Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 23 de fevereiro de 2014

William Blake – O Infinito e o Divino


Em interpretação livre de uma das visões memoráveis – exatamente a segunda –, a compor o famoso opúsculo “O Casamento do Céu e Inferno”, do poeta britânico William Blake (1757-1827), o não menos notável mitólogo norte-americano Joseph Campbell, do alto de sua erudição sobre o tema das crenças que habitam o imaginário humano, assim a sintetiza:

Remove os querubins do portal e verás que tudo é infinito. Limparás o desejo e o medo de teus olhos e contemplarás tudo como uma revelação do Divino [1].

No original:

“Remove the cherubim from the gate, and you will see that everything is infinite. You will clean desire and fear from your eyes and will behold everything as a revelation of the Divine”. [2]


A visão completa de Blake, como se nota a seguir, rompe de fato a ancoragem do real, por intermédio de um diálogo imaginário, travado pelo próprio Bakle com os profetas bíblicos Isaías e Ezequiel:

Uma Visão Memorável [3]

Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo. Perguntei-lhes como se atreviam a afirmar que Deus falava com eles; e se não achavam que isto os tornava incompreendidos e passíveis de perseguição.

Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e finita; meus sentidos descobriram o infinito em cada coisa, e como desde então estivesse convicto e recebesse o sinal que a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às consequências escrevi”.

Então perguntei: – “A firme convicção de que uma coisa é, assim pode torná-la?”.
Ele respondeu: – “Todos os poetas têm a certeza disto e em épocas de imaginação esta fé inquebrantável moveu montanhas. No entanto, poucos conseguem ter essa firme convicção de qualquer coisa”.

Ezequiel retrucou: “A filosofia do Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana. Algumas nações adotaram um princípio para a origem. Outras criaram versões distintas para explicá-la. Nós, de Israel, ensinamos que o Gênio Poético (como agora o denominam) foi o princípio básico e os demais não passam de meras derivações. Esta é a razão de nosso desprezo pelos Filósofos e Sacerdotes de outros países. Profetizamos, e disto não resta dúvida, que todos os Deuses são originários do nosso e tributários do Gênio Poético. Foi precisamente isto que nosso grande poeta, o Rei Davi, desejava mais fervorosamente e evocou de forma tão enternecedora, exprimindo que é assim que triunfa-se sobre os inimigos e governa-se os reinos. Tanto amamos nosso Deus que em seu nome desdenhamos todas as deidades das nações vizinhas, afirmando que elas haviam se rebelado: Daí advém que o vulgo acabasse por acreditar que todas as nações seriam submetidas pelos judeus”.

“Isto” disse ele, “como todas as firmes convicções, está prestes a se realizar já que todas as nações acreditam no código judaico e veneram o Deus dos judeus. Que maior sujeição poderia haver?”.

Ouvi assombrado e não pude deixar de confessar minha própria convicção. Terminado o jantar, pedi a Isaías que regalasse o mundo revelando suas obras perdidas. Ele respondeu que nenhuma obra de valor se perdera. Das suas obras, Ezequiel afirmou o mesmo.

Também perguntei a Isaías o que levara-lhe a vagar desnudo por três anos. Ele respondeu: – “O mesmo que impeliu nosso amigo Diógenes, o Grego”.

Perguntei então a Ezequiel por que deglutira esterco e permanecera por tanto tempo deitado de lado direito e esquerdo. Ele respondeu: – “Para elevar os homens à percepção do infinito. As tribos norte-americanas também utilizam esta prática e poder-se-ia dizer honesto aquele que, resistindo a seu gênio ou consciência, os troca pelo bem-estar e a satisfação Imediata?”.

A antiga crença de que o mundo será consumido pelo fogo ao cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas do Inferno.

Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e, quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita e corrompida.

E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual.

Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis e terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes oculto.

Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita.

Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.

Contudo, a visão de Blake não levou a outras associações de cunho profético-religioso de mesma envergadura, mas, sobretudo, a dois inesperados encaminhamentos, quase que inter-relacionados: primeiramente, à menção de seu penúltimo parágrafo como epígrafe ao livro “As Portas da Percepção”, de Aldous Huxley, e depois, pela via indireta, à adoção do designativo “The Doors”, por uma banda californiana de rock, em referência à mesma passagem.

Como a psicodelia era a “moda” na virada dos anos 60/70, obviamente que a experiência não poderia passar sem provas que envolvessem drogas psicotrópicas: nomeadamente, a mescalina, na obra de Huxley, e o uso de um mix de álcool e heroína pela banda, ou melhor, por seu líder, Jim Morrison, que, em última instância, acabou por levá-lo prematuramente ao fim. Ou seria mesmo ao infinito? (rs).

Mas a obra de Blake não é a única que mereceu a detida atenção de Joseph Campbell: seu interesse é difuso, o que o leva a deambular por muitos domínios, um dos quais a alta literatura, sempre em busca de apreender as propriedades que os mitos incorporam e os modos pelos quais os artistas as externalizam em suas criações.


Com efeito, “Mitologia Criativa”, o último volume de sua tetralogia “As Máscaras de Deus”, contém, entre outras, análises minuciosas e precisas sobre as obras de James Joyce e Thomas Mann. É a leitura do momento. Em breve, espero postar aqui uma resenha sobre o referido volume.

Abraços.

J.A.R.-H.C.

Referências:

[1]. CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. Tradução Edson Bini. São Paulo: Landy, 2002. p. 114.

[2]. CAMPBELL, Joseph. Thou art that. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2014. p. 80.

[3]. BLAKE, William. Uma visão memorável. In: O casamento do céu e do inferno & Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 28-30.

2 comentários:

  1. Quem é o autor da imagem que parecem ser "3 anjos"?

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    1. Prezada Maria José: Infelizmente, de modo contrário ao que costumeiramente faço, promovi a postagem de que se trata sem identificar o autor da pintura. Mas, como se pode ratificar no endereço do próprio artista, a seguir, ela tem por autor J. Kirk Richards: http://www.jkirkrichards.com/store/templatelist_cat.php?category=fine+art+prints.
      Caso queira consultar também a sua biografia, eis aqui 'link':
      http://www.jkirkrichards.com/bio.html
      Atenciosamente,
      J. A. Rodrigues

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