Em interpretação livre de uma
das visões memoráveis – exatamente a segunda –, a compor o famoso opúsculo “O Casamento do Céu e Inferno”, do poeta
britânico William Blake (1757-1827), o não menos notável mitólogo
norte-americano Joseph Campbell, do alto de sua erudição sobre o tema das crenças
que habitam o imaginário humano, assim a sintetiza:
“Remove os querubins do portal e verás
que tudo é infinito. Limparás o desejo e o medo de teus olhos e contemplarás
tudo como uma revelação do Divino” [1].
No original:
“Remove
the cherubim from the gate, and you will see that everything is infinite. You
will clean desire and fear from your eyes and will behold everything as a
revelation of the Divine”. [2]
A visão completa de Blake, como
se nota a seguir, rompe de fato a ancoragem do real, por intermédio de um
diálogo imaginário, travado pelo próprio Bakle com os profetas bíblicos Isaías
e Ezequiel:
Uma Visão Memorável [3]
Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam
comigo. Perguntei-lhes como se atreviam a afirmar que Deus falava com eles; e
se não achavam que isto os tornava incompreendidos e passíveis de perseguição.
Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou
ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e finita; meus sentidos descobriram
o infinito em cada coisa, e como desde então estivesse convicto e recebesse o
sinal que a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às consequências escrevi”.
Então perguntei: – “A firme convicção de
que uma coisa é, assim pode torná-la?”.
Ele respondeu: – “Todos os poetas têm a
certeza disto e em épocas de imaginação esta fé inquebrantável moveu montanhas.
No entanto, poucos conseguem ter essa firme convicção de qualquer coisa”.
Ezequiel retrucou: “A filosofia do
Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana. Algumas nações
adotaram um princípio para a origem. Outras criaram versões distintas para
explicá-la. Nós, de Israel, ensinamos que o Gênio Poético (como agora o
denominam) foi o princípio básico e os demais não passam de meras derivações.
Esta é a razão de nosso desprezo pelos Filósofos e Sacerdotes de outros países.
Profetizamos, e disto não resta dúvida, que todos os Deuses são originários do
nosso e tributários do Gênio Poético. Foi precisamente isto que nosso grande
poeta, o Rei Davi, desejava mais fervorosamente e evocou de forma tão enternecedora,
exprimindo que é assim que triunfa-se sobre os inimigos e governa-se os reinos.
Tanto amamos nosso Deus que em seu nome desdenhamos todas as deidades das
nações vizinhas, afirmando que elas haviam se rebelado: Daí advém que o vulgo
acabasse por acreditar que todas as nações seriam submetidas pelos judeus”.
“Isto” disse ele, “como todas as firmes
convicções, está prestes a se realizar já que todas as nações acreditam no
código judaico e veneram o Deus dos judeus. Que maior sujeição poderia haver?”.
Ouvi assombrado e não pude deixar de
confessar minha própria convicção. Terminado o jantar, pedi a Isaías que
regalasse o mundo revelando suas obras perdidas. Ele respondeu que nenhuma obra
de valor se perdera. Das suas obras, Ezequiel afirmou o mesmo.
Também perguntei a Isaías o que
levara-lhe a vagar desnudo por três anos. Ele respondeu: – “O mesmo que impeliu
nosso amigo Diógenes, o Grego”.
Perguntei então a Ezequiel por que
deglutira esterco e permanecera por tanto tempo deitado de lado direito e
esquerdo. Ele respondeu: – “Para elevar os homens à percepção do infinito. As
tribos norte-americanas também utilizam esta prática e poder-se-ia dizer
honesto aquele que, resistindo a seu gênio ou consciência, os troca pelo
bem-estar e a satisfação Imediata?”.
A antiga crença de que o mundo será
consumido pelo fogo ao cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas
profundezas do Inferno.
Pois foi ordenado ao Querubim com a
espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e, quando isso
ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada,
pois agora apresenta-se finita e corrompida.
E isto ocorrerá mediante a sofisticação
do prazer sensual.
Mas antes de tudo, a noção de que o
homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através
do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis e
terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes
oculto.
Se as portas da percepção se
desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita.
Pois o homem se enclausurou a tal ponto
que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.
Contudo, a visão de Blake não
levou a outras associações de cunho profético-religioso de mesma envergadura, mas, sobretudo, a
dois inesperados encaminhamentos, quase que inter-relacionados: primeiramente, à menção de
seu penúltimo parágrafo como epígrafe ao livro “As Portas da Percepção”, de Aldous
Huxley, e depois, pela via indireta, à adoção do designativo “The Doors”, por
uma banda californiana de rock, em referência à mesma passagem.
Como a psicodelia era a “moda”
na virada dos anos 60/70, obviamente que a experiência não poderia passar sem provas que envolvessem drogas psicotrópicas: nomeadamente, a mescalina,
na obra de Huxley, e o uso de um mix de álcool e heroína pela banda, ou melhor,
por seu líder, Jim Morrison, que, em última instância, acabou por levá-lo prematuramente
ao fim. Ou seria mesmo ao infinito? (rs).
Mas a obra de Blake não é a
única que mereceu a detida atenção de Joseph Campbell: seu interesse é difuso,
o que o leva a deambular por muitos domínios, um dos quais a alta literatura,
sempre em busca de apreender as propriedades que os mitos incorporam e os modos
pelos quais os artistas as externalizam em suas criações.
Com efeito, “Mitologia Criativa”, o último volume de
sua tetralogia “As Máscaras de Deus”, contém, entre outras, análises minuciosas e precisas sobre as obras de James Joyce e Thomas Mann. É a leitura do momento.
Em breve, espero postar aqui uma resenha sobre o referido volume.
Abraços.
J.A.R.-H.C.
Referências:
[1]. CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora
religiosa. Tradução Edson Bini. São Paulo: Landy, 2002. p. 114.
[2]. CAMPBELL, Joseph. Thou art that. Disponível em: .
Acesso em: 20 fev. 2014. p. 80.
[3]. BLAKE, William. Uma
visão memorável. In: O casamento do céu
e do inferno & Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto
Alegre: L&PM, 2011. p. 28-30.
Quem é o autor da imagem que parecem ser "3 anjos"?
ResponderExcluirPrezada Maria José: Infelizmente, de modo contrário ao que costumeiramente faço, promovi a postagem de que se trata sem identificar o autor da pintura. Mas, como se pode ratificar no endereço do próprio artista, a seguir, ela tem por autor J. Kirk Richards: http://www.jkirkrichards.com/store/templatelist_cat.php?category=fine+art+prints.
ExcluirCaso queira consultar também a sua biografia, eis aqui 'link':
http://www.jkirkrichards.com/bio.html
Atenciosamente,
J. A. Rodrigues