Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 8 de março de 2025

Lao-Tzu - XXVII. O bom andarilho não deixa rastros

Seguir pela vida numa atuação sem esforço, seguindo o fluxo natural das coisas, prezando por se relacionar, com quem quer que seja, com autenticidade e veracidade, sem forçar o momento ou as circunstâncias: este parece ser o ponto vital neste aforismo de Lao-Tzu, a nos recordar de que o conhecimento verdadeiro vale bem mais do que as meras técnicas ou ferramentas analíticas de que dispomos.

 

Quando estamos em harmonia com o Tao, prescindimos de chaves que nos tranquem as portas de contato com o exterior para que possamos manter nossas integridade e segurança intrínsecas, pois que nosso escudo de proteção, orientando-se ao infranqueável, não se pauta por barreiras tangíveis.

 

No que quer que façamos, em qualquer atividade que empreendamos, busquemos a maestria e a precisão, com cuidado e atenção ao detalhe, servindo aos menos experientes como um exemplo a ser seguido, de naturalidade, lucidez, sabedoria e excelência no agir: nada melhor para um pupilo do que as preleções do mestre, induzidoras de um pensamento não dogmático, ativo, questionador, crítico, para o alcance de suas próprias conclusões, ganhos teóricos e benefícios práticos, auxiliando-o na conquista do que lhe falta.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lao-Tzu

(571 a.C. - 531 a.C.)

 

XXVII

 

O bom andarilho não deixa rastros.

O bom orador não precisa desmentir nada.

O bom matemático não precisa de um ábaco.

O bom guardião não precisa de fechadura nem de chave,

e mesmo assim ninguém pode abrir o que ele guardou.

O que sabe amarrar bem não precisa de corda nem de fitas,

e ainda assim ninguém pode desatar o que ele atou.

O Sábio sempre sabe como salvar os homens;

por isso não existem para ele homens abjetos.

Ele sempre sabe como salvar as coisas;

por isso para ele não há coisas abjetas.

Isso quer dizer: viver na lucidez.

Assim, os homens de bem ensinam aos menos bons.

Quem não honra seus mestres

nem ama sua própria matéria

estará em grave erro, a despeito de todo o seu conhecimento.

Esse é o grande segredo.

 

O Andarilho

(Josef Sigall: pintor polonês)

 

Referência:

 

LAO-TZU. XXVII - O bom andarilho não deixa rastros. Tradução de Margit Martincic. In: __________. Tao-Te King: o livro do sentido e da vida. Texto e comentário por Richard Wilhelm. Tradução de Margit Martincic. 1. ed., 15. reimp. São Paulo, SP: Pensamento, 2012. p. 63.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Roberto Malvezzi - III. Você nos propõe um paraíso

O poeta critica a superficialidade e a exploração por trás dos “paraísos artificiais” propostos pelo capitalismo, plenos de uma visão distorcida da realidade, destacando a importância de se reconhecer e enfrentar as injustiças e a opressão perpetuadas pelo sistema, palpável na multiplicação incontrolada de seus imolados: prostitutas, adictos, vítimas da violência relacionada ao tráfico de drogas etc.

 

A permear todo o arcabouço do capitalismo está o emprego abusivo da sexualidade humana para oferecer e vender seus produtos no mercado, superexpondo-a em letreiros e painéis eletrônicos, revistas, televisão e outras mídias, tudo para promover – e reproduzir à exaustão –, por meio de imagens e de práticas, os seus hedonistas ideais, com o objetivo, claro está, de fazer girar a sua máquina voraz, ávida de lucros.

 

J.A.R. – H.C.

 

Roberto Malvezzi

(n. 1953)

 

Os sete pecados do capital

 

III

 

Você nos propõe um paraíso

Inunda as cidades com seios, bundas

sexos expostos

Nos cartazes dos cinemas, nos posters

das bancas, nas capas de revistas,

nas telas de TV

Refina o vinho, doura os cigarros, enfeita

as vitrines e ateia fogo em nossa sensualidade

Mas é que você nos quer propor um paraíso

A cidade ideal – Pasárgada, Sodoma,

Gomorra – polui de fotos e estimula

nossos sentidos

Nas bacanais das madrugadas, nas orgias

das elites, no consumo dos tóxicos,

nas bebedeiras monumentais. Mas para você,

é esse o paraíso

As prostitutas dos templos cananeus,

as sodomias da Grécia, os banquetes de Roma

roubaram sua novidade. Seu paraíso

não é original

Na luz-negra das boates, luz-vermelha

das zonas, nos neons da cidade, a prostituta

apocalíptica mostra sua opressiva luxúria.

Você destrói um monumento de barro

e nos propõe como se fosse de bronze

Não contraproponho as virgens vestais,

nem a férrea ascética estoica

Curvo-me frente a amargura das prostitutas

do lixo, dos menores abandonados, viciados

enlouquecidos, dos assassinados

nos tráficos de entorpecentes

Assim, com os olhos encharcados

de crime e sangue,

contemplo atônito o seu paraíso.

 

Os ‘Outsiders’

(Andres Valencia: artista norte-americano)

 

Referência:

 

MALVEZZI, Roberto. III. Você nos propõe um paraíso. In: __________. Os sete pecados do capital. São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1982. p. 87-88. (Coleção ‘Grãos de trigo’; v. 1)

quinta-feira, 6 de março de 2025

Octavio Paz - Irmandade

A partir da epígrafe aposta por Paz ao poema, dedicando-o ao astrônomo alexandrino Cláudio Ptolomeu (~100 d.C. – ~170 d.C.), deduz-se a tencionada conexão entrevista pelo poeta entre o ser humano e o cosmos, através da metáfora da escritura: somos não apenas passivos espectadores do universo, senão sua parte integrante, vale dizer, uma manifestação da mesma força criativa que dá forma às estrelas e aos planetas.

 

Insertos nesse tecido cósmico, pomo-nos a interpretar as suas cordas em busca de sentido, contemplando o modo como os corpos celestes “escrevem” os seus temas orbitais. Mas a voz lírica também se reconhece “escritura”, imbuída de significado e transcendência, pois que, como todas, a par de sua própria identidade, há o outro lado a interpretá-la e reinterpretá-la – sugerindo haver uma linguagem partilhada por meio da qual cogitamos desvelar a face mais absconsa do mundo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Octavio Paz

(1914-1998)

 

Hermandad

 

Homenaje a Claudio Ptolomeo

 

Soy hombre: duro poco

y es enorme la noche.

Pero miro hacia arriba:

las estrellas escriben.

Sin entender comprendo:

también soy escritura

y en este mismo instante

alguien me deletrea.

 

Irmandade

(Sajja Sajjakul: artista tailandês)

 

Irmandade

 

Homenagem a Cláudio Ptolemeu

 

Sou homem: duro pouco

e enorme é a noite.

Porém olho para cima:

as estrelas escrevem.

Sem entender compreendo:

também sou escritura

e neste mesmo instante

alguém me soletra.

 

Referência:

 

PAZ, Octavio. Hermandad. In: __________. Obras completas. Obra poética II: 1969-1998. Árbol adentro: 1976-1988. Tomo XII. Edición del autor. 1. ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2004. p. 112. (‘Letras Mexicanas’)

quarta-feira, 5 de março de 2025

Herman Melville - O Tubarão das Maldivas

O poeta dedica-se a descrever poeticamente a relação de comensalismo entre os peixes-piloto e os tubarões, centrada numa aparente confiança que se estabelece sob uma dinâmica de desigualdade: de um lado, o “fleumático” e “pálido” esqualo – “devorador de hórrida carne” –; de outro, os “azuis e esguios” remeiros – amigáveis condutores do “rabugento” até as suas presas.

 

O retrato do tubarão pincelado por Melville contém imagens macabras desse terrível devorador das Maldivas – “cabeça gorgónea”, “dentes serrilhados”, “estômago sepulcral” –, o que parece não intimidar os acompanhantes, a despeito de todo o perigo à espreita: potenciais adversários, ambos os lados encontram forma de coexistência harmônica, numa convivência amistosa que, à primeira vista, teria tudo para ocorrer num cenário de hostilidades.

 

J.A.R. – H.C.

 

Herman Melville

(1819-1891)

 

The Maldive Shark

 

About the Shark, phlegmatical one,

Pale sot of the Maldive sea,

The sleek little pilot-fish, azure and slim,

How alert in attendance be.

From his saw-pit of mouth, from his charnel of maw

They have nothing of harm to dread,

But liquidly glide on his ghastly flank

Or before his Gorgonian head;

Or lurk in the port of serrated teeth

In white triple tiers of glittering gates,

And there find a haven when peril’s abroad,

An asylum in jaws of the Fates!

They are friends; and friendly they guide him to prey,

Yet never partake of the treat –

Eyes and brains to the dotard lethargic and dull,

Pale ravener of horrible meat.

 

In: “John Marr and Other Sailors” (1888)

 

Um grande tubarão branco macho e peixes-piloto

(Todd Winner: fotógrafo norte-americano)

 

O Tubarão das Maldivas

 

Rodeando do Tubarão, fleumático,

Ébrio pálido do mar das Maldivas,

Os pequenos, insinuantes peixes-piloto, azuis e esguios,

Quão alerta o seguem.

Da sua boca serrilhada, do seu estômago sepulcral

Nada têm a temer

Mas liquidamente deslizam sobre o seu pálido flanco

Ou frente à sua cabeça gorgónea;

Ou abrigam-se no porto de seus dentes serrilhados

Em brancas triplas fileiras de cintilantes cancelas,

E aí encontram proteção quando o perigo espreita,

Um asilo nas fauces das Parcas!

São amigos; e amigáveis conduzem-no à presa,

E jamais partilham o festim –

Olhos e cérebro para o rabugento, letárgico e torpe,

Pálido devorador de hórrida carne.

 

Em: “John Marr e Outros Marinheiros” (1888)

 

Referência:

 

MELVILLE, Herman. The Maldive shark / O tubarão das Maldivas. Tradução de Mário Avelar. In: __________. Poemas. Selecção, tradução e introdução de Mário Avelar. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, mar. 2009. Em inglês: p. 50; em português: p. 51.

terça-feira, 4 de março de 2025

Mauro Faccioni Filho - Primeiro Princípio da Dualidade

Neste poema de Faccioni, a fluidez das imagens e a justaposição de contrastes criam uma atmosfera de incerteza e de mudança, a desafiar a atenção do leitor para que reexamine as próprias percepções que tem do mundo, vale dizer, sobre a natureza dual da realidade e, mais amplamente, sobre a experiência humana.

 

Entre redigir um poema e escrever outro, entre aquilo que é pessoal e o que é público, entre a lentidão e a velocidade, entre o familiar e o estranho, entre o ordinário e o transcendental, entre as perguntas e as respostas, entre o princípio e o final: sob tais condições cambiantes imprevisíveis, tudo pode convergir para uma sensação de desorientação – até mesmo naqueles que, como os artífices da palavra, dependem da criatividade e da expressividade artística para afiliarem-se com méritos à casa da poesia.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mauro Faccioni Filho

(n. 1962)

 

Primeiro Princípio da Dualidade

 

sentei para escrever um poema e escrevi outro

sob os lençóis se mexeram seus pés nus

 

num livro – entre duas folhas – faltou a palavra

que na manhã seguinte estampou os jornais

 

a gota de sêmen – a peregrina lenta

enquanto aviões cruzaram o céu azul

 

a mesma rua que guardava em uma lembrança

surgiu numa manhã – bem longe da sua origem

 

e as placas estavam nos mesmos lugares marcados

mas vieram escritas numa língua estranha

 

sofrendo pela avalanche de perguntas sem respostas

você veio tocar-me a nuca sussurrando

 

e o que começou de um jeito acabou de outro

queimando verdades e véus e se apagando

 

A despedida de Telêmaco e Eucharis

(Jacques-Louis David: pintor francês)

 

Referência:

 

FACCIONI FILHO, Mauro. Primeiro princípio da dualidade. In: DEMARCHI, Ademir (Organização, Seleção e Apresentação). 101 poetas paranaenses: antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI; v. 2: 1959-1993. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura; Biblioteca Pública do Paraná, 2014. p. 103. (‘Biblioteca Paraná’)