Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Imre Kertész – Sem Destino


Imre Kertész – Sem Destino (Sorstalanság, 1975)
Em Inglês: Fateless


KERTÉSZ, Imre. Sem destino. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. 175 p.

O AUTOR

Imre Kertész nasceu em Budapeste em 9 de novembro de 1929, no seio de uma modesta família judaica. Em 1944, foi deportado para Auschwitz, com a idade de 14 anos, em seguida, transferido para Buchenwald, onde foi libertado em meados da primavera de 1945, com a queda do Terceiro Reich. Retornando à Hungria, passou a trabalhar, em 1948, para um jornal de Budapeste, Világosság, mas foi demitido em 1951, quando o periódico adotou a linha do Partido Comunista. Depois de dois anos de serviço militar, desde então tornou-se escritor independente e tradutor de autores alemães como Nietzsche, Hofmannsthal, Schnitzler, Freud, Joseph Roth, Wittgenstein e Canetti, os quais possuíam todo um significado para a sua própria escrita.

Seu primeiro romance, Sorstalanság (Fateless [eng.]; “Sem Destino” [port.]), foi publicado em 1975, lida sobre o jovem György Köves, que é preso e levado a um campo de concentração, mas se adapta e sobrevive. O romance usa o expediente alienante de tomar a realidade do campo como admissível por inteiro, uma existência cotidiana como qualquer outra, com condições ingratas, é certo, mas não sem momentos de felicidade. Köves descreve os eventos como uma criança, sem os entender completamente e sem os interpretar como antinaturais ou inquietantes - ele não expressa as nossas respostas prontas. A credibilidade chocante da descrição deriva talvez dessa ausência de qualquer elemento de indignação moral ou protesto metafísico de que o sujeito costuma externar. O leitor é confrontado não só com a crueldade das atrocidades, bem assim com a leviandade característica com que eram executadas. Ambos, perpetradores e vítimas estavam preocupados com os reiterados problemas práticos, as grandes questões não existiam. A mensagem de Kertész é que viver é se adaptar. A capacidade de os prisioneiros chegarem a termo com Auschwitz é o resultado do mesmo princípio que encontra expressão na convivência humana cotidiana.

Mais tarde, Sorstalanság converteu-se numa trilogia, com a incorporação de A Kudarc (“O Fiasco”, 1988), e Kaddis a meg nim születt gyermekért (“Kadish por uma criança não nascida”, 1992), este último sob a forma de oração para um nascituro, que não haverá de tomar parte de um mundo capaz de gerar monstruosidades como Auschwitz.

Imre Kertész foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2002 “por um trabalho que defende a experiência frágil do indivíduo contra a cruel arbitrariedade da história”.


SÍNTESE

O romance narra uma incursão, em regime de pesar antecipado, ao malfadado universo dos campos de concentração. Não se destaca, portanto, pela originalidade de sua história. Sem moldar-se como um acervo de fatos de horror – embora alguns assomem bem distantes de um quotidiano que possa ser considerado normal, afinal, estava-se num contexto de guerra, nomeadamente, o dos derradeiros dias da 2GM –, configura um resgate de situações que mais parecem absurdas, quase kafkianas, aos olhos de seu jovem narrador, György Köves, quinze anos, húngaro de origem judaica. É, por conseguinte, essa mirada, algo inusual na já copiosa literatura sobre o Holocausto – ficcional ou não –, que torna o livro de Kertész atraente.

Cativo numa mistura de línguas e nacionalidades, rejeitado como um judeu por judeus e como um húngaro pelos húngaros, György esquece o seu nome e se adapta à “estranha” vida dos campos de concentração. Ele é ajudado por um amigo e, em seguida, por um prisioneiro de destaque que lhe dá o lugar num hospital, circunstância que lhe permite sobreviver até a libertação do campo de Bunchevald.

Tudo isso é visto pelos olhos de um adolescente ingênuo e às vezes gauche. A narrativa é simples e discreta, com um foco, sobretudo, na experiência corporal imediata e física da fome, dos maus-tratos e da doença.

Trata-se de um romance quase autobiográfico, pois os fatos da vida de Imre Kertész são, como se nota pela sua biografia, em grande parte lindeiros aos que descreve literariamente pelo intelecto de seu personagem e alterego György. São como que memórias que ficaram na mente do adulto, narradas de fato por este último, mas mantida a perspectiva mental originária do adolescente, ou seja, sem atualizações valorativas supervenientes que seriam esperáveis em face da maturação e do conhecimento mais aprofundado dos eventos que, em relação a si próprio, não resultaram fatais.

SÚMULA DOS CAPÍTULOS

O romance é estruturado em nove capítulos, ora mais curtos (Cap. II) ora mais longos (Cap. IV), a descreverem todo o itinerário de György, desde sua saída de Budapeste, até a chegada a Auschwitz, depois a Buchenwald e Zeitz, subsequente liberação dos campos pelo término do conflito bélico e retorno à sua cidade natal.

Capítulo I: p. 7-22 (15 p.)

A obra se inicia pela descrição dos preparativos do dia anterior à partida do pai do relator a um campo de trabalho forçado: a compra de suprimentos – como se houvesse prazo certo para o retorno, nos padrões de uma viagem planejada –, a entrega das jóias e dos negócios da família a Sütö, um depositário de confiança não judeu e, por fim, as despedidas finais.

Em meio à cena familiar, em que se destacam as abordagens distintas de dois de seus tios frente à situação dos judeus na Hungria e à presença indisfarçável do antissemitismo – um, Vili, com perspectiva mais politizada, outro, Lajos, com enfoque dominantemente religioso –, prevalece, nada obstante, certa distância emocional de György em relação aos fatos, talvez por vergonha, tédio ou outro mecanismo de defesa. Afinal, há passagens em que o protagonista, um adolescente por então, parece não deter ainda o tino necessário para abordar de modo mais exato (ou seria melhor dizer exaustivo?) o sentido dos eventos que lhe sucedem.

“Agora você partilha do destino comum dos judeus”; depois estendeu-se, ressaltando que a nossa sina era “a perseguição ininterrupta havia milênios”, que os judeus “têm de aceitar com serenidade e resignação” os desígnios de Deus pelos pecados do passado, e, portanto, somente d’Ele se poderia esperar misericórdia; enquanto isso, Ele esperava que nessa grave situação resistíssemos no lugar escolhido por Ele “segundo as nossas forças e capacidades” (Cap. I, p. 18).

Capítulo II: p. 23-31 (8 p.)

Alguns meses depois da partida de seu pai, György é designado para trabalhar numa refinaria de petróleo, para reparação de danos causados ​​pelos ataques aéreos dos Aliados. Ainda que a estrela amarela que passou a ostentar significasse, no geral, que não estava livre para transitar além dos muros da cidade, interpreta-a como um privilégio da sorte, pois possuía ainda certa liberdade de movimento pela detenção de documentos de identificação legítimos, recebidos em face do trabalho que então passou a desenvolver.

György conserva-se em boa saúde e é tratado decentemente. Ainda mantém contato com os parentes: seu pai envia-lhe cartas do campo de trabalho onde se encontra. A família sustém-se, entrementes, pelas provisões, de dinheiro e de alimentos, que lhes são dirigidas por Sütö. Há ainda tempo para um rápido interlúdio amoroso: enquanto está se escondendo de um ataque aéreo, György beija pela primeira vez Annamária, uma garota de quatorze anos que mora no andar de cima.

Como sempre, eu visitava minha mãe duas vezes por semana, nas tardes que a ela cabiam. Ali eu tinha mais problemas. Conforme meu pai havia previsto, ela não se conformava com o fato de eu morar com minha madrasta. Dizia que eu “pertencia” a ela, minha mãe. Porém, o tribunal me confiara a meu pai e, assim, era essa a decisão que vigorava (Cap. II, p. 25).

Depois começou a pensar, procurou instruir-se do assunto por meio de livros e conversas e foi obrigada a reconhecer: era exatamente por isso que a odiavam. Na verdade, o ponto de vista dela era que de fato “nós, judeus, somos diferentes dos demais”, era essa a diferença que importava e era por essa razão que as pessoas odiavam os judeus. Também comentou que era estranho viver “com a consciência da diferença” e como, algumas vezes, sentia certo orgulho e, outras, uma espécie de vergonha. Quis saber como nos situávamos nessa diferença e perguntou se nos orgulhávamos ou nos envergonhávamos dela. A irmã mais nova e Annamária não sabiam o que dizer. Àquela altura, eu não via razões para tais sentimentos. Além disso, não podíamos decidir acerca da diferença por conta própria: afinal, a estrela amarela era boa justamente para isso. Mas ela teimou: trazemos a diferença “dentro de nós” (Cap. II, p. 29).

Capítulo III: p. 32-43 (11 p.)

Certo dia, o ônibus no qual se encontrava foi parado por um policial no caminho para o trabalho, que ordenou o desembarque de todos os judeus – procedimento que György logo descobre que está sendo repetido com todos os ônibus que por ali passam. Depois de alguns contratempos por ausência de ordens superiores, os rapazes são encaminhados a um novo local, repleto de prédios cinzentos, onde a guarda foi substituída e os judeus encaminhados para dormir em um estábulo, local adequado e que lhes pertence, segundo afirma o comandante. György então imagina uma hipotética e fugaz cena: a de sua madrasta, debalde a esperá-lo para o jantar.

A caminhada começou organizada em filas de três, que vinham ao mesmo tempo de todas as passagens de fronteira, retornando na direção da cidade – certifiquei-me disso ao longo do percurso. Vencida a ponte, encontramos em algumas curvas ou cruzamentos outros grupos formados de um contingente maior ou menor de homens com a estrela amarela acompanhado de um, dois e, em um dos casos, três guardas. [...] Por fim, dei-me conta de que andava no meio de uma grande fila, ladeada pelos guardas postados a intervalos regulares (Cap. III, p. 41).

Capítulo IV: p. 44-70 (27 p.)

Pouco tempo se passa até que György e outros cerca de sessenta rapazes sejam alojados em um vagão de trem para transporte de gado, com destino a lugares incógnitos. Mas, efetivamente, eles acabam por desembarcar em Auschwitz, lugar onde serão examinados e seus destinos definidos a partir de critérios como idade, estado de saúde etc.

György, por isso mesmo, fica apenas três dias em Auschwitz, antes de ser liberado a Buchenwald, e, de lá, para um campo de concentração menor, Zeitz. Os primeiros dias fixam-se indelevelmente em sua mente, quando percebe a dureza e o cansaço que estão associados à rotina pesada e à elementar luta pela sobrevivência.

Apertou a máquina contra o meu pescoço e aparou o meu cabelo até o último fio – fiquei completamente careca. Depois, pegou a navalha, pediu que ficasse em pé e erguesse o braço – fez o gesto – e raspou alguma coisa de minha axila. Sentou-se no banco diante de mim. Nenhuma palavra, nenhuma observação, grudou o meu órgão mais sensível e também dali raspou toda a coroa com a navalha, todos os pelos, a última gota do meu orgulho masculino que começava a proliferar havia pouco. Talvez não faça sentido, mas essa perda doeu mais que a do cabelo (Cap. IV, p. 68).

Capítulo V: p. 71-92 (21 p.)

Ao entrar em contato com outros prisioneiros, György acaba por descobrir que há diferentes tipos de campos de concentração (“Konzentrationslager”): Auschwitz, por exemplo, seria um campo de extermínio (“Vernichtungslager”), ao passo que Zeith seria um campo de trabalho (“Arbeitslager”). É neste último destino que conhece Bandi Citrom, um ucraniano, personagem que passa a lhe exercer certa ascendência.

Quando fica sabendo que Buchenwald pouco dista de Weimar, “célebre cidade do ponto de vista da cultura” (p. 88), sem nomear o grande poeta alemão Goethe – de quem já ouvira falar na escola –, György faz-lhe referência ao mencionar um de seus mais famosos poemas, “Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?” [Quem cavalga tão tarde com o vento na noite?]. Ademais, teria sido ali mesmo, em Buchenwald, que Goethe, com as próprias mãos, teria plantado uma árvore cujas raízes haviam se difundido prontamente pela terra.

Por outro lado – espalhou-se a notícia –, nessa fábrica, por sorte, não teríamos de trabalhar: se tudo corresse bem, se não pegássemos tifo, disenteria ou outra epidemia, tranquilizaram-nos, seguiríamos em breve para um lugar mais acolhedor. Era por isso que não trazíamos um número na roupa nem, sobretudo, na pele, como o nosso superior, “o comandante do bloco”, como o chamavam. Desse número, por sua vez, muitos se certificaram com os próprios olhos: era escrito em tinta verde, sobre o pulso, como uma tatuagem permanente, feita com agulhas apropriadas. Foi nessa hora que chegou aos meus ouvidos o relato dos voluntários que distribuíam a sopa. Também eles tinham visto os números talhados na pele dos prisioneiros mais antigos, na cozinha. A resposta, que passou de boca em boca, cujo sentido buscavam e que repetiam sem parar ao meu redor, havia sido dada por um preso: o que era aquilo? “Himmlische Telephonnummer”, ou seja, “telefone do céu”, teria ele dito. Notei que a coisa fez todos ficarem pensativos e, embora eu não me sentisse mais esclarecido, estranhei, sem dúvida, aquelas palavras (Cap. V, p. 75-76).

Depois entrávamos em um corredor com janelas de correr de vidro, onde se certificavam de que não tínhamos dentes de ouro. Companheiros que moravam ali havia mais tempo, com cabelos, anotavam os nomes num livro grande e entregavam um triângulo amarelo e uma tira larga, listrada, feitos de lona. No meio do triângulo, como símbolo de que afinal de contas éramos húngaros, uma grande letra U; na tira lia-se um número impresso, na minha, por exemplo, 64 921. Era aconselhável aprender o quanto antes a pronúncia em alemão, com dureza e de modo compreensível, assim “Vier und sechzig, neun, ein-und-zwanzig” [64 921], pois essa seria sempre a resposta caso perguntassem quem eu era. Se não marcavam o número na pele e se, angustiado, você fizesse essa pergunta na hora do banho, o velho prisioneiro, com as mãos erguidas para o alto, negava, com os olhos voltados para os céus: “Aber Mensch, um Gotteswillen! Wir sind nicht hier ja doch em Auschwitz!” [Mas homem, pelo amor de Deus! De qualquer modo, nós não estamos em Auschwitz!] (Cap. V, p. 86).

Capítulo VI: p. 93-116 (23 p.)

Em nenhum outro capítulo da obra se descreve com maior nível de detalhamento o processo de declínio físico – afinal, a fome grassava –, psicológico e espiritual de György. É em meio a esse processo de decadência que enumera três formas de fuga num campo de concentração, ou por outra, de superar a atroz realidade que passa a vivenciar: a pura evasão mental; manter-se escondido em algum lugar, à espera de que não houvesse contagem de prisioneiros pela manhã; e tentativas de escapar do campo que, se resultassem em malogro, implicariam a irreversível execução por asfixia.

Constatei naquele dia que ao estar entre eles eu era por vezes tomado pelo constrangimento, pelo incômodo que conhecia de casa, como se alguma coisa em mim não estivesse muito bem, como se não estivesse inteiramente ajustado à situação, em suma: na verdade, de certa forma, como se eu fosse judeu, de um modo um tanto inusitado, apesar de estar entre judeus num campo de concentração (Cap. VI, p. 96).

Conheço três tipos de caminhos, modos, para a fuga – porque os vi, ouvi ou vivenciei – num campo de concentração. [,,,] A nossa natureza possui um território que, como aprendi, é nossa propriedade perene, inalienável. É fato: a imaginação continua livre mesmo na prisão. [...] Descobri que a imaginação não é de todo, ao menos em certas condições, ilimitada. Pois com o mesmo esforço poderia estar em qualquer lugar, em Calcutá, na Flórida ou nos lugares mais bonitos do mundo. Porém, ainda assim, a fantasia não era muito séria, não conseguia acreditar nela – por assim dizer –, e depois de algum tempo, na maioria das vezes, eu me via em casa. [...] Já tinha ouvido dizer, e agora posso também testemunhar: na realidade, para os voos da imaginação, as paredes estreitas da prisão não estabelecem limites. A única falha: se eles me levassem longe, a ponto de me fazer esquecer das mãos, o argumento mais pesado, mais categórico se via no direito de me lembrar rapidamente da realidade ali presente (Cap. VI, p. 107-108).

Capítulo VII: p. 117-128 (11 p.)

O processo de decadência de György, objeto de análise do capítulo anterior, alcança o seu limite: nota-se, em seu discurso, a incapacidade de se perceber como indivíduo e como pessoa; a redução de todas as suas percepções ao plano do corpo – faminto, fraco, doente por uma infecção no joelho, vulnerável e em avançada degradação –; a submissão completa, à seta do tempo, de uma existência que perdeu as suas referências.

Já próximo de desistir de si mesmo, György é devolvido a Buchenwald, um campo bem maior, mais indiferenciado e bem mais fácil para se manter anônimo ou de se perder, de modo a evitar ser notado.

A visão e o aroma devem ter provocado no meu peito adormecido um sentimento crescente, capaz de formar na umidade gelada que banhava o meu rosto algumas gotas mais quentes dos meus olhos ressecados. E apesar de toda reflexão, razão, consciência, juízo, não pude deixar de identificar em mim uma sensação furtiva, tênue, esperançosa, como se envergonhada da insanidade, mas ainda obstinada: gostaria de viver mais um pouco neste bonito campo de concentração (Cap. VII, p. 128).

Capítulo VIII: p. 129-158 (20 p.)

Em Buchenwald, consegue restaurar a saúde, com a cura da infecção e das feridas que lhe assolaram. Com a liberação do campo, em fins de abril de 1945, refaz lentamente o caminho de volta, até sua casa em Budapeste.

O Pfleger [guarda] dobrava em quatro e colocava sobre seus pés o cobertor em que ele o havia trazido: parecia que o cobertor também estava a seu dispor, se você não se sentisse satisfeito com a temperatura do quarto. Depois, com uma espécie de cartolina e lápis nas mãos, ele sentava-se na borda da cama e perguntava seu nome. Eu lhe dizia: “Vier und sechzig, neun, ein-und-zwanzig” [64 921]. Ele anotava, mas insistia e demorava um pouco até você entender que o nome, o “name” também lhe interessava, e de novo ele esperava – como ocorreu comigo –, até que você desenterrasse e topasse com ele entre as duas lembranças. Fazia-me repeti-lo três ou quatro vezes, até parecer entendê-lo. Depois, mostrava o que tinha escrito e, no alto de uma espécie de folha de controle de febre, dividida por linhas, lia: “Kewischtjerd”. Perguntava se “dobro jesz”, “gut” e eu dizia: “Gut” – e, deixando a folha sobre a mesa, ele saía (Cap. VIII, p. 136).

Capítulo IX: p. 159-175 (16 p.)

Ao longo do caminho, György encontra, com frequência, pessoas que lhe questionam sobre as atrocidades que teria sofrido. Quando lhe perguntam sobre as câmaras de gás nos campos, ele afirma que apenas teria ouvido falar sobre elas. Mais tarde, perguntado por um jornalista se foi espancado, György responde: “Naturalmente”. O jornalista diz-lhe que isso não é “natural”, embora para György, isso seria perfeitamente natural num campo de concentração.

Quando György bate à porta de sua casa, uma mulher lhe atende a afirmar que ali é o exato lugar onde passou a morar. Posteriormente, ficou sabendo por alguns tios que sua mãe ainda está viva e que sua madrasta casou-se com o Sr. Sütö, passando a ocultar todos os haveres da família.

Eu poderia começar uma vida nova somente se nascesse de novo – ponderei –, ou se um mal, uma doença ou coisa parecida me comprometesse a razão, e isso eu esperava que não me desejassem. “Além disso” – prossegui – “não vi horrores” – e nessa hora notei que ficaram muitos surpresos. Como deveriam entender o meu “não vi”? Dessa vez fui eu que perguntei: e eles, o que fizeram nos tais “tempos difíceis”? “Bem... vivemos”, ruminou um deles. “Tentamos sobreviver” – completou o outro (Cap. IX, p. 172).

Agora eu seria capaz de lhe dizer o que significa “judeu”: nada, ao menos para mim, originalmente, nada, antes de começarem os passos. “[...] Eu também vivi um determinado destino”. Não era o meu destino, mas eu o vivi – e não o compreendi, nem cabia na cabeça deles: agora tenho de fazer alguma coisa com ele, ligá-lo a alguma coisa, não posso concluir que foi um engano, um acaso, uma espécie de fuga, ou quem sabe não aconteceu (Cap. IX, p. 173).

Minha mãe me espera e vai ficar feliz de verdade, a coitada. Lembro que um dia seu plano era que eu fosse engenheiro, médico ou coisa parecida. E assim será, com certeza, como ela deseja; não há impossibilidade que eu não possa viver, naturalmente, e sei que no meu caminho me espreita, como uma armadilha inevitável, a felicidade. Pois lá, entre durezas, havia, na pausa das torturas, alguma coisa que se assemelhava à felicidade. Todos perguntam apenas das condições, dos “horrores”, ao passo que, para mim, a experiência mais memorável é esta. Sim, da próxima vez, se me perguntarem, eu deveria falar disso, falar da felicidade nos campos de concentração. Se me perguntarem. E se eu não me esquecer (Cap. IX, p. 175).

APRECIAÇÃO

Não se pode deixar de associar a capacidade que tem o adolescente de Kertész para suplantar as agruras de um campo de concentração e ali buscar a felicidade, às condições similares a que é submetido o personagem Ivan Denisovich, na obra homônima de Alexander Solzhenitsyn: ambos fazem prevalecer o poder da psique individual acima dos limites impostos pelos muros da prisão, sem que nisso se perceba qualquer redução solipsista.
                
O encanto e a ingenuidade com que os fatos são tratados por György fazem lembrar, do mesmo modo, a abordagem lacerada das experiências vividas por Holden Caulfield, em “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger. Em ambos, por serem adolescentes, a realidade ainda não está suficientemente integrada e explicada, mas aparece em surtos de racionalização. Ainda que sejam experiências formativas, fincam, de toda forma, memórias difíceis de erradicar.

E a escrita de Kertész produz os seus efeitos: há suficiente honestidade em sua narrativa desapaixonada, de falaz simplicidade, algo idealista e quase entusiástica das restrições dirigidas aos judeus. Muito embora György tenha origem judaica, parece não tê-la quando aparenta estar “convencido” da conveniência de tais restrições, veiculadas falaciosamente pela ideologia nazista ou antissemita.

Dantesco, surrealista, surpreendente a cada pronunciamento de György: tais são as adjetivações possíveis para a obra. Um acento de gravidade para mais ou para menos não é disparatado, a depender do ponto de vista do leitor. Contudo, até mesmo pela forma como foi escrita, “Sem Destino” certamente não está entre as melhores obras a retratarem o impacto que a vida nos campos de concentração teve sobre os sobreviventes. Aliás, nem mesmo em termos literários vi algo mais definitivo do que o longo documentário Shoah, de Claude Lanzmann, a que você, internauta, pode assistir livremente no youtube. Confira e me dê razão (rs).

P.s.: Há uma adaptação cinematográfica de 2005 para o livro sob análise, de autoria do cineasta Lajos Koltai, também húngaro, que, aqui no Brasil, apareceu com o título “Marcas da Guerra”. Obviamente, a adaptação à tela grande não faz justiça integral à obra de Kertész. Confira também: você há de me dar razão novamente (rs).

J.A.R./H.C.

2 comentários:

  1. Bom dia. Tenho procurado esse livro em praticamente tudo que é lugar, mas não encontro. Você, por acaso, teria alguma dica de como adquirir um exemplar? Grato.

    ResponderExcluir
  2. Caro Osnaldo,
    Infelizmente, doei o referido livro há quase um ano. E o pior é que o 'site' estante virtual não traz resultado de disponibilidade para aquisição do livro, em todo o Brasil.
    Fico devendo a você. Se, por acaso, tiver alguma informação a respeito, entrarei novamente em contato. Ok?!
    Um abraço.
    J. A. Rodrigues

    ResponderExcluir