Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 20 de abril de 2024

Raymond Carver - Esta manhã

A narrativa a que diz respeito este poema leva-nos a supor que o falante estivesse num exercício de meditação, caminhando em meio à natureza, procurando limpar a mente – pelo menos por algum tempo – de toda a espuma acumulada pelos dias na parede da memória, “velhas ruminações” que o tolhem de experimentar o universo do ser em seu grau superior de leveza.

 

Medo da morte, relacionamentos rompidos e assuntos mal resolvidos muitas vezes entram em disputa cerrada, na mente, com realidades concorrentes do outro lado da balança – “doces memórias”, deveres em linha com os propósitos de vida assumidos etc. –, formando um crisol psíquico fervilhante, a exigir de cada um o necessário equilíbrio para seguir adiante.  

 

J.A.R. – H.C.

 

Raymond Carver

(1938-1988)

 

This morning

 

This morning was something. A little snow

lay on the ground. The sun floated in a clear

blue sky. The sea was blue, and blue-green,

as far as the eye could see.

Scarcely a ripple. Calm. I dressed and went

for a walk – determined not to return

until I took in what Nature had to offer.

I passed close to some old, bent-over trees.

Crossed a field strewn with rocks

where snow had drifted. Kept going

until I reached the bluff.

Where I gazed at the sea, and the sky, and

the gulls wheeling over the white beach

far below. All lovely. All bathed in a pure

cold light. But, as usual, my thoughts

began to wander. I had to will

myself to see what I was seeing

and nothing else. I had to tell myself this is what

mattered, not the other. (And I did see it,

for a minute or two!) For a minute or two

it crowded out the usual musings on

what was right, and what was wrong – duty,

tender memories, thoughts of death, how I should treat

with my former wife. All the things

I hoped would go away this morning.

The stuff I live with every day. What

I’ve trampled on in order to stay alive.

But for a minute or two I did forget

myself and everything else. I know I did.

For when I turned back i didn’t know

where I was. Until some birds rose up

from the gnarled trees. And flew

in the direction I needed to be going.

 

Em: “Ultramarine” (1986)

 

Homem caminhando numa trilha ensolarada

(Imagem de autoria desconhecida)

 

Esta manhã

 

Esta manhã foi especial. Um pouco de neve

cobria o chão. O sol flutuava num claro

céu azul. O mar estava azul, e verde-azulado,

até onde o olho podia enxergar.

Calmo. Quase sem ondas. Eu me vesti

e saí para caminhar – decidido a não voltar

até receber o que a Natureza tivesse a oferecer.

Passei perto de algumas árvores velhas, curvadas.

Atravessei um campo com pedras espalhadas

onde a neve se acumulara. Segui em frente

até chegar ao penhasco.

De onde fitei o mar, o céu e

as gaivotas revoando sobre a areia branca,

lá embaixo. Tudo adorável. Tudo banhado numa pura

luz fria. Mas, como sempre, meus pensamentos

começaram a vagar. Tive de me esforçar

para ver só o que estava vendo,

e nada mais. Tive que dizer a mim mesmo que aquilo

era o que importava, não o resto. (E de fato consegui,

por um ou dois minutos!) Por um ou dois minutos

consegui afastar as velhas ruminações

sobre o que é certo e o que é errado – deveres,

doces memórias, ideias de morte, como lidar

com minha ex-mulher. Todas as coisas

que eu esperava esquecer esta manhã.

As coisas com que vivo todos os dias. Tudo

o que superei para poder continuar vivo.

Mas, por um ou dois minutos, eu realmente esqueci

de mim e de tudo o mais. Sei que esqueci.

Pois quando me virei já não sabia

onde estava. Até que alguns pássaros emergiram

das árvores retorcidas – e voaram

na direção em que eu precisava seguir.

 

Em: “Ultramar” (1986)

 

Referência:

 

CARVER, Raymond. This morning / Esta manhã. Tradução de Cide Piquet. In: __________. Esta vida: poemas escolhidos. Seleção e tradução de Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2017. Em inglês: p. 177; em português: p. 93-94.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Ângelo de Lima - Dizem os sábios que já nada ignoram

Perpassado por certa religiosidade que se convola em facundas indagações, o poeta objeta contra aqueles que, amparados num lastro de racionalidade, veem no ser humano apenas a efemeridade da forma – digo melhor, do corpo –, simples matéria orgânica em contínua transformação, sendo a sua contraparte – a alma – não mais que um mito, cujas místicas celestiais não logram torná-lo menos evanescente.

 

Com efeito, dizem os contendores que seríamos como que frágeis gusanos (deduza-se a metáfora alusiva à transmutação lagarta – crisálida – borboleta), que um dia eclodem e logo se dão conta do seu exíguo prazo de validade. Mas o falante enxerga na metamorfose consumada pela morte, a possibilidade de a Alma (assim com letra maiúscula) – essa vivaz mariposa multicor – aprimorar-se ainda mais no incógnito mundo do devir.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ângelo de Lima

(1872-1921)

 

Dizem os sábios que já nada ignoram

 

Dizem os sábios que já nada ignoram

Que alma, é um mito!...

Eles que há muito, em vão, dos céus exploram

O almo infinito...

Eles, que nunca achavam no ente humano

Mais que esta face

De ser finito, orgânico, o gusano

Que morre e nasce,

Fundam-se na razão.

E a razão erra!...

 

Quem da lagarta a rastejar na terra

Pode supor,

Sonhar sequer, que um dia há-de nascer

A borboleta, aquela alada flor

Matiz dos céus?

Sábios, achai em vão o pode ser

Saber... só Deus.

 

O homem rasteja, semelhante ao verme

Por que não há-de a paz da sepultura

– Quanto labor sob a aparente calma!

Servir d’abrigo àquele ser inerme,

De que há-de um dia após tarefa oscura

Surgir vivaz, alada e flor, a Alma.

 

De lagarta a borboleta

(Fionn Wrifgt: artista norte-americano)

 

Referência:

 

LIMA, Ângelo de. Dizem os sábios que já nada ignoram. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 970.

 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Benjamin Zephaniah - Movimentos Antiescravagistas

Zephaniah, escritor e poeta negro inglês, reporta-se aqui ao Movimento de Libertação Animal (MLA), surgido lá pelos anos 70 do século passado, para defender os animais do tratamento explorador dos humanos, tanto mais em razão de que são capazes de experimentar sofrimento quando abatidos para nos servir de alimento.

 

O poeta contradita o argumento daqueles que se opõem às ideias éticas albergadas pelo MLA, buscando desvelar o fundamento discriminatório a sustentar os interesses que estão por trás da arguição levada a efeito pela legião opositora – aí inclusos os empresários da indústria alimentícia –, alicerçada no fato de que pertencemos a uma espécie de ordem pretensamente superior às de toda a fauna restante.

 

Zephaniah cria em seus versos um paralelo entre a exploração dos animais pelo homem e a exploração do homem pelo homem, neste caso, pela via da escravidão, o caráter subjugador e visceralmente antiético a assomar em ambas os casos.

 

Para os que se interessam mais de perto pelo assunto, sugiro a leitura do livro “Libertação Animal”, do filósofo australiano Peter Singer (n. 1946), já um clássico sobre a matéria. O original em inglês pode ser encontrado facilmente neste endereço da grande rede.

 

J.A.R. – H.C.

 

Benjamin Zephaniah

(n. 1958)

 

Anti-Slavery Movements

 

Some people say

Animal liberators are not

Working in the interest of animals.

But I’ve never seen liberated animals

Protest by going back to their place

Of captivity.

But then again

I’ve never heard of any liberated slaves

Begging for more humiliation

Or voting for slavery.

 

Animals vote with their feet

Or their wings

Or their fins.

 

A Gaiola

(Berthe M. P. Morisot: pintora francesa)

 

Movimentos Antiescravagistas

 

Algumas pessoas dizem que

Os libertadores de animais não

Trabalham no interesse dos animais.

Porém nunca vi animais libertos

Protestarem para regressar ao seu lugar

De cativeiro.

Objetando uma vez mais,

Nunca ouvi falar de escravos libertos

Que implorem por mais humilhação

Ou votem pela escravidão.

 

Os animais votam com os seus pés,

Suas asas

Ou suas barbatanas.

 

Referência:

 

ZEPHANIAH, Benjamin. Anti-slavery movements. In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 300.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Nicanor Parra - A cruz

Que a poesia de Parra tem muito de iconoclasta, provocativa, incitadora a saltos intrépidos de perspectiva, já não há tanto a se expender em palavras: melhor é deixar a lírica do próprio autor chileno dizer por si, como nas linhas deste breve poema, a moverem o leitor, de início, a um determinado caminho – pretensamente hierático –, mas que, ao fim, se nos revela profano demais!

 

O título concedido ao poema – “A cruz” –, com toda a sua carga polissêmica, muito se presta a criar a ambivalência tencionada pelo poeta, vertida em opostos como o sacro e o obsceno, o transcendente e o vulgar, o espiritual e o material, o conspícuo e o pilhérico, podendo-se deduzir, pela forma como dispostos os versos, que Parra deixa para explicitar, no final, o “modus vivendi” que mais lhe apraz.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nicanor Parra

(1914-2018)

 

La cruz

 

Tarde o temprano llegaré sollozando

a los brazos abiertos de la cruz.

 

Más temprano que tarde caeré

de rodillas a los pies de la cruz.

 

Tengo que resistirme

para no desposarme con la cruz:

¡ven como ella me tiende los brazos?

 

No será hoy

mañana

ni pasado

mañana

pero será lo que tiene que ser.

 

Por ahora la cruz es un avión

una mujer con las piernas abiertas.

 

Em: “Obra gruesa” (1969)

 

Mulher sentada com as pernas abertas

(Gustav Klimt: pintor austríaco)

 

A cruz

 

Cedo ou tarde chegarei soluçando

Aos braços abertos da cruz.

 

Mais cedo que tarde cairei

Ajoelhado aos pés da cruz.

 

Tenho que resistir

Para não me casar com a cruz:

Veem como ela me estende os braços?

 

Não será hoje

 amanhã

  nem depois

de amanhã

mas será o que tem de ser.

 

Por enquanto a cruz é um avião

uma mulher com as pernas abertas.

 

Em: “Obra grossa” (1969)

 

Referência:

 

PARRA, Nicanor. La cruz / A cruz. Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. In: __________. Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2018. Em espanhol: p. 239; em português: p. 126.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Hilda Hilst - Esse poeta em mim sempre morrendo

Perpassa um espectro de paixão algo platônica em toda a série que integra os “Dez chamamentos ao amigo” – composição que parodia as clássicas “canções de amigo” trovadorescas –, sendo a infratranscrita seção X uma das que mais evidencia a falante a pervagar pela ilimitada região da poesia, um tanto confrangida, é verdade, entre a “matéria da solidão” e os absortos pensamentos centrados no dileto “amigo”.

 

Não pense o leitor que tudo não passe de mero exercício de imaginação da poetisa, para dar vazão aos seus propósitos líricos! Afinal, o poemário “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, de 1974 – de onde transcrito o poema em comento –, possui uma dedicatória que não deixa margem a dúvidas sobre a existência real do “amigo” a quem direcionado: “A M.N. / porque ele existe”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Hilda Hilst

(1930-2004)

 

Dez chamamentos ao amigo

 

IX

 

Esse poeta em mim sempre morrendo

Se tenta repetir salmodiado:

Como te conhecer, arquiteto do tempo

Como saber de mim, sem te saber?

Algidez do teu gesto, minha cegueira

E o casto incendiado momento

Se ao teu lado me vejo. As tardes

Fiandeiras, as tardes que eu amava,

Matéria da solidão, íntimas, claras

Sofrem a sonolência de umas águas

Como se um barco recusasse sempre

A liquidez. Minhas tardes dilatadas

 

Sobre-existindo apenas

Porque à noite retomo a minha verdade:

Teu contorno, teu rosto, álgido sim

 

E por isso, quem sabe, tão amado.

 

Em: “Júbilo, memória, noviciado da paixão” (1974)

 

Senhora do Mistério

(Edward M. Eggleston: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

HILST, Hilda. Esse poeta em mim sempre morrendo. In: __________. Da poesia. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 236.