Em complemento à postagem precedente, trago
aos leitores algumas considerações ainda atinentes ao grande poeta visionário
William Blake, assim como a outros autores, desta feita em metacomentário aos
assentamentos de Harold Bloom, em seu livro “Gênio: os 100 autores mais
criativos da história da literatura”.
ESTRUTURA
DA OBRA
Antes de qualquer coisa, apreciaria
desenvolver um rápido escólio sobre a forma como o crítico norte-americano
estruturou o mencionado livro: sendo ele de origem judaica, empregou o
arcabouço da Cabala, para distribuir os 100 autores pelos 10 Sefirot (plural de Sefirah), sendo que, para cada Sefirah,
alocam-se dois grupos (ou lustros) de cinco escritores ou pensadores.
Segundo Bloom (2003, p. 13-14), os dez Sefirot da Cabala são emanações que se
encontram no cerne de Deus ou do Homem Divino, ou por outra, são atributos do gênio de Deus:
Os Sefirot são
metáforas tão abrangentes que se tornam, em si, poemas, ou mesmo poetas. [...]
É possível entender os Sefirot como luzes, textos ou estágios da criação. Neste
livro, os 100 gênios estão classificados em meus breves ensaios segundo os Sefirot
que me parecem, respectivamente, mais pertinentes, mas duas almas jamais
concordarão sobre o que lhes será mais pertinente (BLOOM, 2003, p. 14).
Ainda no preâmbulo da obra, constam alguns
considerandos sobre o Sefirah
denominado Yesod, onde foram
aglutinados autores tão diferentes quanto o mencionado Blake e, por exemplo, o italiano
Ítalo Calvino:
Em Yesod, o nono Sefirah
[o singular de Sefirot], às vezes traduzido por “origem”, constata-se uma
postura que remete ao antigo significado latino da palavra “gênio”, força
geradora. Sob a égide de Yesod inclui, primeiramente, uma série de mestres da
narrativa erótica: Flaubert, o português Eça de Queirós, o afro-brasileiro
Machado de Assis, o argentino Borges e o fabulista moderno italiano, Ítalo
Calvino. Aqui, uma segunda série é constituída por cinco vitalistas heroicos: o
profeta-poeta William Blake, o romancista profético D. H. Lawrence, o grande dramaturgo
norte-americano Tennessee Williams, fortemente influenciado por Lawrence e Hart
Crane, e dois poetas modernos originais, o austro-germânico Rilke e o italiano
Montale (BLOOM, 2003, p. 16).
Já muito mais à frente, exatamente no
exórdio do Lustro 17 do mesmo Yesod,
Bloom volta a explicar-se:
Yesod, traduzido
livremente como “fundação”, encerra dois significados afins: o impulso sexual
masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos
processos naturais. No primeiro lustro de Yesod, agrupei cinco mestres da
ficção que, a exemplo de outros anteriormente arrolados, podem ser considerados
ironistas trágicos, iniciando em Flaubert, o artista dos artistas,
especialmente em Madame Bovary (BLOOM, 2003, p. 667).
E, por fim, no Lustro 18, idem do Sefirah em foco, acrescenta:
Yesod é a base da
vida apaixonada e, neste segundo Lustro, reuni cinco visionários, ao mesmo
tempo diferentes entre si e aliados, em termos de intensidade e força
transformadora (BLOOM, 2003, p. 707).
PONDERAÇÕES
Começo por observar que Bloom, como que a
reconhecer o caráter altamente subjetivo de seus agrupamentos e respectivas
disposições nos Sefirot da Cabala, antecipa-se
às críticas, formulando a ideia de que o julgamento de pertinência dificilmente
logra obter consenso.
E é isso mesmo, se assim lhe parece! Será
que a obra de Machado de Assis, por exemplo, tem um componente erótico
acentuado para merecer essa qualificação pelo crítico americano? Será que uma
história especulativa de traição, tal como “Dom Casmurro”, poderia ser
qualificada como tal? Não há muito mais do que isso em Machado que se associe
ao lascivo! Caso afirmativo, por que será que o crítico não juntou ao grupo o
grande Liev Tolstói, o maior dos autores sobre o tema, com o seu “Anna
Karenina”? Por que deixar Flaubert e Machado órfãos de companhia na
descontrução – ou seria destruição? – da imagem feminina? (rs).
Na melhor das hipóteses, como em Eça de
Queirós, pode-se falar em um estado latente de sensualidade na obra em prosa de
Machado, mas nunca explícito, como seria o caso, v.g., em Philip Roth!
E se já fui tão longe nesta trilha
digressiva, julgo que “erótico” seja exatamente isso: uma explicitude nas descrições
que evidenciem os intentos, tal como ocorre em “Complexo de Portnoy” ou “Teatro
de Sabbath”, mas sem descambar para a pornografia barata.
Se o mote do livro de Bloom não fosse a
criatividade, poderia sugerir até mesmo os escritos do Marquês de Sade, porque para ser irrefutavelmente
criativo no sexo, só se esmerando nas inúmeras posições do “Kama Sutra”: que
maravilha aqueles templos todos lá na milenária Índia, fazendo a apologia do
sexo explícito e maravilhando a muitos, inclusive ao Nobel Octavio Paz, que lá
esteve em missão diplomática! (rs)...
Retomando o argumento: talvez o atributo
mais acertado para escritores como Machado e Eça seja o de “ironistas”, o
primeiro quando decompõe com fino trato o comportamento humano mais
descalibrado, e o segundo ao incutir um viés antirreligioso em muitas de suas
obras. Em ambos, como em Flaubert, percebe-se, ademais, o perfil mais terra-a-terra de seus temas.
Mas o que fazem no mesmo Sefirot as obras de Borges e de Calvino?
De fato, são trabalhos mais imaginativos, no ramo do fantástico, não na mesma
linha visionária de Blake, autor que, Bloom reconhece, mais se parece com Dante
ou Milton.
Em suma: há uma heterogenia nos agrupados
de Yesod, que se materializa na
escolha de autores que ou bem estão nas imediações da experiência humana mais
profana, ou bem, sem os pés no chão, compaginam-se em enciclopédias de
experiências quiméricas.
Blake é um destes últimos: sua capacidade
de criar “metáforas conceituais” configura, para Bloom, a essência de sua
poesia (BLOOM, 2003, p. 716). “A essência do gênio de Blake é a exuberância, a
autonomia, a coragem de repensar e rever tudo através de uma perspectiva
pessoal” (BLOOM, 2003, p. 716), arremata.
E uma vez que se empregou o vocábulo “exuberância”,
resgato um dos “Provérbios do Inferno”, da pena de Blake em pessoa: “Exuberância
é beleza” (BLAKE, 2011, p. 25). E isso representa muito do que a sua poesia
efetivamente é, sob quaisquer prismas em que se a avalie.
E devo confessar que, embora tenha lido
poucas obras de Blake, todas me impressionaram pelo mesmo efeito: o poder das
imagens formuladas, nas quais de todo modo, ratifico, capturar as propriedades
do “élan vital” somente teria sentido se a experiência expressasse alguma similaridade,
por exemplo, ao êxtase de Tereza D’Ávila: intérpretes há que nele veem certa
dimensão erótica!
Leia com atenção o trecho abaixo, já
transcrito no “post” anterior:
Pois foi ordenado
ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e,
quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e
purificada, pois agora apresenta-se finita e corrompida.
E
isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual (BLAKE, 2011, p. 30).
O trecho em negrito, digam-me, não tem
forte correlação com a experiência mística de Tereza?
Mas vá lá: contemporizemos com Bloom. Há
suficiente amplitude naquilo que se pode considerar como erótico, desde a paixão oculta ou platônica até a mais explícita relação sexual a céu aberto. E muito
do que configura os fatos é objeto das mais diversificadas formas de interpretação.
Interpretação e superinterpretação, diria Umberto Eco.
Mas será mesmo que todas as interpretações
são possíveis? Ou como entende Eco, há limites à interpretação?!
Com você, leitor, o veredito! Leia o livro
de Bloom e conclua por si mesmo: Bloom tem ampla cultura literária e você,
certamente, usufruirá de um texto belamente escrito. Trata-se de um lídimo esteta da palavra, a alçar, como se disse alhures, a metaliteratura ou a
crítica literária ao mesmo nível da própria literatura!
J.A.R. – H.C.
Referências:
BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura.
Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
BLAKE, William. Uma visão memorável. In: O casamento do céu e do inferno &
Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM,
2011.
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