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DICKENS, Charles. Conto de Natal. Adaptação de Isabel Vieira. São Paulo: Rideel, 2003. (Coleção Aventuras Grandiosas)
Capítulo
5 (Págs. 14–16)
O espírito
do Natal presente
Scrooge despertou de um sono profundo e sentou-se na cama para
pôr as ideias em ordem. O relógio ia bater uma hora. Notou que havia acordado
no momento exato em que deveria chegar o segundo espírito enviado por Marley.
Julgava-se preparado para tudo, mas não estava preparado para
nada. Quando o relógio deu uma hora e nenhum espectro apareceu, foi sacudido
por um violento tremor. Cinco minutos, dez, quinze se passaram, e nada! Scrooge
continuou na cama, iluminado por um feixe de luz que incidira sobre ele e que o
apavorava mais que uma dúzia de fantasmas. Afinal, percebeu que a luz vinha do
quarto ao lado. Levantou, calçou os chinelos e dirigiu-se para a porta.
Ao colocar a mão na fechadura, Scrooge ouviu uma voz chamá-lo
pelo nome e lhe ordenar que entrasse. Ele obedeceu.
O quarto estava irreconhecível, com as paredes e o teto
totalmente forrados de folhagens verdes, semelhantes a um bosque. Folhas de
azevinho e hera refletiam de tal forma a luz, que parecia haver ali uma
infinidade de espelhos. Uma linda labareda subia pela chaminé. No chão, viam-se
perus, patos, galinhas, leitões, pastéis, bolos, castanhas assadas, maçãs,
peras e taças de vinho espumante.
Ao lado estava sentado um risonho gigante, segurando um archote
aceso, como se ele fosse a cornucópia da abundância.
– Entre e me examine bem, homem! – disse o espírito.
Scrooge entrou timidamente e evitou encará-lo.
– Sou o espírito do Natal presente – disse o espectro. – Olhe
para mim!
A criatura vestia um roupão guarnecido com arminhos, meio aberto no
peito. Os pés estavam descalços. Na cabeça, em vez de chapéu, usava uma coroa
de ramos de azevinho presa por pingentes de gelo. Seus caracóis negros caíam
livremente, deixando a descoberto a expressão cordial dos olhos. A voz meiga e
a mão aberta inspiravam franqueza e liberdade.
– Nunca viu ninguém parecido comigo? – perguntou o espírito.
– Nunca.
– Não conheceu meus irmãos mais velhos?
– Creio que não – disse Scrooge.
– Você tem muitos irmãos?
– Mais de mil e novecentos…
– Uma família numerosíssima para sustentar… – balbuciou Scrooge.
O espectro do Natal presente se levantou.
– Espírito! – disse Scrooge com submissão. – Leve-me aonde
quiser. Na noite passada recebi uma grande lição. Ensine-me o que preciso
aprender.
– Toque no meu manto!
Scrooge fez o que ele mandava. Heras, folhagens, perus, gansos,
patos, galinhas, pastéis, vinho espumante, tudo desapareceu instantaneamente,
assim como a lareira, e eles se acharam nas ruas da cidade na manhã do dia de
Natal, onde o povo produzia uma espécie de música agradável ao quebrar o gelo
que obstruía as portas das casas. A cor escura das fachadas dos prédios
contrastava com a alvura da neve que cobria os telhados. Nada havia naquele céu
sombrio que pudesse causar alegria. No entanto, todos pareciam felizes e
contentes.
Crianças riam jogando bolas de neve umas nas outras. As lojas de
aves e frutarias ostentavam esplêndidas riquezas: enormes cestos de castanhas,
cebolas douradas e redondas, pirâmides de peras e maçãs, lindos cachos de uvas.
E as mercearias, então! Tinham as vitrinas apenas entreabertas, mas o
suficiente para ver o que acontecia lá dentro. Não era só o tilintar das
balanças pesando mercadorias, nem a rapidez com que os embrulhos eram feitos,
nem o delicioso aroma do chá e do café, nem a alvura das amêndoas, nem as
frutas secas, polvilhadas de açúcar, que desafiavam o apetite até dos menos
gulosos, nem muitas outras coisas enfeitadas para o Natal e boas para comer;
não era só isso. Era também a alegria dos fregueses, que se esbarravam na
entrada, e se esqueciam das compras para conversar, enquanto os empregados
corriam de um lado a outro, atendendo a todos com paciência e satisfação.
Os sinos tocaram, chamando o povo para a igreja. Grupos com as
mais belas roupas surgiam nas ruas. Nas vielas e becos, viam-se pobres levando
seu farnel para assar no forno das padarias. Estes pareciam interessar demais o
espírito, pois, conforme passavam, ele os aspergia com o incenso do archote.
Extraordinário archote era esse! Scrooge observou que nas raras
vezes em que os pobres trocavam palavras ásperas, bastou o espírito lançar
algumas gotas de incenso para entenderem que não se devia discutir no dia de
Natal.
– Há algum sabor particular nessas gotas? – perguntou Scrooge.
– Há, é o meu sabor.
– Pode-se aplicá-lo em qualquer mesa de jantar no dia de hoje?
– Sim, em qualquer mesa em que reine a cordialidade, mas
especialmente na dos pobres.
– Por que na dos pobres?
– Porque são os pobres que mais precisam dele.
Depois os sinos cessaram, as padarias se fecharam, e o espírito
carregou Scrooge, sempre agarrado ao seu manto, a uma humilde casinha no
subúrbio. Parou na entrada e a aspergiu com o archote, abençoando a morada onde
Bob Gratchit, o empregado de Scrooge, vivia com a família.
A esposa de Bob, usando um vestido modesto, mas gracioso,
arrumava a mesa, ajudada pela filha Belinda. Peter, o rapaz mais velho, metido
em roupas do pai, mergulhava o garfo no tacho das batatas, enquanto os dois
menores, um garoto e uma menina, corriam dizendo que a padaria cheirava muito
bem e que o pato que estava assando só poderia ser o deles.
– E Marta que não chega! – disse a mãe. – E seu pai? E Tim?
Logo Marta, a filha mais velha, chegou do serviço. Em seguida,
entrou Bob Gratchit com o pequeno Tim nos ombros, segurando suas muletas e com
o aparelho de ferro nas perninhas. Depois de muitos beijos e abraços, puseram
Tim sentado junto à lareira. Bob preparou licores e Peter e os irmãos menores
foram buscar o pato, voltando com ele em triunfo.
Nunca se vira um pato como aquele! Sentados à mesa, todos
elogiaram a brancura da carne e o tamanho do assado, saboreando-o com enorme
prazer. As exclamações de alegria redobraram quando a mãe tirou do forno o bolo
de Natal.
Depois da refeição, limparam tudo e sentaram-se ao pé do fogo
para assar castanhas e provar um gole de licor. O pai fez um brinde.
– Que Deus nos abençoe a todos! Feliz Natal! – disse Bob
Gratchit.
– Que Deus proteja cada um de nós! – pediu o pequeno Tim.
– Espírito! – disse Scrooge, com um interesse que nunca sentira
antes. – Tim viverá muito tempo?
– Vejo uma muleta sem dono e um lugar vago na lareira – respondeu
o espírito.
– Se o futuro não mudar essas sombras, é certa a morte do menino.
– Não, não! – suplicou Scrooge. – Diga que o garoto será poupado!
– É melhor que ele morra, assim se diminui o excesso de
população.
Ao ouvir o espírito repetir suas próprias palavras, Scrooge
sentiu que o remorso o abatia. Curvou a cabeça, tremendo, enquanto Bob
brindava:
– À saúde do Sr. Scrooge!
– Mas, querido, não se pode propor um brinde a uma pessoa tão
odiosa, cruel e dura como o Sr. Scrooge! – reclamou a esposa.
– Querida – recriminou-a brandamente o marido. – Hoje é dia de
Natal!
– É verdade, querido. Que Deus
dê a ele um ano cheio de alegrias!
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