Com certeza não o deixou para mim! – respondeu o
gordo.
A pilhéria foi acolhida com uma gargalhada geral.
– O funeral não há de ser caro – tornou o mesmo. – E se fôssemos
lá a passeio, mesmo sem convite?
– Eu só iria se houvesse um bom almoço. Sem almoço, não vou.
Outra gargalhada seguiu-se à nova brincadeira. O grupo
dispersou-se e Scrooge, que conhecia todos os presentes, olhou para o espírito
como a pedir uma explicação. O fantasma dirigiu-se para outra rua e apontou
dois homens que conversavam. Scrooge julgou que fosse ter a explicação que
queria.
– Como vai? – dizia um deles.
– Bem, obrigado. Então o velho morcego liquidou a conta para
sempre?
– É o que dizem. Que frio, não é?
– Sempre faz frio no tempo de Natal.
Scrooge admirou-se de que o espírito desse atenção a conversas triviais
como aquela, mas, refletindo melhor, achou que devia existir uma razão oculta
para isso. Qual seria? Não era provável que os homens se referissem à morte de
Jacob Marley, seu sócio, pois isso fazia parte do passado, e o espírito só se
ocupava de coisas futuras. Também lhe pareceu não haver relação entre o que
ouvira e sua própria pessoa. Mas, convencido de que receberia alguma lição para
seu aproveitamento, pôs-se a observar as cenas com cuidado.
Procurou a imagem de si mesmo na Bolsa de Valores, mas viu outro homem
no lugar que habitualmente ocupava. Não se admirou muito, pois, como fantasiava
levar uma nova vida no futuro, talvez sua ausência fosse resultado desse
projeto. Impassível e negro, o espectro mantinha-se a seu lado, apontando.
Parecia que seus olhos invisíveis fitavam Scrooge. Ele estremeceu.
Deixaram aquele cenário e foram a uma parte da cidade onde Scrooge
nunca havia estado. As ruas eram estreitas e sujas; as casas e lojas, miseráveis;
as pessoas, maltrapilhas. Becos e travessas pareciam cloacas, exalando terrível
mau cheiro. Pararam na frente de uma loja de artigos usados. Entre trapos,
garrafas, peças de ferro velho, ossos e sebo de animais, havia um velho de uns
setenta anos, cabelos grisalhos, mal encarado, que se abrigava do frio atrás de
uma cortina esfarrapada e tirava baforadas do seu cachimbo.
Scrooge e o espírito chegaram ali no momento em que duas mulheres
se aproximavam, carregando cada qual uma trouxa. Um homem vestido de preto, com
um pacote na mão, chegou em seguida. Os três ficaram surpresos por se
encontrarem no mesmo lugar e desataram a rir com a coincidência.
– A primeira a ser atendida serei eu, a jornaleira – disse uma
mulher. – Em seguida, a lavadeira; e o agente funerário, por último. Venha
aqui, velho Joe, venha ver a pechincha que eu lhe trouxe!
O dono do estabelecimento fez os três entrarem numa sala imunda.
A jornaleira jogou sua trouxa no chão e lançou aos outros um
olhar desconfiado.
– Por que esse espanto, Sra. Dilbert? – disse à outra, com maus
modos.
– Temos o direito de cuidar do que é nosso! Não foi o que “ele”
fez em vida?
– É verdade – concordou a lavadeira. – Sei disso melhor que
ninguém.
– Decerto – completou o homem de roupa preta.
– Quem sentiria falta destas tralhas? Não o morto, certamente –
tornou a jornaleira. – Se tivesse sido mais generoso, teria quem lhe fechasse os
olhos em vez de se debater só, até o último suspiro. Vamos, Joe, abra a trouxa
e diga quanto me pagará por estas bugigangas…
Mas o homem de roupa preta passou na frente das duas e exibiu sua
pilhagem, que não era grande: carimbos, lapiseiras, abotoaduras e um alfinete de
pouco valor. Joe avaliou cada peça e somou os valores na parede, com giz.
– Aqui está sua conta. A outro eu não daria tanto. Quem é o
seguinte?
A jornaleira trouxera toalhas, lençóis, roupas e talheres de
prata antigos.
– Dou sempre muito às mulheres. É uma fraqueza minha – gabou-se o
velho Joe. – Vamos, pegue logo o dinheiro antes que eu mude de ideia.
Chegou a vez da lavadeira, a Sra. Dilbert. Joe desatou a trouxa.
– Que é isto? Cortinas de cama?
– Sim – respondeu ela, rindo.
– E você as tirou com argolas e tudo, estando ele lá dentro?
– Decerto. Por que não? Quando posso pegar alguma coisa, não penso
duas vezes. Cuidado, Joe, não vá derramar azeite nos cobertores.
– Os cobertores dele?
– Com certeza ele não sente mais frio – disse a Sra. Dilbert.
– Não teria morrido de alguma doença contagiosa? – riu o velho
Joe.
– Sei lá! Que me importa! Veja esta camisa, a melhor que ele
tinha.
Por sorte cheguei primeiro e impedi que a vestissem no defunto.
Scrooge ouvia, horrorizado. Iluminados pela fraca luz do
candeeiro, os quatro inspiravam-lhe repugnância, como se estivessem violando um
cadáver.
– Teve um fim merecido – completou a Sra. Dilbert. – Metia tanto medo
nas pessoas e agora, depois de morto, nos dá lucro! Ah! Ah! Ah!
– Espírito! – Scrooge tremia convulsivamente. – Agora compreendo.
O caso desse infeliz poderia ser o meu. Corro o risco de acabar
do mesmo jeito…
Nessa hora a cena mudou e Scrooge recuou, espavorido. Estavam diante
de um leito nu, sem cortinas, no qual se divisava o corpo inerte e abandonado
de um homem, sem ninguém que o chorasse. O espectro apontava a cabeça do morto,
mas Scrooge não ousou olhar para ela.
– Espírito, que lugar horrível este! Leve-me daqui!
O fantasma, imperturbável, continuava apontando o cadáver.
– Não posso olhá-lo! Não posso! – gritou Scrooge. Depois, com enorme
comoção, completou: – Se existe alguma pessoa que tenha sentido esta morte, por
favor, mostre-a, espírito!
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J.A.R. - H.C.
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