Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Karin Boye - Desabrigado

Entre as lutas por que passa uma pessoa, no amplo e complexo espectro das experiências humanas, está a de encontrar um “lar”, um lugar no mundo, luta essa que se passa tanto no plano físico quanto no emocional, e que, se inglória, poderá encaminhá-la a submergir na desolação, quiçá na autodestruição, levando-a a vagar sem rumo, sem encontrar algo de mais significativo, sem um sentido de pertencimento e de autenticidade na vida.

 

A percepção de que se está cingido por uma roda de mentiras, de onde a verdade se exilou, acaba por gerar forças de aversão e de ressentimento a si próprio: como alguém haveria de encontrar uma felicidade genuína em tal cenário de adversidades?!

 

Cumpre, a quem nesse estado, dar início a uma jornada de “cura”, de autoconhecimento, de ponderações acerca dos seus valores, de suas convicções, do padrão de seus processos mentais e comportamentais, para poder assim romper o ciclo que oblitera a presença de um “céu azul de brigadeiro”, de pleno crescimento pessoal.

 

J.A.R. – H.C.

 

Karin Boye

(1900-1941)

 

Hemlös

 

Att mista själens hem och vandra långt

och intet annat kunna hitta sen,

och finna att man glömt vad sanning är,

och tycka man är gjord av bara lögn,

och vämjas vid sig själv och hata sig –

ja det är lätt, ja det är ganska lätt.

Sorgen är lätt, men glädjen stolt och svår,

ty glädjen är det enklaste av allt.

 

Men den, som söker sig ett hem för sig,

får inte tro, att det finns var som helst –

han måste vandra hemlös någon tid;

och den som är av lögn och vill bli frisk,

han måste hata sig till det han kan

av sanning, som de andra få till skänks.

Vad är det värt att sörja så för det?

Vänta, mitt hjärta, och ha tålamod!

 

In: “Moln” (1922)

 

Desabrigados

(Thomas B. Kennington: pintor inglês)

 

Desabrigado

 

Perder o lar da alma e peregrinar distante

e depois nada mais poder achar,

e descobrir que se esqueceu o que é a verdade,

e achar que só de mentira se é feito,

e habituar-se consigo e odiar-se –

é fácil, sim é muito fácil.

Tristeza é fácil, rnas alegria, orgulhosa e difícil,

Pois alegria é o mais simples de tudo.

 

Mas aquele que busca para si um lar,

não deve crer que se ache em qualquer lugar –

precisa peregrinar desabrigado por um tempo;

e quem é feito de mentira e quer sarar-se,

precisa odiar-se até poder

de verdade, essa que aos outros se dá.

Qual o valor de se entristecer por isso?

Espera, meu coração, e tenha paciência!

 

Em: “Nuvens” (1922)

 

Referências:

 

Em Sueco

 

BOYE, Karin. Hemlös. In: __________. Dikter. Stockholm, SE: BoD - Books on Demand, 2019. s. 44.

 

Em Português

 

BOYE, Karin. Desabrigado. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Poesia sempre: revista semestral de poesia. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de janeiro (RJ), ano 13, n. 25, p. 155, dez. 2006.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Gastão Cruz - Substância escura

A um nível simbólico, este poema de Gastão pode ser interpretado como uma metáfora para o processo criativo de um poeta – presumivelmente Carlos de Oliveira (1921-1981) – que, em seus contornos mais íntimos, escudado pelo silêncio, encontrava inspiração nas palavras num fluxo imparável, mesmo a despeito da natureza cambiante ou de eventuais limitações impostas pela realidade material a que integrado.

 

Ao final, tem-se o poema, essa substância escura e misteriosa, originária da relação entre a linguagem e as experiências quotidianas, bela mas infecunda, por hipótese, se não compartilhada com o mundo, se não posta à prova em seu poder de transformação, de desobstrução dos portais que dão acesso a outros tantos sentidos para os domínios do ser e do estar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gastão Cruz

(1941-2022)

 

Substância escura

 

Ele vinha sentar-se junto à chávena

falando devagar com a voz grave

amável e feroz de quem achava

a chave dos seus dias nas palavras

 

O braço pontual como o anel

vivo dum rio vivo repousava

entre as margens paradas da instável

mesa parede rede invariável

 

A manga do casaco a luz da tarde

cobria de silêncio em cada pausa

A voz substância escura como a tarde

retomava o trabalho como a poalha

 

ilúcida da tarde sobre a toalha

inútil do crepúsculo Ele estava

sentado entre as palavras e trazia

no silêncio da mão uma vara de prata

 

O pássaro madrugador

(Charles Spencelayh: pintor inglês)

 

Referência:

 

CRUZ, Gastão. Substância escura. In: __________. O pianista. Porto, PT: Limiar, 1984. p. 18.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Vladímir Maiakóvski - Guerra e paz: prólogo

Embora não se tenha aqui o inteiro teor deste longo poema de Maiakóvski – composto pelo infratranscrito prólogo, uma dedicatória e cinco seções (v. link no campo de referências) –, deduz-se pelo título, desde logo, um insuspeito espectro temático, que vai da gravidade da guerra à valentia nos campos de batalha, da vida que se defende à morte por toda parte.

 

O falante, à maneira de um soldado, expressa as suas ideias de modo apaixonado e desafiador, confrontando o pragmatismo e a trivialidade da vida quotidiana com o poder letal do conflito – a obstaculizar a expressão do amor –, sugerindo, com desapego, que a morte tem o poder de nos libertar das preocupações e dos pecados terrenais.

 

Declarando-se um “arauto das verdades futuras”, o ente lírico enfatiza, ademais, o seu papel de mensageiro da verdade e da justiça em meio ao caos que se instala com a refrega, resistindo à conformidade e à complacência daqueles que não estão diretamente envolvidos nos combates.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vladímir Maiakóvski

(1893-1930)

 

Война и мир

 

Пролог

 

Хорошо вам.

Мертвые сраму не имут.

Злобу

к умершим убийцам туши.

Очистительнейшей влагой вымыт

грех отлетевшей души.

 

Хорошо вам!

А мне

сквозь строй,

сквозь грохот

как пронести любовь к живому?

Оступлюсь

и последней любовишки кроха

навеки канет в дымный омут.

 

Что́ им,

вернувшимся,

печали ваши,

что́ им

каких-то стихов бахрома?!

Им

на паре б деревяшек

день кое-как прохромать!

 

Боишься?!

Трус!

Убьют?!

А так

полсотни лет еще можешь, раб, расти.

Ложь!

Я знаю,

и в лаве атак

я буду первый

в геройстве,

в храбрости.

 

О, кто же,

набатом гибнущих годин

званый,

не выйдет брав?

Все!

А я

на земле

один

глашатай грядущих правд.

 

Сегодня ликую!

Не разбрызгав,

душу

сумел,

сумел донесть.

Единственный человечий,

средь воя,

средь визга,

голос

подъемлю днесь.

 

А там

расстреливайте,

вяжите к столбу!

Я ль изменюсь в лице!

Хотите

туза

нацеплю на лбу,

чтоб ярче горела цель?!

 

(1915-1916)

 

Guerra e paz

(Peter Proksch: pintor austríaco)

 

Guerra e paz (*)

 

Prólogo

 

Vós outros tendes sorte.

A vergonha não cai sobre os mortos.

Logo cessais

de odiar os assassinos mortos.

Julgais

que o mais puro dos líquidos lava

o pecado da alma que se evola.

 

Tendes sorte.

Mas eu

como levarei meu amor à vida

através das fileiras,

através do estrondo?

Apenas um passo em falso

e a migalha do último e pequenino amor

rolará para sempre num torvelinho de fumo.

 

Aqueles que regressam

que lhes importa

vossas tristezas?

Que falta lhes faz

a franja de alguns versos?

Basta-lhes um par de muletas

com que renguear pelo resto da vida.

Tens medo?

Covarde!

Te matarão!

 

E tu,

tu poderias viver escravo

cinquenta anos mais.

Mentira!

 

Sei

que na lava do ataque

serei o primeiro

em audácia,

em valor.

 

Ah! que bravo recusaria atender

ao toque de rebate do futuro?

Mas na terra

hoje

sou o único arauto das verdades em marcha!

 

Hoje estou exultante!

Sem desperdiçar nem uma gota,

despejei minh’alma até o fim.

Minha voz,

a única humana,

entre lamentos e gemidos

ergue-se à luz do dia.

 

Depois

atai-me a um poste,

fuzilai-me!

Por causa disso

haverei de mudar?

Na fronte

desenharei um alvo

para que nítido se destaque

quando apontem.

 

(1915-1916)

 

Nota:

 

(*). Trata-se de um longo poema, do qual, nesta postagem, vai apenas o seu prólogo.

 

Referências:

 

МАЯКОВСКИЙ, Владимир. Война и мир: пролог. Disponível neste endereço. Acesso em: 18 jan. 2025.

 

MAIAKÓVSKI, Vladímir. Guerra e paz: prólogo. Tradução de Emilio Carrera Guerra. In: __________. O poeta-operário: antologia poética. Tradução e estudo biográfico de Emílio Carrera Guerra. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1991. p. 124-125.