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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Jung e Freud – Cinema e Texto


Há um tanto na teoria psicanalítica de Jung a extrapolar o meramente racional, núcleo que teria levado Freud a adverti-lo no sentido de que a Psicanálise – que àquela altura já sofria os embates dos questionamentos se seria ou não uma vertente científica dos processos da mente –, poderia ser alvo de objeções letais, caso suas investigações migrassem para dimensões, digamos assim, algo ocultistas. Mas isso não deteve o autor suíço e, inclusive, parece haver sido um dos motivos do rompimento entre os dois psicanalistas – embora não o principal.

A propósito, não faz muito tempo, assisti a um bom filme de David Cronemberg, “Um Método Perigoso” (A Dangerous Method – 2011), em que tais contendas foram tratadas pedagogicamente: a famosa passagem do “desmaio” de Freud, depois da disputa que teria engendrado o seu rompimento com Jung, ali assoma para as mais diversas interpretações. Uma delas, de natureza autogenamente psicanalítica, vê a síncope como consequência de um autêntico “parricídio” – o discípulo ou afilhado intelectual a eliminar o mestre ou pai orientador.

Aliás, o tema do parricídio foi tratado por Freud inúmeras vezes em seus escritos. O mais famoso deles faz referência à obra “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, trama na qual um dos irmãos assassina faticamente o próprio pai, embora outro assuma o parricídio a partir de sua supremacia e influência intelectual sobre os demais.

Contudo, Freud vai mais longe em seu exame dos acontecimentos narrados, ao produzir vastas laudas sobre as facetas da personalidade do autor russo que emergem de sua biografia e produção artística: o criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Logo, para quem aprecia a produção de Freud, vai aqui a sugestão de leitura do mencionado artigo (“Dostoiévski e o Parricídio”), que consta no Vol. XXI de suas “Obras Completas”, editada no Brasil pela Imago.

E já que fui tão longe nessa digressão freudiana, poderia sugerir outros dois ensaios, esplêndidos igualmente, e que são como provas contundentes de que Freud teria sido um grande escritor, se médico não houvesse se tornado: “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen” (Vol. IX) e “Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância” (Vol. XI).

Neste último, Freud faz especulações soberbas no afã de “provar” a natureza sexual invertida do artista da Renascença, hoje mais do que consabida, mas o que, ao derradeiro, soçobra não são suas conclusões – afinal, inferências sedimentadas em especulações, sob quaisquer hipóteses, não resultam em conclusões irrefutáveis –, senão um texto com tantas qualidades, que faria inveja mortal a muitos “imortais” da Academia Brasileira de Letras! (rs).

Mas agora girando a metralha do comento em direção oposta suplementar, para retomar a linha de seu escopo introdutório, transcrevo passagem do mesmo Jung sobre um tema tão caro aos humanos – exatamente o amor, que lhes permite a reprodução ad eternum da vida, em oposição ao decesso – recolhida em sua famosa autobiografia “Memórias, Sonhos e Reflexões”, de 1955.

Antes, observo que Jung parece haver percebido melhor que Freud a dimensão não racional e não explicável do universo. Afinal, a ciência não é capaz de apreender todos os fenômenos que permeiam o existir do cosmos, sejam eles racionais, irracionais ou não racionais, pois à sua mirada, eminentemente racional, escapam amplos espectros da realidade que não podem ser ignorados, porquanto conformam o “ambiente” a que os seres humanos se sujeitam ou no qual operam, em primeira escala, como agentes.

J.A.R. – H.C.
 

Últimos Pensamentos – III

Aqui se impõe uma outra realidade: ao lado do campo da reflexão, há outro domínio, pelo menos tão vasto quanto ele, ou talvez ainda mais vasto, onde a compreensão racional e a descrição dificilmente encontram algo que possam captar. É o domínio do Eros. Na Antiguidade, este era considerado como um deus cuja divindade ultrapassava as fronteiras do humano e que, portanto, não podia ser nem compreendido nem descrito. Eu poderia tentar abordar, como tantos outros o fizeram antes de mim, esse daimon, cuja eficácia se estende das alturas infinitas do Céu aos abismos tenebrosos do Inferno; mas falta-me a coragem de procurar a linguagem capaz de exprimir adequadamente o paradoxo infinito do amor. Eros é um kosmogonos, um criador, pai e mãe de toda consciência. A fórmula condicional de São Paulo: “... se eu não tiver amor...” parece-me ser o primeiro de todos os conhecimentos e a própria essência da divindade. Qualquer que seja a interpretação erudita da frase “Deus é amor” (João IV, 816), seu próprio enunciado confirma a divindade como complexio oppositorum – complementaridade, convivência dos opostos.

Tanto minha experiência médica como minha vida pessoal colocaram-me constantemente diante do mistério do amor e nunca fui capaz de dar-lhe uma resposta válida. Como Jó, tive que tapar a boca com a mão: “Prefiro tapar a boca com a mão. – Falei uma vez... não repetirei; – duas vezes... eu... nada acrescentarei”. Trata-se do que há de maior e de mais ínfimo, do mais longínquo e do mais próximo, do mais alto e do mais baixo e nunca qualquer um desses termos poderá ser pronunciado sem o seu oposto. Não há linguagem que esteja à altura deste paradoxo. O que quer que se diga, palavra alguma abarcará o todo. Ora, falar de aspectos particulares, onde só a totalidade tem sentido, é demasiado ou muito pouco. O amor (a caridade) “desculpa tudo, acredita em tudo, espera tudo, suporta tudo” (I Coríntios XIII, 7). Nada se poderá acrescentar a esta frase. Pois nós somos, no sentido mais profundo, as vítimas, ou os meios e instrumentos do “amor” cosmogônico. Coloco esta palavra entre aspas para indicar que não entendo por ela simplesmente um desejo, uma preferência, uma predileção, um anelo, ou sentimentos semelhantes, mas um todo, uno e indiviso, que se impõe ao indivíduo. O homem, como parte, não compreende o todo. Ele é subordinado a ele, está à sua mercê. Quer concorde ou se revolte, está preso ao todo, cativo dele. Depende dele, e sempre tem nele seu fundamento. O amor, para ele, é luz e trevas, cujo fim nunca pode ver. “O amor (a caridade) nunca termina”, quer o homem “fale pela boca dos anjos” ou prossiga com uma meticulosidade científica, nos últimos recantos, a vida da célula. Poderá dar ao amor todos os nomes possíveis e imagináveis de que dispõe; afinal, não fará mais do que abandonar-se a uma infinidade de ilusões. Mas se possuir um grão de sabedoria deporá as armas e chamará ignotum per ignotius (uma coisa ignorada por uma coisa ainda mais ignorada), isto é, pelo nome de Deus. Será uma confissão de humildade, de imperfeição, de dependência, mas ao mesmo tempo será o testemunho de sua liberdade de escolha entre a verdade e o erro.

Referência:
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Reunidas e editadas por Aniela Jaffé. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 305-306.

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