O
fantasma de Marley
O nevoeiro tornara-se tão espesso que, lá fora, o povo auxiliava
os cocheiros, iluminando a rua com archotes para os cavalos não se perderem. A torre
da igreja tornou-se invisível. O relógio batia as horas e os quartos de hora com
vibrações trêmulas, como se o mecanismo estivesse congelado. Em uma esquina, operários
aqueciam-se numa fogueira. Das vitrinas das lojas sobressaíam clarões sobre
apetitosos bolos e aves. Em seu esplêndido palácio, o prefeito ordenara a cinquenta
cozinheiros que preparassem a ceia, e até o pobre alfaiate, a quem ele multara
dias antes por embriagar-se na rua, assava um jantar especial em seu casebre,
junto da mulher e do filhinho.
Um rapaz magro, roído pelo frio como um osso por um cão,
aproximou-se da porta de Scrooge entoando um cântico de Natal. O velho
espantou-o com tal energia que o cantor fugiu espavorido. Chegou enfim a hora
de fechar o escritório.
Com visível má vontade, Scrooge levantou-se e o empregado o
imitou, apressando-se a apagar o candeeiro e colocar o chapéu.
– Amanhã você espera ter folga, não é? – disse Scrooge.
– Se não houver inconveniente, senhor…
– E se eu lhe descontasse o dia? Decerto se julgaria lesado.
O empregado sorriu humildemente. O Natal era só uma vez por ano…
– Fraca desculpa para enfiar a mão no meu bolso! Certo, vou lhe
pagar por um dia de vadiação. Depois de amanhã apresente-se aqui bem cedo.
O empregado saiu e Scrooge ficou rosnando. Sem posses para
comprar um sobretudo, o homem abrigava-se como podia no cachecol e, antes de ir
para casa, que era bem longe, parou para patinar no gelo com um bando de
amigos, todos alegres por causa do Natal.
Scrooge engoliu um melancólico jantar na estalagem de costume,
leu os jornais e foi para casa. Era a mesma onde vivera Marley. Ficava num
edifício baixo, num beco escuro e deserto de Londres. Mesmo conhecendo o pátio,
Scrooge caminhava Às apalpadelas. A porta negra e velha tinha um aspecto sinistro,
como se o Gênio do Tempo estivesse sentado sobre ela, meditando.
Devo acentuar que na maçaneta da porta nada havia de
extraordinário, a não ser o tamanho, bastante grande. Scrooge a vira muitas
vezes, pois sempre viveu ali. Quero lembrar também que Scrooge, exceto a
referência que fizera horas antes à morte de Marley, havia sete anos não
pensava no sócio defunto. Expliquem-me então, se possível, por que Scrooge, ao
meter a chave na fechadura, viu na maçaneta não uma maçaneta, mas o rosto de
Marley?
O rosto de Marley! Mergulhado em trevas profundas, ele fixava o
sócio serenamente, sem raiva ou rancor, como costumava fazer em vida. Trazia os
óculos na testa e os olhos abertos e parados. Os cabelos estavam arrepiados,
como se soprasse um vento quente. A palidez do rosto tornava-o horrível.
Perturbado, Scrooge desviou o olhar. Quando fixou de novo a
maçaneta, viu apenas a maçaneta. Sofreu uma comoção estranha, como nunca
sentira desde a infância. Entrou e acendeu a luz. Hesitou antes de fechar a
porta, com medo de que Marley estivesse dentro de casa. Mas tudo o que viu
foram os parafusos que seguravam a porta. Bateu-a com estrondo e subiu a
escada, que ecoou com seus passos, fracamente iluminada pela luz da rua. A
escuridão era barata, por isso agradava Scrooge.
No andar de cima, tudo estava em ordem. Ninguém debaixo do sofá,
da mesa ou da cama. Ninguém dentro do roupão de uso caseiro que pendia de um cabide.
Ninguém no quarto de despejo. Scrooge deu duas voltas à chave do quarto, o que
não era costume, tirou a gravata, vestiu o roupão, pôs os chinelos e o capuz de
dormir e se sentou diante da lareira para tomar seu mingau.
A lareira antiga era revestida com azulejos representando cenas
da Sagrada Escritura: Caim e Abel, as filhas dos faraós, a rainha de Sabá,
anjos sobre nuvens, Abrahão e Baltazar. As imagens desapareceram por encanto e
Scrooge começou a ver em cada azulejo uma cabeça de Marley.
– Tolices! – disse, pondo-se a andar pelo quarto.
Tornou a sentar-se e reclinou a cabeça no espaldar da cadeira.
Seus olhos pousaram numa sineta sem uso. Com espanto e pavor, Scrooge sentiu
que saía dela um som imperceptível, que foi crescendo até se converter num
furioso badalar.
Durou meio minuto, mas pareceu-lhe uma hora. Então ouviu outro
ruído, vindo do andar de baixo, como se alguém arrastasse correntes por cima
dos tonéis da adega. As correntes subiam a escada em direção ao quarto.
– Tolices! – repetiu Scrooge. – Não acredito em fantasmas.
A cor fugiu-lhe quando o fantasma atravessou a porta. Era o
espectro de Marley, vestido como andava em vida. Seu corpo, porém, era tão transparente
que, olhando-o através do casaco, Scrooge podia ver os botões pregados atrás. A
corrente presa à sua cintura arrastava-se como uma cauda e era formada por
cofres-fortes, chaves, cadeados, livros-caixa e letras de câmbio.
– Fale! – disse Scrooge, causticamente. – O que pretende de mim?
– Os homens têm obrigação de viajar pelo mundo, visitar seus
irmãos… Os que não o fizeram em vida são condenados a fazê-lo depois da morte.
O destino dos espíritos como eu, que viveram somente para si, é ver aquilo de
que não partilharam.
Oh, que horrível desgraça! – gemeu o espectro.
– Por que está acorrentado? – perguntou Scrooge com voz trêmula.
– Arrasto a corrente que construí em vida. Não a reconhece?
Scrooge tremia cada vez mais.
– Minha corrente tem o peso e o comprimento da que você mesmo
usa.
Ou usava há sete anos, quando morri. De lá para cá, não fez outra
coisa senão aumentá-la. A sua agora deve estar bem mais pesada que a minha!
Scrooge olhou para si, à procura de correntes, mas não viu nada.
– Jacob – implorou. – Meu velho Jacob Marley, dê-me uma
esperança!
– Não posso, Ebenezer Scrooge – replicou o fantasma. – A
consolação e a esperança vêm de outras regiões e são trazidas por outros
mensageiros.
Eu não posso sequer repousar. Em vida, meu espírito nunca
transpôs os muros do nosso escritório. Agora meu fado é uma peregrinação constante
e dolorosa.
– Viaja depressa? – perguntou Scrooge.
– Sem descanso. Oh, tortura do remorso! – o fantasma soltou um
grito medonho e agitou as cadeias. – Cativo, acorrentado! Isso por ignorar que
toda alma cristã tem o dever de espalhar o bem em torno de si.
– Mas você foi um bom homem de negócios, Jacob – disse Scrooge,
que começava a entender o sentido das palavras e aplicá-las a si mesmo.
– Negócios! – o espectro contorceu as mãos transparentes. –
Esqueci todas as coisas importantes para servir ao meu negócio: o bem-estar
alheio, a caridade, a compaixão, a benevolência… Nesta época do ano ainda é
maior o meu sofrimento.
Por que passei pela multidão sempre de olhos baixos?
Scrooge quase já não o ouvia, apenas tremia.
– Vim aqui hoje para lhe anunciar que ainda há possibilidade de
você escapar do mesmo destino – continuou o fantasma de Marley.
– Obrigado, Jacob. Sei que sempre foi meu amigo.
– Você será visitado por três espíritos. O primeiro virá amanhã,
quando o relógio soar uma hora.
– Não poderiam vir todos ao mesmo tempo, para que a visita acabe
mais depressa? – questionou Scrooge.
– Espere o segundo na noite seguinte, à mesma hora. O terceiro
virá na outra noite, ao bater a última badalada da meia-noite. Adeus, Scrooge!
As janelas se abriram e o fantasma de Marley desapareceu na
escuridão da noite, deixando uma música fúnebre flutuando no ar.
Para ler o Capítulo 3, acesse o seguinte link.
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