Imre
Kertész – Sem Destino (Sorstalanság, 1975)
Em Inglês: Fateless
KERTÉSZ,
Imre. Sem destino. Tradução de Paulo
Schiller. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. 175 p.
O AUTOR
Imre Kertész nasceu
em Budapeste em 9 de novembro de 1929, no seio de uma modesta família judaica.
Em 1944, foi deportado para Auschwitz, com a idade de 14 anos, em seguida,
transferido para Buchenwald, onde foi libertado em meados da primavera de 1945,
com a queda do Terceiro Reich. Retornando à Hungria, passou a trabalhar, em
1948, para um jornal de Budapeste, Világosság, mas foi demitido em 1951, quando
o periódico adotou a linha do Partido Comunista. Depois de dois anos de serviço
militar, desde então tornou-se escritor independente e tradutor de autores
alemães como Nietzsche, Hofmannsthal, Schnitzler, Freud, Joseph Roth,
Wittgenstein e Canetti, os quais possuíam todo um significado para a sua
própria escrita.
Seu primeiro
romance, Sorstalanság (Fateless [eng.]; “Sem Destino” [port.]), foi publicado
em 1975, lida sobre o jovem György Köves, que é preso e levado a um campo de
concentração, mas se adapta e sobrevive. O romance usa o expediente alienante
de tomar a realidade do campo como admissível por inteiro, uma existência
cotidiana como qualquer outra, com condições ingratas, é certo, mas não sem
momentos de felicidade. Köves descreve os eventos como uma criança, sem os entender
completamente e sem os interpretar como antinaturais ou inquietantes - ele não
expressa as nossas respostas prontas. A credibilidade chocante da descrição
deriva talvez dessa ausência de qualquer elemento de indignação moral ou
protesto metafísico de que o sujeito costuma externar. O leitor é confrontado
não só com a crueldade das atrocidades, bem assim com a leviandade
característica com que eram executadas. Ambos, perpetradores e vítimas estavam
preocupados com os reiterados problemas práticos, as grandes questões não
existiam. A mensagem de Kertész é que viver é se adaptar. A capacidade de os
prisioneiros chegarem a termo com Auschwitz é o resultado do mesmo princípio
que encontra expressão na convivência humana cotidiana.
Mais tarde,
Sorstalanság converteu-se numa trilogia, com a incorporação de A Kudarc (“O
Fiasco”, 1988), e Kaddis a meg nim születt gyermekért (“Kadish por uma criança
não nascida”, 1992), este último sob a forma de oração para um nascituro, que
não haverá de tomar parte de um mundo capaz de gerar monstruosidades como Auschwitz.
Imre Kertész foi
agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2002 “por um trabalho que defende
a experiência frágil do indivíduo contra a cruel arbitrariedade da história”.
SÍNTESE
O
romance narra uma incursão, em regime de pesar antecipado, ao malfadado
universo dos campos de concentração. Não se destaca, portanto, pela
originalidade de sua história. Sem moldar-se como um acervo de fatos de horror
– embora alguns assomem bem distantes de um quotidiano que possa ser
considerado normal, afinal, estava-se num contexto de guerra, nomeadamente, o
dos derradeiros dias da 2GM –, configura um resgate de situações que mais
parecem absurdas, quase kafkianas, aos olhos de seu jovem narrador, György
Köves, quinze anos, húngaro de origem judaica. É, por conseguinte, essa mirada,
algo inusual na já copiosa literatura sobre o Holocausto – ficcional ou não –,
que torna o livro de Kertész atraente.
Cativo
numa mistura de línguas e nacionalidades, rejeitado como um judeu por judeus e
como um húngaro pelos húngaros, György esquece o seu nome e se adapta à
“estranha” vida dos campos de concentração. Ele é ajudado por um amigo e, em
seguida, por um prisioneiro de destaque que lhe dá o lugar num hospital, circunstância
que lhe permite sobreviver até a libertação do campo de Bunchevald.
Tudo
isso é visto pelos olhos de um adolescente ingênuo e às vezes gauche. A
narrativa é simples e discreta, com um foco, sobretudo, na experiência corporal
imediata e física da fome, dos maus-tratos e da doença.
Trata-se
de um romance quase autobiográfico, pois os fatos da vida de Imre Kertész são,
como se nota pela sua biografia, em grande parte lindeiros aos que descreve literariamente
pelo intelecto de seu personagem e alterego György. São como que memórias que
ficaram na mente do adulto, narradas de fato por este último, mas mantida a
perspectiva mental originária do adolescente, ou seja, sem atualizações
valorativas supervenientes que seriam esperáveis em face da maturação e do
conhecimento mais aprofundado dos eventos que, em relação a si próprio, não
resultaram fatais.
SÚMULA DOS
CAPÍTULOS
O
romance é estruturado em nove capítulos, ora mais curtos (Cap. II) ora mais
longos (Cap. IV), a descreverem todo o itinerário de György, desde sua saída de
Budapeste, até a chegada a Auschwitz, depois a Buchenwald e Zeitz, subsequente liberação
dos campos pelo término do conflito bélico e retorno à sua cidade natal.
Capítulo I: p. 7-22
(15 p.)
A
obra se inicia pela descrição dos preparativos do dia anterior à partida do pai
do relator a um campo de trabalho forçado: a compra de suprimentos – como se
houvesse prazo certo para o retorno, nos padrões de uma viagem planejada –, a
entrega das jóias e dos negócios da família a Sütö, um depositário de confiança
não judeu e, por fim, as despedidas finais.
Em
meio à cena familiar, em que se destacam as abordagens distintas de dois de
seus tios frente à situação dos judeus na Hungria e à presença indisfarçável do
antissemitismo – um, Vili, com perspectiva mais politizada, outro, Lajos, com
enfoque dominantemente religioso –, prevalece, nada obstante, certa distância
emocional de György em relação aos fatos, talvez por vergonha, tédio ou outro
mecanismo de defesa. Afinal, há passagens em que o protagonista, um adolescente
por então, parece não deter ainda o tino necessário para abordar de modo mais
exato (ou seria melhor dizer exaustivo?) o sentido dos eventos que lhe sucedem.
“Agora você
partilha do destino comum dos judeus”; depois estendeu-se, ressaltando que a
nossa sina era “a perseguição ininterrupta havia milênios”, que os judeus “têm
de aceitar com serenidade e resignação” os desígnios de Deus pelos pecados do
passado, e, portanto, somente d’Ele se poderia esperar misericórdia; enquanto
isso, Ele esperava que nessa grave situação resistíssemos no lugar escolhido
por Ele “segundo as nossas forças e capacidades” (Cap. I, p. 18).
Capítulo II: p.
23-31 (8 p.)
Alguns
meses depois da partida de seu pai, György é designado para trabalhar numa refinaria
de petróleo, para reparação de danos causados pelos ataques aéreos dos Aliados. Ainda que a estrela amarela que
passou a ostentar significasse, no geral, que não estava livre para transitar
além dos muros da cidade, interpreta-a como um privilégio da sorte, pois possuía
ainda certa liberdade de movimento pela detenção de documentos de identificação
legítimos, recebidos em face do trabalho que então passou a desenvolver.
György
conserva-se em boa saúde e é tratado decentemente. Ainda mantém contato com os
parentes: seu pai envia-lhe cartas do campo de trabalho onde se encontra. A
família sustém-se, entrementes, pelas provisões, de dinheiro e de alimentos,
que lhes são dirigidas por Sütö. Há ainda tempo para um rápido interlúdio
amoroso: enquanto está se escondendo de um ataque aéreo, György beija pela
primeira vez Annamária, uma garota de quatorze anos que mora no andar de cima.
Como sempre, eu visitava minha mãe duas vezes por semana, nas tardes
que a ela cabiam. Ali eu tinha mais problemas. Conforme meu pai havia previsto,
ela não se conformava com o fato de eu morar com minha madrasta. Dizia que eu
“pertencia” a ela, minha mãe. Porém, o tribunal me confiara a meu pai e, assim,
era essa a decisão que vigorava (Cap. II, p. 25).
Depois começou a pensar, procurou instruir-se do assunto por meio de
livros e conversas e foi obrigada a reconhecer: era exatamente por isso que a
odiavam. Na verdade, o ponto de vista dela era que de fato “nós, judeus, somos
diferentes dos demais”, era essa a diferença que importava e era por essa razão
que as pessoas odiavam os judeus. Também comentou que era estranho viver “com a
consciência da diferença” e como, algumas vezes, sentia certo orgulho e,
outras, uma espécie de vergonha. Quis saber como nos situávamos nessa diferença
e perguntou se nos orgulhávamos ou nos envergonhávamos dela. A irmã mais nova e
Annamária não sabiam o que dizer. Àquela altura, eu não via razões para tais
sentimentos. Além disso, não podíamos decidir acerca da diferença por conta
própria: afinal, a estrela amarela era boa justamente para isso. Mas ela
teimou: trazemos a diferença “dentro de nós” (Cap. II, p. 29).
Capítulo III: p.
32-43 (11 p.)
Certo
dia, o ônibus no qual se encontrava foi parado por um policial no caminho para
o trabalho, que ordenou o desembarque de todos os judeus – procedimento que
György logo descobre que está sendo repetido com todos os ônibus que por ali passam.
Depois de alguns contratempos por ausência de ordens superiores, os rapazes são
encaminhados a um novo local, repleto de prédios cinzentos, onde a guarda foi
substituída e os judeus encaminhados para dormir em um estábulo, local adequado
e que lhes pertence, segundo afirma o comandante. György então imagina uma
hipotética e fugaz cena: a de sua madrasta, debalde a esperá-lo para o jantar.
A caminhada começou
organizada em filas de três, que vinham ao mesmo tempo de todas as passagens de
fronteira, retornando na direção da cidade – certifiquei-me disso ao longo do
percurso. Vencida a ponte, encontramos em algumas curvas ou cruzamentos outros
grupos formados de um contingente maior ou menor de homens com a estrela
amarela acompanhado de um, dois e, em um dos casos, três guardas. [...] Por
fim, dei-me conta de que andava no meio de uma grande fila, ladeada pelos
guardas postados a intervalos regulares (Cap. III, p. 41).
Capítulo IV: p. 44-70 (27 p.)
Pouco
tempo se passa até que György e outros cerca de sessenta rapazes sejam alojados
em um vagão de trem para transporte de gado, com destino a lugares incógnitos.
Mas, efetivamente, eles acabam por desembarcar em Auschwitz, lugar onde serão
examinados e seus destinos definidos a partir de critérios como idade, estado
de saúde etc.
György,
por isso mesmo, fica apenas três dias em Auschwitz, antes de ser liberado a Buchenwald,
e, de lá, para um campo de concentração menor, Zeitz. Os primeiros dias
fixam-se indelevelmente em sua mente, quando percebe a dureza e o cansaço que estão
associados à rotina pesada e à elementar luta pela sobrevivência.
Apertou a máquina
contra o meu pescoço e aparou o meu cabelo até o último fio – fiquei
completamente careca. Depois, pegou a navalha, pediu que ficasse em pé e
erguesse o braço – fez o gesto – e raspou alguma coisa de minha axila.
Sentou-se no banco diante de mim. Nenhuma palavra, nenhuma observação, grudou o
meu órgão mais sensível e também dali raspou toda a coroa com a navalha, todos
os pelos, a última gota do meu orgulho masculino que começava a proliferar
havia pouco. Talvez não faça sentido, mas essa perda doeu mais que a do cabelo
(Cap. IV, p. 68).
Capítulo V: p. 71-92 (21 p.)
Ao
entrar em contato com outros prisioneiros, György acaba por descobrir que há
diferentes tipos de campos de concentração (“Konzentrationslager”): Auschwitz,
por exemplo, seria um campo de extermínio (“Vernichtungslager”), ao passo que Zeith
seria um campo de trabalho (“Arbeitslager”). É neste último destino que conhece
Bandi Citrom, um ucraniano, personagem que passa a lhe exercer certa
ascendência.
Quando
fica sabendo que Buchenwald pouco dista de Weimar, “célebre cidade do ponto de
vista da cultura” (p. 88), sem nomear o grande poeta alemão Goethe – de quem já
ouvira falar na escola –, György faz-lhe referência ao mencionar um de seus
mais famosos poemas, “Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?” [Quem cavalga
tão tarde com o vento na noite?]. Ademais, teria sido ali mesmo, em Buchenwald,
que Goethe, com as próprias mãos, teria plantado uma árvore cujas raízes haviam
se difundido prontamente pela terra.
Por outro lado –
espalhou-se a notícia –, nessa fábrica, por sorte, não teríamos de trabalhar:
se tudo corresse bem, se não pegássemos tifo, disenteria ou outra epidemia,
tranquilizaram-nos, seguiríamos em breve para um lugar mais acolhedor. Era por
isso que não trazíamos um número na roupa nem, sobretudo, na pele, como o nosso
superior, “o comandante do bloco”, como o chamavam. Desse número, por sua vez,
muitos se certificaram com os próprios olhos: era escrito em tinta verde, sobre
o pulso, como uma tatuagem permanente, feita com agulhas apropriadas. Foi nessa
hora que chegou aos meus ouvidos o relato dos voluntários que distribuíam a
sopa. Também eles tinham visto os números talhados na pele dos prisioneiros
mais antigos, na cozinha. A resposta, que passou de boca em boca, cujo sentido
buscavam e que repetiam sem parar ao meu redor, havia sido dada por um preso: o
que era aquilo? “Himmlische Telephonnummer”, ou seja, “telefone do céu”, teria
ele dito. Notei que a coisa fez todos ficarem pensativos e, embora eu não me
sentisse mais esclarecido, estranhei, sem dúvida, aquelas palavras (Cap. V, p.
75-76).
Depois entrávamos
em um corredor com janelas de correr de vidro, onde se certificavam de que não
tínhamos dentes de ouro. Companheiros que moravam ali havia mais tempo, com
cabelos, anotavam os nomes num livro grande e entregavam um triângulo amarelo e
uma tira larga, listrada, feitos de lona. No meio do triângulo, como símbolo de
que afinal de contas éramos húngaros, uma grande letra U; na tira lia-se um
número impresso, na minha, por exemplo, 64 921. Era aconselhável aprender o
quanto antes a pronúncia em alemão, com dureza e de modo compreensível, assim
“Vier und sechzig, neun, ein-und-zwanzig” [64 921], pois essa seria sempre a
resposta caso perguntassem quem eu era. Se não marcavam o número na pele e se,
angustiado, você fizesse essa pergunta na hora do banho, o velho prisioneiro,
com as mãos erguidas para o alto, negava, com os olhos voltados para os céus:
“Aber Mensch, um Gotteswillen! Wir sind nicht hier ja doch em Auschwitz!” [Mas
homem, pelo amor de Deus! De qualquer modo, nós não estamos em Auschwitz!]
(Cap. V, p. 86).
Capítulo VI: p. 93-116 (23 p.)
Em
nenhum outro capítulo da obra se descreve com maior nível de detalhamento o
processo de declínio físico – afinal, a fome grassava –, psicológico e
espiritual de György. É em meio a esse processo de decadência que enumera três
formas de fuga num campo de concentração, ou por outra, de superar a atroz
realidade que passa a vivenciar: a pura evasão mental; manter-se escondido em
algum lugar, à espera de que não houvesse contagem de prisioneiros pela manhã;
e tentativas de escapar do campo que, se resultassem em malogro, implicariam a
irreversível execução por asfixia.
Constatei naquele
dia que ao estar entre eles eu era por vezes tomado pelo constrangimento, pelo
incômodo que conhecia de casa, como se alguma coisa em mim não estivesse muito
bem, como se não estivesse inteiramente ajustado à situação, em suma: na
verdade, de certa forma, como se eu fosse judeu, de um modo um tanto inusitado,
apesar de estar entre judeus num campo de concentração (Cap. VI, p. 96).
Conheço três tipos
de caminhos, modos, para a fuga – porque os vi, ouvi ou vivenciei – num campo
de concentração. [,,,] A nossa natureza possui um território que, como aprendi,
é nossa propriedade perene, inalienável. É fato: a imaginação continua livre
mesmo na prisão. [...] Descobri que a imaginação não é de todo, ao menos em
certas condições, ilimitada. Pois com o mesmo esforço poderia estar em qualquer
lugar, em Calcutá, na Flórida ou nos lugares mais bonitos do mundo. Porém,
ainda assim, a fantasia não era muito séria, não conseguia acreditar nela – por
assim dizer –, e depois de algum tempo, na maioria das vezes, eu me via em
casa. [...] Já tinha ouvido dizer, e agora posso também testemunhar: na
realidade, para os voos da imaginação, as paredes estreitas da prisão não
estabelecem limites. A única falha: se eles me levassem longe, a ponto de me
fazer esquecer das mãos, o argumento mais pesado, mais categórico se via no
direito de me lembrar rapidamente da realidade ali presente (Cap. VI, p.
107-108).
Capítulo VII: p. 117-128 (11 p.)
O
processo de decadência de György, objeto de análise do capítulo anterior,
alcança o seu limite: nota-se, em seu discurso, a incapacidade de se perceber
como indivíduo e como pessoa; a redução de todas as suas percepções ao plano do
corpo – faminto, fraco, doente por uma infecção no joelho, vulnerável e em
avançada degradação –; a submissão completa, à seta do tempo, de uma existência
que perdeu as suas referências.
Já
próximo de desistir de si mesmo, György é devolvido a Buchenwald, um campo bem
maior, mais indiferenciado e bem mais fácil para se manter anônimo ou de se
perder, de modo a evitar ser notado.
A visão e o aroma
devem ter provocado no meu peito adormecido um sentimento crescente, capaz de
formar na umidade gelada que banhava o meu rosto algumas gotas mais quentes dos
meus olhos ressecados. E apesar de toda reflexão, razão, consciência, juízo,
não pude deixar de identificar em mim uma sensação furtiva, tênue, esperançosa,
como se envergonhada da insanidade, mas ainda obstinada: gostaria de viver mais
um pouco neste bonito campo de concentração (Cap. VII, p. 128).
Capítulo VIII: p. 129-158 (20 p.)
Em
Buchenwald, consegue restaurar a saúde, com a cura da infecção e das feridas
que lhe assolaram. Com a liberação do campo, em fins de abril de 1945, refaz
lentamente o caminho de volta, até sua casa em Budapeste.
O Pfleger [guarda]
dobrava em quatro e colocava sobre seus pés o cobertor em que ele o havia
trazido: parecia que o cobertor também estava a seu dispor, se você não se
sentisse satisfeito com a temperatura do quarto. Depois, com uma espécie de
cartolina e lápis nas mãos, ele sentava-se na borda da cama e perguntava seu
nome. Eu lhe dizia: “Vier und sechzig, neun, ein-und-zwanzig” [64 921]. Ele
anotava, mas insistia e demorava um pouco até você entender que o nome, o
“name” também lhe interessava, e de novo ele esperava – como ocorreu comigo –,
até que você desenterrasse e topasse com ele entre as duas lembranças. Fazia-me
repeti-lo três ou quatro vezes, até parecer entendê-lo. Depois, mostrava o que
tinha escrito e, no alto de uma espécie de folha de controle de febre, dividida
por linhas, lia: “Kewischtjerd”. Perguntava se “dobro jesz”, “gut” e eu dizia:
“Gut” – e, deixando a folha sobre a mesa, ele saía (Cap. VIII, p. 136).
Capítulo IX: p. 159-175 (16 p.)
Ao
longo do caminho, György encontra, com frequência, pessoas que lhe questionam
sobre as atrocidades que teria sofrido. Quando lhe perguntam sobre as câmaras
de gás nos campos, ele afirma que apenas teria ouvido falar sobre elas. Mais
tarde, perguntado por um jornalista se foi espancado, György responde:
“Naturalmente”. O jornalista diz-lhe que isso não é “natural”, embora para
György, isso seria perfeitamente natural num campo de concentração.
Quando
György bate à porta de sua casa, uma mulher lhe atende a afirmar que ali é o
exato lugar onde passou a morar. Posteriormente, ficou sabendo por alguns tios
que sua mãe ainda está viva e que sua madrasta casou-se com o Sr. Sütö,
passando a ocultar todos os haveres da família.
Eu poderia começar
uma vida nova somente se nascesse de novo – ponderei –, ou se um mal, uma
doença ou coisa parecida me comprometesse a razão, e isso eu esperava que não
me desejassem. “Além disso” – prossegui – “não vi horrores” – e nessa hora
notei que ficaram muitos surpresos. Como deveriam entender o meu “não vi”?
Dessa vez fui eu que perguntei: e eles, o que fizeram nos tais “tempos
difíceis”? “Bem... vivemos”, ruminou um deles. “Tentamos sobreviver” –
completou o outro (Cap. IX, p. 172).
Agora eu seria
capaz de lhe dizer o que significa “judeu”: nada, ao menos para mim,
originalmente, nada, antes de começarem os passos. “[...] Eu também vivi um
determinado destino”. Não era o meu destino, mas eu o vivi – e não o
compreendi, nem cabia na cabeça deles: agora tenho de fazer alguma coisa com
ele, ligá-lo a alguma coisa, não posso concluir que foi um engano, um acaso,
uma espécie de fuga, ou quem sabe não aconteceu (Cap. IX, p. 173).
Minha mãe me espera
e vai ficar feliz de verdade, a coitada. Lembro que um dia seu plano era que eu
fosse engenheiro, médico ou coisa parecida. E assim será, com certeza, como ela
deseja; não há impossibilidade que eu não possa viver, naturalmente, e sei que
no meu caminho me espreita, como uma armadilha inevitável, a felicidade. Pois
lá, entre durezas, havia, na pausa das torturas, alguma coisa que se
assemelhava à felicidade. Todos perguntam apenas das condições, dos “horrores”,
ao passo que, para mim, a experiência mais memorável é esta. Sim, da próxima
vez, se me perguntarem, eu deveria falar disso, falar da felicidade nos campos
de concentração. Se me perguntarem. E se eu não me esquecer (Cap. IX, p. 175).
APRECIAÇÃO
Não
se pode deixar de associar a capacidade que tem o adolescente de Kertész para
suplantar as agruras de um campo de concentração e ali buscar a felicidade, às
condições similares a que é submetido o personagem Ivan Denisovich, na obra
homônima de Alexander Solzhenitsyn: ambos fazem prevalecer o poder da psique
individual acima dos limites impostos pelos muros da prisão, sem que nisso se
perceba qualquer redução solipsista.
O
encanto e a ingenuidade com que os fatos são tratados por György fazem lembrar,
do mesmo modo, a abordagem lacerada das experiências vividas por Holden
Caulfield, em “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger. Em ambos,
por serem adolescentes, a realidade ainda não está suficientemente integrada e
explicada, mas aparece em surtos de racionalização. Ainda que sejam experiências
formativas, fincam, de toda forma, memórias difíceis de erradicar.
E
a escrita de Kertész produz os seus efeitos: há suficiente honestidade em sua
narrativa desapaixonada, de falaz simplicidade, algo idealista e quase
entusiástica das restrições dirigidas aos judeus. Muito embora György tenha
origem judaica, parece não tê-la quando aparenta estar “convencido” da
conveniência de tais restrições, veiculadas falaciosamente pela ideologia nazista
ou antissemita.
Dantesco,
surrealista, surpreendente a cada pronunciamento de György: tais são as
adjetivações possíveis para a obra. Um acento de gravidade para mais ou para
menos não é disparatado, a depender do ponto de vista do leitor. Contudo, até
mesmo pela forma como foi escrita, “Sem Destino” certamente não está entre as
melhores obras a retratarem o impacto que a vida nos campos de concentração
teve sobre os sobreviventes. Aliás, nem mesmo em termos literários vi algo mais
definitivo do que o longo documentário “Shoah”, de Claude Lanzmann, a que você, internauta,
pode assistir livremente no youtube. Confira e me dê razão (rs).
P.s.:
Há uma adaptação cinematográfica de 2005 para o livro sob análise, de autoria
do cineasta Lajos Koltai, também húngaro, que, aqui no Brasil, apareceu com o
título “Marcas da Guerra”. Obviamente, a adaptação à tela grande não faz
justiça integral à obra de Kertész. Confira também: você há de me dar razão
novamente (rs).
J.A.R./H.C.
Bom dia. Tenho procurado esse livro em praticamente tudo que é lugar, mas não encontro. Você, por acaso, teria alguma dica de como adquirir um exemplar? Grato.
ResponderExcluirCaro Osnaldo,
ResponderExcluirInfelizmente, doei o referido livro há quase um ano. E o pior é que o 'site' estante virtual não traz resultado de disponibilidade para aquisição do livro, em todo o Brasil.
Fico devendo a você. Se, por acaso, tiver alguma informação a respeito, entrarei novamente em contato. Ok?!
Um abraço.
J. A. Rodrigues