Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Bloom, Blake & Outros

Em complemento à postagem precedente, trago aos leitores algumas considerações ainda atinentes ao grande poeta visionário William Blake, assim como a outros autores, desta feita em metacomentário aos assentamentos de Harold Bloom, em seu livro “Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura”. 

ESTRUTURA DA OBRA
Antes de qualquer coisa, apreciaria desenvolver um rápido escólio sobre a forma como o crítico norte-americano estruturou o mencionado livro: sendo ele de origem judaica, empregou o arcabouço da Cabala, para distribuir os 100 autores pelos 10 Sefirot (plural de Sefirah), sendo que, para cada Sefirah, alocam-se dois grupos (ou lustros) de cinco escritores ou pensadores.
Segundo Bloom (2003, p. 13-14), os dez Sefirot da Cabala são emanações que se encontram no cerne de Deus ou do Homem Divino, ou por outra, são atributos do gênio de Deus:
Os Sefirot são metáforas tão abrangentes que se tornam, em si, poemas, ou mesmo poetas. [...] É possível entender os Sefirot como luzes, textos ou estágios da criação. Neste livro, os 100 gênios estão classificados em meus breves ensaios segundo os Sefirot que me parecem, respectivamente, mais pertinentes, mas duas almas jamais concordarão sobre o que lhes será mais pertinente (BLOOM, 2003, p. 14).
Ainda no preâmbulo da obra, constam alguns considerandos sobre o Sefirah denominado Yesod, onde foram aglutinados autores tão diferentes quanto o mencionado Blake e, por exemplo, o italiano Ítalo Calvino:
Em Yesod, o nono Sefirah [o singular de Sefirot], às vezes traduzido por “origem”, constata-se uma postura que remete ao antigo significado latino da palavra “gênio”, força geradora. Sob a égide de Yesod inclui, primeiramente, uma série de mestres da narrativa erótica: Flaubert, o português Eça de Queirós, o afro-brasileiro Machado de Assis, o argentino Borges e o fabulista moderno italiano, Ítalo Calvino. Aqui, uma segunda série é constituída por cinco vitalistas heroicos: o profeta-poeta William Blake, o romancista profético D. H. Lawrence, o grande dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, fortemente influenciado por Lawrence e Hart Crane, e dois poetas modernos originais, o austro-germânico Rilke e o italiano Montale (BLOOM, 2003, p. 16).
Já muito mais à frente, exatamente no exórdio do Lustro 17 do mesmo Yesod, Bloom volta a explicar-se:
Yesod, traduzido livremente como “fundação”, encerra dois significados afins: o impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos processos naturais. No primeiro lustro de Yesod, agrupei cinco mestres da ficção que, a exemplo de outros anteriormente arrolados, podem ser considerados ironistas trágicos, iniciando em Flaubert, o artista dos artistas, especialmente em Madame Bovary (BLOOM, 2003, p. 667).
E, por fim, no Lustro 18, idem do Sefirah em foco, acrescenta:
Yesod é a base da vida apaixonada e, neste segundo Lustro, reuni cinco visionários, ao mesmo tempo diferentes entre si e aliados, em termos de intensidade e força transformadora (BLOOM, 2003, p. 707).
 
PONDERAÇÕES
Começo por observar que Bloom, como que a reconhecer o caráter altamente subjetivo de seus agrupamentos e respectivas disposições nos Sefirot da Cabala, antecipa-se às críticas, formulando a ideia de que o julgamento de pertinência dificilmente logra obter consenso.
E é isso mesmo, se assim lhe parece! Será que a obra de Machado de Assis, por exemplo, tem um componente erótico acentuado para merecer essa qualificação pelo crítico americano? Será que uma história especulativa de traição, tal como “Dom Casmurro”, poderia ser qualificada como tal? Não há muito mais do que isso em Machado que se associe ao lascivo! Caso afirmativo, por que será que o crítico não juntou ao grupo o grande Liev Tolstói, o maior dos autores sobre o tema, com o seu “Anna Karenina”? Por que deixar Flaubert e Machado órfãos de companhia na descontrução – ou seria destruição? – da imagem feminina? (rs).
Na melhor das hipóteses, como em Eça de Queirós, pode-se falar em um estado latente de sensualidade na obra em prosa de Machado, mas nunca explícito, como seria o caso, v.g., em Philip Roth!
E se já fui tão longe nesta trilha digressiva, julgo que “erótico” seja exatamente isso: uma explicitude nas descrições que evidenciem os intentos, tal como ocorre em “Complexo de Portnoy” ou “Teatro de Sabbath”, mas sem descambar para a pornografia barata.
Se o mote do livro de Bloom não fosse a criatividade, poderia sugerir até mesmo os escritos do Marquês de Sade, porque para ser irrefutavelmente criativo no sexo, só se esmerando nas inúmeras posições do “Kama Sutra”: que maravilha aqueles templos todos lá na milenária Índia, fazendo a apologia do sexo explícito e maravilhando a muitos, inclusive ao Nobel Octavio Paz, que lá esteve em missão diplomática! (rs)...
Retomando o argumento: talvez o atributo mais acertado para escritores como Machado e Eça seja o de “ironistas”, o primeiro quando decompõe com fino trato o comportamento humano mais descalibrado, e o segundo ao incutir um viés antirreligioso em muitas de suas obras. Em ambos, como em Flaubert, percebe-se, ademais, o perfil mais terra-a-terra de seus temas.
Mas o que fazem no mesmo Sefirot as obras de Borges e de Calvino? De fato, são trabalhos mais imaginativos, no ramo do fantástico, não na mesma linha visionária de Blake, autor que, Bloom reconhece, mais se parece com Dante ou Milton.
Em suma: há uma heterogenia nos agrupados de Yesod, que se materializa na escolha de autores que ou bem estão nas imediações da experiência humana mais profana, ou bem, sem os pés no chão, compaginam-se em enciclopédias de experiências quiméricas.
Blake é um destes últimos: sua capacidade de criar “metáforas conceituais” configura, para Bloom, a essência de sua poesia (BLOOM, 2003, p. 716). “A essência do gênio de Blake é a exuberância, a autonomia, a coragem de repensar e rever tudo através de uma perspectiva pessoal” (BLOOM, 2003, p. 716), arremata.
E uma vez que se empregou o vocábulo “exuberância”, resgato um dos “Provérbios do Inferno”, da pena de Blake em pessoa: “Exuberância é beleza” (BLAKE, 2011, p. 25). E isso representa muito do que a sua poesia efetivamente é, sob quaisquer prismas em que se a avalie.
E devo confessar que, embora tenha lido poucas obras de Blake, todas me impressionaram pelo mesmo efeito: o poder das imagens formuladas, nas quais de todo modo, ratifico, capturar as propriedades do “élan vital” somente teria sentido se a experiência expressasse alguma similaridade, por exemplo, ao êxtase de Tereza D’Ávila: intérpretes há que nele veem certa dimensão erótica!
Leia com atenção o trecho abaixo, já transcrito no “post” anterior:
Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e, quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita e corrompida.
E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual (BLAKE, 2011, p. 30).
O trecho em negrito, digam-me, não tem forte correlação com a experiência mística de Tereza?
Mas vá lá: contemporizemos com Bloom. Há suficiente amplitude naquilo que se pode considerar como erótico, desde a paixão oculta ou platônica até a mais explícita relação sexual a céu aberto. E muito do que configura os fatos é objeto das mais diversificadas formas de interpretação. Interpretação e superinterpretação, diria Umberto Eco.
Mas será mesmo que todas as interpretações são possíveis? Ou como entende Eco, há limites à interpretação?!
Com você, leitor, o veredito! Leia o livro de Bloom e conclua por si mesmo: Bloom tem ampla cultura literária e você, certamente, usufruirá de um texto belamente escrito. Trata-se de um lídimo esteta da palavra, a alçar, como se disse alhures, a metaliteratura ou a crítica literária ao mesmo nível da própria literatura!
J.A.R. – H.C.
Referências:
BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
BLAKE, William. Uma visão memorável. In: O casamento do céu e do inferno & Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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