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DICKENS, Charles. Conto de
Natal. Adaptação de Isabel Vieira. São Paulo: Rideel, 2003. (Coleção Aventuras Grandiosas)
O
espírito do Natal passado
Quando Scrooge acordou, a escuridão não lhe permitia ver a
janela. O sino da igreja bateu três quartos de hora. Ele esperou um pouco e
ouviu o sino bater uma, duas, três badaladas, até completar doze.
– Doze? Passava das duas quando deitei. Não é possível que eu tenha
dormido o resto da noite e o dia todo até esta hora. Só pode ser meio-dia. Será
que aconteceu alguma coisa ao sol?
Scrooge limpou o vidro com a manga do roupão e constatou que lá
fora era noite cerrada e que o frio continuava intenso. Voltou para a cama, mas
não conseguiu dormir. O espectro de Marley o atormentava. Pensava: “Foi sonho
ou não?” O tempo foi passando e o relógio da igreja voltou a bater:
– “Dim, dom!”
– Um quarto para a uma – disse Scrooge.
– “Dim, dom!”
– É a hora – exclamou triunfalmente –, e nada!
Então o quarto iluminou-se e as cortinas do leito foram puxadas –
eu lhe garanto, leitor, por uma mão invisível. Scrooge, meio erguido,
encontrou-se face a face com o visitante sobrenatural. Estranha figura! Fazia
lembrar uma criança, mas parecia um velho. O cabelo branco caía-lhe pelas
costas, mas as faces não tinham rugas e a pele resplandecia com o frescor da
mocidade. Seus braços eram fortes.
Vestia uma alvíssima túnica, apertada na cintura por um cinto
luminoso. Trazia nas mãos um ramo de azevinho, símbolo do inverno, mas a túnica
era adornada com flores de verão. O mais estranho é que do alto de sua cabeça
brotava um facho de luz brilhante, que ele poderia apagar, caso quisesse, com
um chapéu em forma de capacete, que levava debaixo do braço.
– Você é o espírito cuja visita me foi anunciada? – perguntou
Scrooge.
– Sou! – respondeu, com voz meiga e agradável.
– Mas quem é você e de onde vem? – inquiriu Scrooge.
– Sou o espírito do Natal passado – explicou a aparição. E,
estendendo a mão hercúlea e segurando-o brandamente pelo braço, acrescentou:
– Erga-se e acompanhe-me!
Em vão Scrooge alegou que não era hora de sair, a cama estava
quente e o termômetro lá fora marcava muitos graus abaixo de zero, e que, além
disso, ele estava com gripe. Com firmeza, o espírito o conduziu em direção à
janela.
– Sou um simples mortal e sujeito a cair! – implorou Scrooge.
– Basta que minha mão o toque aqui – e o espírito tocou no
coração de
Scrooge – para que você nada tenha a recear.
Mal a aparição pronunciou essas palavras, os dois passaram
através da parede e acharam-se numa estrada rural, ladeada por campos. Não se
percebia vestígio algum da cidade. O nevoeiro tinha desaparecido e dado lugar a
um dia de inverno, luminoso e frio, vendo-se a terra coberta de neve.
– Meu Deus! – disse Scrooge, torcendo as mãos. – É o lugar onde
me criei.
Foi aqui que passei a infância!
O espírito contemplou-o com ternura. O ambiente continha mil
aromas, que traziam à memória de Scrooge esperanças, alegrias e cuidados
esquecidos havia muitos anos.
– Seus lábios estão tremendo – reparou o espírito. – O que é
isso? O que você tem no rosto?
Scrooge, querendo dissimular as lágrimas, respondeu que era uma
verruga e disse ao espírito para levá-lo aonde quisesse.
– Lembra-se do caminho? – perguntou o espírito.
– Se me lembro! Seria capaz de percorrê-lo de olhos vendados.
Os dois prosseguiram pela estrada, onde Scrooge ia reconhecendo
cada árvore, cada porta. Avistaram uma cidadezinha, com sua ponte, o campanário
e o rio, serpenteando entre prados. Na direção deles vinham rapazes montados em
lindos cavalos, acenando alegremente para os camponeses ao redor.
– São apenas sombras de coisas passadas – disse o espírito. – Nós
as vemos, mas elas não podem nos ver.
À medida que se aproximavam, Scrooge ia dizendo seus nomes. Por
que sentia tão grande alegria ao vê-los? Por que lhe causava tanto prazer
ouvi-los gritar uns aos outros “Feliz Natal”, quando chegavam às suas casas?
– A escola não está deserta – disse o fantasma. – Vejo lá uma
criança solitária, esquecida pelos amigos.
Deixaram a estrada e tomaram o caminho que levava a uma
construção de tijolos vermelhos, com um galo no telhado para indicar a direção do
vento. Era um lugar pobre, as paredes úmidas e cobertas de musgo, as portas
caídas e despedaçadas. Os dois entraram numa sala de aula decadente e
melancólica, com carteiras e bancos de pinho. Sentado numa delas, lendo um
livro, havia um rapaz. Reconhecendo-se nele, Scrooge apoiou-se a uma carteira e
chorou.
O espírito tocou-lhe o braço e apontou a criança atenta à leitura
que ele fora havia muitos anos. Nisso parou à janela um homem usando um traje
esquisito, com um machado na cintura e conduzindo um burro.
– É Ali Babá! – exclamou Scrooge, extasiado. – É o meu querido
Ali Babá!
Conheço-o bem! Há muitos anos, num dia de Natal, quando aquela
criança esquecida estava aqui sozinha, ele apareceu pela primeira vez!
E pôs-se a falar com entusiasmo das histórias que lia na
infância, com uma excitação que teria surpreendido seus colegas da Bolsa de
Valores.
– Lá está o papagaio! O corpo verde, a cauda amarela e o penacho!
É o mesmo que disse “Pobre Robinson Crusoé”, quando o marujo regressou de sua viagem
à volta da ilha. Robinson julgou sonhar quando o ouviu. Veja, e lá vai sexta-feira,
correndo para o rio! Coragem, amigo!
Depois, numa rápida transição, Scrooge disse, com ar de piedade
pela sua primitiva condição: “Pobre rapaz era eu”, e tornou a chorar.
– Eu queria… – balbuciou Scrooge, metendo a mão no bolso ao mesmo
tempo em que enxugava as lágrimas. – Mas é tarde demais…
– Tarde demais para quê? – perguntou o espírito.
– Ontem à noite um pobre rapaz cantou uma canção de Natal à minha
porta.
Tenho pena de não lhe ter dado uma moeda… É só isso…
O espírito sorriu pensativamente e disse:
– Vamos ver outro Natal!
A essas palavras, a criança cresceu, e o ambiente mudou. O jovem estava
agora no quarto de um internato, olhando com angústia a porta por onde todos os
colegas, menos ele, haviam saído para as férias. Não tardou a entrar por ela
uma garota baixinha, um pouco mais nova, que o abraçou com meiguice:
– Vim levá-lo para casa, querido irmão!
– Para a nossa casa?
– Sim! – disse a menina, radiante. – Papai mudou muito. Tanto que
me animei a pedir-lhe que deixasse você voltar para casa. Para sempre! Vamos
ter o melhor Natal de todos, agora que estamos juntos. Você cresceu, irmão!
– E você está uma moça, quase uma mulher!
Uma voz terrível gritou no vestíbulo:
– Tragam a mala do Sr. Scrooge!
O olhar feroz do mestre-escola fez Scrooge gelar. Os irmãos
recusaram o bolo duro e o vinho ordinário que ele ofereceu e embarcaram no
veículo, que partiu em rápida carreira pelos campos, cobertos de neve.
– Essa pequena criatura tinha um grande coração – disse o
espírito.
– Tinha, tinha! É verdade! – concordou Scrooge, emocionado.
– Creio que morreu já adulta e deixou filhos.
– Sim, deixou um – disse Scrooge.
– Seu sobrinho… – lembrou o espírito.
Incomodado pelo espinho do remorso, Scrooge apenas respondeu:
– É.
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