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DICKENS, Charles. Conto de Natal. Adaptação de Isabel Vieira. São Paulo: Rideel, 2003. (Coleção Aventuras Grandiosas)
Lembranças
da juventude
No instante seguinte Scrooge e o espírito já estavam em outro
cenário. Desta vez, uma grande cidade, com pedestres disputando as ruas
apressados, como se estivessem num campo de batalha. A ornamentação das lojas,
cheias de luzes, mostrava que também era Natal.
O espírito parou à porta de uma casa de comércio e perguntou se
Scrooge a conhecia.
– Claro! Foi aqui que comecei o meu aprendizado.
Entraram. Sentado numa cadeira altíssima, havia um senhor
distinto.
– Oh, o velho e abençoado Fezziwig! – exclamou Scrooge, contente.
O chefe pousou a pena sobre a mesa e olhou o relógio. Eram quase
sete horas da noite. Esfregou as mãos, feliz da vida, e chamou com voz alegre:
– Ebenezer! Dick! Venham cá, rapazes! Hoje não se trabalha mais,
vocês estão de folga. É noite de Natal! Vamos fazer uma festa!
Scrooge, então jovem, apareceu seguido pelo companheiro.
– É Dick Wilkins! – disse ao espectro, entusiasmado. – Éramos
muito amigos, ele e eu…
Os dois jovens não esperaram o patrão repetir a ordem. Fecharam a
loja e puseram-se a arrumar o recinto para a festa, transformando o armazém no
mais belo salão de baile. O chão foi varrido, os candeeiros arranjados, o
fogão, aceso. Não tardaram a aparecer os convidados. Primeiro chegou um músico,
depois a bondosa esposa de Fezziwig, suas três lindas filhas, os empregados da
loja e suas famílias, mesmo os mais humildes, e até o caixa da loja vizinha,
que todos sabiam que passava fome.
Houve danças, jogos, bolos, licores, cerveja, fartura de pastéis
e carne assada.
Envergonhados no início, os empregados foram perdendo a timidez.
Os pares dançavam, animados. O ponto alto da noite foi quando Fezziwig puxou a
esposa para o salão e rodopiaram até cansar. Ao final do baile, o casal
permaneceu na porta, cumprimentando e desejando Boas-Festas aos convivas.
Enquanto o baile transcorria, Scrooge chegou a esquecer da
presença do espírito.
Sentia-se transportado à juventude, lembrando-se de cada detalhe.
Só quando as faces afogueadas de Dick e do Scrooge de outros tempos sumiram,
ele pôde ouvir as palavras que o espectro lhe dirigia:
– Custa pouco, afinal, alegrar essa gente, não é?
– Bem pouco, é verdade –
concordou Scrooge.
– Ouça como os dois aprendizes elogiam a generosidade do patrão.
Scrooge reparou no que diziam e se entusiasmou.
– Sim, espírito, com umas poucas libras se pode fazer a
felicidade de alguém!
O dinheiro pode tornar nossa existência leve ou pesada, um prazer
ou uma tortura. E palavras e gestos agradáveis, que não custam nada,
significam, para quem os recebe, uma alegria que fortuna nenhuma poderá
comprar!
– Alguma coisa o preocupa… – percebeu o espírito.
– Nada… nada! – disse Scrooge. – Gostaria de dizer umas palavras
ao meu empregado… é só isso.
– O meu tempo se aproxima do fim – disse o espírito, como se
falasse consigo mesmo. – Vamos depressa!
Imediatamente outro Scrooge tornou a aparecer, dessa vez, homem
feito.
Sua fisionomia ainda não era tão severa como a dos últimos
tempos, mas já mostrava claros sinais de avareza. Ele não estava só. A seu lado
via-se uma moça vestida de luto, com o rosto coberto de lágrimas.
– Outro ídolo me substituiu no seu coração – ela dizia.
– Que ídolo é esse? – perguntou ele.
– O dinheiro.
– Ora, não há nada mais terrível que a pobreza! Por que todo o
mundo julga condenável a vontade de acumular dinheiro?
– Você mudou, não é mais o mesmo. Só pensa no lucro, perdeu suas
mais nobres aspirações…
– Mas não mudei a seu respeito. Continuo gostando de você.
– Mudou a forma de pensar, a consciência. Quando nos conhecemos,
éramos pobres, mas felizes. Tínhamos esperança de melhorar pelo trabalho em
comum.
Nosso vínculo se afrouxou. Você me trata com frieza e
indiferença.
Scrooge a ouvia com visível impaciência. Ela continuou.
– Se fosse cortejar alguém hoje, escolheria uma moça pobre? Tenho
certeza de que não. Por isso eu lhe restituo a liberdade. Sinto despedaçar-me o
coração do qual você era senhor absoluto, mas será melhor para os dois.
– Espírito! – disse Scrooge. – Não me mostre mais nada! Por que
me tortura assim? Leve-me para casa e deixe-me em paz.
– Só mais uma sombra – respondeu o espírito.
– Não! Por piedade, não!
Mas o infatigável espectro agarrou-o e o obrigou a observar outra
cena.
Num ambiente confortável, porém sem luxo, ao pé de um bom fogo,
estava sentada uma jovem tão parecida com a que acabavam de ver que Scrooge
pensou que fosse a mesma. Olhando melhor, descobriu que ela também estava ali,
mais velha, defronte da filha. Outras crianças brincavam na sala junto das duas
mulheres, enchendo a sala com risadas e traquinagens.
Scrooge redobrou a atenção quando viu o dono da casa pegar um dos
filhos no colo e sentar-se à lareira ao lado da esposa. Pensou que aquele lindo
menino poderia tê-lo chamado de pai. Seria como um raio dourado de sol no
inverno de sua vida. A vista de Scrooge se perturbou.
– Belle – disse o marido. – Vi hoje alguém que você conheceu.
– Quem era?
– Adivinhe.
– Como posso adivinhar? O Sr. Scrooge, talvez?
– Ele mesmo. Estava no escritório, fazendo contas. Passei na
frente e vi a janela aberta. Soube que o sócio dele está à morte e o deixará só
no mundo.
Scrooge não aguentou mais e disse com a voz sumida:
– Leve-me daqui, espírito! Não posso suportar o que vejo!
– Já lhe disse que estas sombras são de coisas passadas…
Scrooge notou que a luz que brotava da cabeça do espectro se
tornava maior e mais brilhante. Perturbado, tomou o chapéu em forma de capacete
e comprimiu- o com toda força sobre a cabeça dele. Mesmo assim não conseguiu
extinguir o clarão debaixo do apagador, que iluminava tudo ao redor.
Scrooge sentiu uma grande fadiga, deu mais uma pancada no
capacete e mal teve tempo de se meter na cama antes de adormecer profundamente.
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