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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Charles Dickens - Conto de Natal (Capítulo 1)

O Natal sem Dickens ou Dickens sem o Natal não são duas coisas fáceis de serem pensadas.

Como sublinha o ensaísta norte-americano Les Standiford, em “O Homem que Inventou o Natal” (2010, p. 174), não há presentes trocados ou desembrulhados em Um Conto de Natal, senão apenas a boa vontade e o amor. Da avareza à benevolência, Scrooge se transforma sob o peso dos três fantasmas, para nos fazer ver que o melhor de que o ser humano é capaz somente resulta dos atributos de boa-vontade, amizade e companheirismo.

Para abrilhantar este Natal, postaremos os capítulos deste conto algo longo em nove trechos em sequência (o original contém, de fato, apenas cinco seções). Aqui vai a primeira parte, para uma leitura de reflexão e de prazer.

J.A.R. – H.C.

Referências:
STANDIFORD, Les. O Homem que inventou o Natal. Tradução de Christian Schwarz e Liliana Negrello. Curitiba, PR: Nossa Cultura, 2010.
DICKENS, Charles. Conto de Natal. Adaptação de Isabel Vieira. São Paulo: Rideel, 2003. (Coleção Aventuras Grandiosas)


Capítulo 1 (Págs. 2-4)
Scrooge, o avarento
Para começar, quero garantir que Marley estava morto. Sobre isso não havia a menor dúvida. A certidão de óbito fora assinada pelo padre, pelo escrivão, pelo agente funerário e pelo próprio Scrooge, seu único sócio, testamenteiro, herdeiro e amigo. Marley não tinha parentes. Mas o fato de ser a única pessoa importante para o defunto não impedira Scrooge de realizar um excelente negócio na Bolsa de Valores no dia do enterro dele.
Insisto em repetir que Marley estava morto, pois disso depende a compreensão da história. Se a plateia não estivesse convencida de que o pai de Hamlet morre antes de começar a peça, ninguém estranharia seus passeios noturnos para assustar o filho nos muros do castelo, em noites de tempestade.
Scrooge nunca tirou o nome do sócio da fachada da empresa. Scrooge & Marley era uma firma conhecida. Havia quem não distinguisse um sócio do outro. Às vezes, chamavam Scrooge de Marley. Ele não se importava com isso e atendia por ambos os nomes.
O velho Scrooge era duro e avarento. Inflexível nos negócios, arrancava o que podia dos clientes. Vivia retraído e solitário como uma ostra. O frio que lhe ia na alma era visível até em suas feições: nariz grande, faces enrugadas, olhos avermelhados e voz áspera. Sua cabeça parecia envolvida num orvalho gelado. Por onde ele passava, deixava um rastro de frieza que refrigerava seu escritório no verão e não se abrandava nem com as alegrias do Natal.
Não havia notícia de que alguém um dia houvesse parado na rua para dizer carinhosamente: “Caro Scrooge, como vai? Apareça lá em casa!” Nunca um mendigo lhe pediu esmola, uma criança perguntou-lhe as horas ou alguém pediu-lhe informações. Até os cães que guiavam os ceguinhos, quando o viam, puxavam seus donos para o vão de uma porta, deixando-lhe o caminho livre, como se pensassem: “Antes ser cego que ter o olhar terrível desse homem”.
Na véspera do Natal, Scrooge estava no escritório fazendo contas. Eram três horas da tarde, mas na rua o frio e a neblina eram tão intensos que parecia noite. Os candeeiros acesos nos escritórios vizinhos lançavam clarões na atmosfera negra. O denso nevoeiro penetrava no interior das casas, chegando a tapar os buracos das fechaduras, e dava aos prédios o aspecto de fantasmas.
Scrooge deixara aberta a porta da sala para poder vigiar seu empregado, que trabalhava num cubículo frio e úmido. Junto de Scrooge ardia um escasso fogo, mas o do ajudante era ainda menor. Ele não ousava buscar mais carvão porque este era guardado junto de Scrooge. Se o fizesse, o patrão ameaçaria despedir um funcionário tão esbanjador. Enrolado no cachecol, o infeliz tiritava de frio, batendo os dentes.
De repente, ouviu-se uma voz alegre no ambiente:
– Boas-festas, tio, e que Deus o guarde!
A presença do sobrinho, entrando precipitadamente, com as faces coradas e o olhar cintilando de alegria, irritou o velho, que resmungou:
– Tolice! Pura tolice!
– O Natal é uma tolice, tio? – replicou o rapaz. – É o que está dizendo?
– Tolice, claro! Por que essa alegria? Você não é pobre?
– Sou, sim – disse o sobrinho, zombeteiro. – Então, como o senhor, que é tão rico, explica sua tristeza?
– Ora, deixe-me em paz! – irritou-se Scrooge. – Por que eu haveria de estar alegre? Natal é a época de fazer o balanço da firma e descobrir que só tivemos prejuízo. Ficamos um ano mais velhos e nem um tostão mais ricos. Isso é motivo para comemorar e dar presentes? Feliz Natal! – debochou o tio. – Tenho vontade de assar junto com o bolo de Natal todo maluco que desejar isso! E ainda espetá-lo num galho do pinheiro!
– Que horror, tio! – escandalizou-se o sobrinho.
– Por que não festeja o Natal a seu modo e esquece que eu existo?
– Porque o Natal é tempo de caridade e perdão – respondeu o sobrinho.
– É a época do ano em que homens e mulheres abrem seus corações e tratam todas as criaturas como iguais, tenham ou não dinheiro. Somos companheiros da mesma jornada. É por isso, tio, que eu repito: Deus abençoe o Natal!
O empregado aplaudia intimamente as palavras do rapaz. Estava prestes a dizer o que pensava, quando Scrooge percebeu e esbravejou:
– Se ousar falar uma palavra, seu presente de Natal será a demissão!
– Não se aborreça, meu tio. Bem, já vou indo. Só vim para convidá-lo a jantar conosco amanhã…
Scrooge respondeu com um palavrão. Depois fez-lhe uma pergunta:
– Por que você se casou?
– Porque me apaixonei…
– Porque se apaixonou… – resmungou o velho, como se essa fosse a única coisa mais ridícula que o Natal. – Passe bem e boa-tarde!
– Mas antes de eu casar o senhor também não ia à minha casa…
– Boa-tarde! – rosnou Scrooge.
– Feliz Natal e ótimo Ano-Novo, tio. Só queria que fôssemos amigos.
– Boa-tarde! – concluiu Scrooge.
Apesar da frieza da recepção, o rapaz foi embora sem perder o bom humor e ainda desejou boas-festas ao empregado, que agradeceu e retribuiu.
– Aqui temos outro doido… – murmurou Scrooge. – Mal ganha para o sustento da família e vem falar em festas e em Natal alegre.
O empregado, que tinha acompanhado o sobrinho do patrão até a porta, voltou com dois homens distintos e bem-trajados. Eles tiraram os chapéus e cumprimentaram Scrooge, consultando uma lista.
– Scrooge & Marley – confirmou um deles. – Com quem tenho a honra de falar? Com o Sr. Scrooge ou com o Sr. Marley?
– Marley morreu. Esta noite faz precisamente sete anos que está morto.
– O sócio sobrevivente decerto terá a mesma generosidade do falecido – disse o homem, exibindo a credencial que o autorizava a recolher donativos.
Ao ouvir a abominável palavra generosidade, Scrooge franziu a testa e afastou os papéis. O homem estendeu-lhe uma caneta e explicou:
– Nesta época do ano, Sr. Scrooge, é dever de todos nós ajudarmos a diminuir o sofrimento dos pobres. Há milhares deles com frio e fome nas ruas.
– Não existem asilos? – perguntou Scrooge, afastando a caneta.
– Infelizmente, estão cheios.
– E a casa de correção? E a lei de repressão à mendicância?
– Continuam existindo, senhor, e não faltam condenados. Quanto devo escrever nesta lista, em nome do Sr. Scrooge?
– Nada!
– Ah, compreendi. Deseja fazer uma doação anônima…
– Desejo que me deixem em paz – disse Scrooge. – Não gosto do Natal e não vou contribuir para sustentar preguiçosos. Pago impostos para manter as instituições a que me referi. Quem não tiver o que comer que se recolha a elas.
– Não há lugar para todos, e muitos prefeririam morrer a recorrer a um lugar desses, senhor.
– Pois que morram, então. Farão um benefício à humanidade, ajudando a acabar com o excesso de população. Agora, com licença e boa-tarde!
Os homens se retiraram e Scrooge esfregou as mãos, satisfeito da vida.

Para ler o Capítulo 2, acesse o seguinte link.

J.A.R. - H.C.

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