ANÁLISE POLÍTICA DE “A MONTANHA MÁGICA”
Não é sem motivo que obras literárias
com temática multifacetada podem engendrar uma torrente de interpretações a
partir de pontos de vista distintos. A
Montanha Mágica, de Thomas Mann é bem um romance que ilustra essa tese: de
imediato, parecem-me lícitos os enfoques filosóficos, políticos, religiosos e,
em especial, médicos, afinal, o seu tema medular – ainda que alguns intérpretes
o avistem como uma metáfora – fixa-se na busca e nas técnicas existentes até
então, digo, em meados da primeira metade do século XX, para a cura da
tuberculose.
Em tradução própria para o português,
apresento em seguida um artigo do professor de História Moderna da Universidade
da Califórnia (EUA), Gabriel Jackson, no qual a abordagem preferencial é a política.
Jackson empreende oportuna incursão
sobre as motivações que levaram Mann a debater, sob a forma literária, muitas
das ideias políticas que eram veiculadas àquela altura, colocando nos argumentos
antitéticos de dois personagens – Settembrini e Naptha – as contendas que
levaram, a posteriori, à divisão do
mundo em blocos rivais, a espicaçar disputas, no mais das vezes
desleais, com fulcro em binômios como “capitalismo x comunismo”, “democracia x
totalitarismo” ou, de modo mais lato, “liberdade x igualdade”.
Informo que as referências às páginas
no corpo do artigo dizem respeito ao local em que se encontram na tradução de Herbert
Caro para o português, embora o texto, especificamente, busque ser fiel ao
original do artigo em espanhol. Tal é o motivo por que menciono, entre as
referências, a versão brasileira da obra.
Se for de algum interesse, poder-se-ia
informar que o tradutor Herbert Moritz Caro, advogado de formação, um alemão de
origem judaica que imigrou para a Região Sul do Brasil em razão das medidas
nazistas restritivas, verteu maravilhosamente para a nossa língua várias outras
obras em alemão, tanto do próprio Thomas Mann – como, por exemplo, Doutor Fausto e Morte em Veneza –, quanto de outros autores, como A Morte de Virgílio, de Hermann Broch.
Por fim, destaco que as notas de
rodapé, poucas e de minha autoria, buscam apenas atualizar os pontos do texto vencidos
pelo transcorrer do tempo.
Ótima leitura.
J.A.R. – H.C.
Referências:
JACKSON, Gabriel. A Montanha Mágica como um romance político. Revista del Centro de
Estudios Constitucionales, nº 5, Enero/Abril 1990, Madrid, p. 125-134.
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2. ed. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2000. 992 p.
“A MONTANHA MÁGICA” COMO UM ROMANCE POLÍTICO
(Gabriel Jackson)
A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é, em minha opinião, um romance tão
maravilhoso em termos de narrativa, caracteres, cenário, diálogo e ação
dramática, que pode parecer um elogio algo duvidoso anunciar que vou tratá-lo
especificamente como um romance político. Não obstante, tenho a sensação de que
há uma relativa justificação para fazê-lo, pois, com a exceção de Guerra e Paz, de Tolstoy, e A Cartuxa de Parma, de Stendhal, não
conheço outro romance clássico no qual relevantes filosofias políticas estejam
incorporadas, de modo exaustivo, em caracteres de ficção tão plenamente
acabados e ricamente desenvolvidos como no caso de A Montanha Mágica, em cujo enredo Settembrini incorpora as
tradições políticas europeias constitucionais, democráticas, racionais e
seculares, e Elie Naptha as tradições políticas autoritárias, comunais,
religiosas e apaixonadamente antiburguesas.
À
luz de um ponto de vista político, o mais extraordinário desse romance é a
maneira pela qual Mann, que escreve justamente nos anos posteriores à Primeira
Guerra Mundial e antes da aparição das ditaduras nazi ou stalinista, consegue
com credibilidade e dramatismo por na boca de Elie Naptha todos os principais
temas de propaganda comuns às ditaduras, tanto fascistas quanto comunistas, que
se propagaram em grande parte da Europa, entre os anos trinta e oitenta do
século, e que, todavia, existem em versões arterioesclerotizadas na Alemanha do
Leste, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária [1]. O apelo a irracionais ódios nacionais e raciais, o
desdém à democracia ou a qualquer forma de governo limitado, a aversão às
classes médias urbanas tanto sob o prisma econômico quanto ideológico, o
recurso a tradições comunais como justificação para um governo de terror, a
exaltação de camponeses e trabalhadores contra comerciantes, profissionais e
intelectuais etc. Todos esses ingredientes da propaganda nazi e stalinista figuram
no arsenal de argumentos de Naptha. Falaremos mais disso, porém, depois de elaborarmos
uma revisão sistemática das personalidades em contraste e de suas visões
políticas.
O
romance se desenvolve nos Alpes suíços, em um dos mais luxuosos sanatórios, de
quantos havia ali, dedicados ao tratamento da tuberculose pelos únicos métodos
disponíveis antes da descoberta dos antibióticos: repouso, pequenos passeios,
ar puro da montanha e dieta saudável para aqueles cujos casos fossem
diagnosticados mais tempestivamente; cirurgia da garganta e do peito, além dos
prescritos anteriormente, para aqueles casos mais sérios. A linha principal do
romance é a educação intelectual, política e sentimental – sem nenhuma pressa –
de um jovem engenheiro alemão, Hans Castorp. Uma educação que se desenvolve
entre os anos de 1907 e 1914, ou, em termos da idade de Castorp, de seus 23 a
30 anos. Sob o ponto de vista médico, o caso do herói é um dos mais benignos.
De fato, o leitor poderia duvidar, em diversas ocasiões, se Castorp tem uma
razão médica legítima para permanecer no sanatório. O romance finda com a
eclosão da Primeira Guerra Mundial e o retorno de Hans Castorp à “planície”,
para servir voluntariamente no exército do império federal alemão, sua pátria
em armas.
A
dimensão política da educação do jovem consiste, sobretudo, de extensas
conversações, primeiro com um paciente italiano, Ludovico Settembrini, e depois
como testemunha participante nas conversações argumentativas entre Settembrini
e Naptha, conversações essas em que os dois oradores competem conscientemente
pela influência sobre o muito inteligente e aparentemente receptivo Castorp.
Settembrini
é filho e neto de republicanos italianos que haviam combatido nas Revoluções de
1830 e 1840 (p. 194-220). Trata-se de um orgulhoso membro da Liga para a
Organização do Progresso e, na medida em que sua saúde lhe permite, está a
editar um dos volumes de um projeto de Patologia Sociológica. É um advogado
beligerante, com frequência engenhoso, daquilo que considera os únicos
princípios legítimos da civilização moderna: democracia política, igualdade
social, educação universal, progresso continuado nas artes e nas ciências, a
estender-se até uma eventual república democrática mundial.
Considera
que a tecnologia e o comércio hão de estar, antes de tudo, a serviço da causa
da liberdade e, nesse sentido, pensa na Inglaterra e na França como as mais
avançadas entre as nações europeias. Atribui à Alemanha a pólvora e a imprensa.
A Itália é a pátria da liberdade e da cultura clássica, isto é, da cultura
fundamentada em princípios racionais, ponderados, humanos e ilustrados. Julga
que a Rússia czarista é um império “asiático” baseado na força, na tirania e na
superstição. Porém a sua inimizade mais apaixonada reserva-a à Áustria dos
Habsburgo, o império conservador centro-europeu, que mantém a Itália e os povos
balcânicos sob a sua esfera de domínio. Ainda que seja, em princípio, pacifista
e internacionalista, seu ódio a Áustria é tal que, candidamente, não descarta o
uso de força para desmembrar o império, muito se parecendo nesse âmbito a um
patriota italiano.
Tem
outros traços que, ainda que não sejam necessariamente relevantes para as suas
crenças políticas, são parte essencial do caráter que personifica essas
crenças. Fala como agudeza e sorri com frequência, porém nunca ri
espontaneamente. Não pode permitir-se mais que um traje e um casaco, porém os
leva com grande dignidade e os mantém sempre bem passados. Tende a
envergonhar-se de sua enfermidade, a despeito de ser perfeitamente evidente que
não escolheu contrair a tuberculose. Refere-se indiscriminadamente a todos os
pacientes eslavos como “partos e citas” (p. 306). Está penosamente consternado
por ver o respeitável e jovem engenheiro ficar loucamente enamorado por uma
mulher russa de desconhecidas, porém evidentemente não puritanas, crenças
morais. Aprecia dar cantadas em moças bonitas, porém desaprova todo impulso
irracional e romântico, qualquer coisa que implique a perda do autocontrole
emocional.
Do
conceito darwiniano de evolução deduz não uma luta amoral pela sobrevivência
física, senão a convicção de que “o mais profundo impulso natural do homem se
orienta à autorrealização” (p. 334). É um ateu e um otimista no que respeita à
perfectibilidade da natureza humana. Espera desejosamente a criação de
“universidades do povo”, a resolução de todos os conflitos nacionais e de
classe, assim como a abolição da guerra por meio do desenvolvimento do direito
internacional. Vê a literatura como a combinação do humanismo clássico com a
política democrática. Outorga primazia ao intelecto sobre o corpo e ao discurso
racional sobre o romanticismo. “Eu represento o mundo, esta vida, contra a
negação e a rendição sentimental, o classicismo contra o romanticismo” (p.
323-343).
Elie
Naptha, porta-voz da política autoritária e religiosa, aparece alguns meses
depois que Settembrini haja estabelecido sua amizade pedagógica com Hans
Castorp. Naptha é professor de uma escola secundária jesuíta, um judeu converso
cujo pai havia sido schochet,
açougueiro ritual, em um povoado polaco. O pai de Naptha, um homem de intelecto
agudo, havia sido linchado em um dos frequentes casos nos quais a desaparição
de uma criança cristã foi interpretada pelos camponeses locais como um
assassinato ritual por parte dos judeus. O autor sugere que a crueldade das
doutrinas políticas de Naptha pode ser parcialmente atribuída a associações
gravadas em sua mente por suas experiências de infância: a vinculação de um pai
intelectual com a morte por sangramento de animais sacrificados ritualmente, a
que se alia a crueldade cega e o preconceito assombrosamente errôneo dos
camponeses que assassinaram aquele pai.
Os
gastos de Naptha como paciente são pagos pela Companhia de Jesus. Vive num
pequeno apartamento pouco ostentoso, porém luxuosamente mobiliado, no mesmo
edifício em que Settembrini ocupa o ático. Veste-se com roupas finas e lhe
trazem ao apartamento dispendioso bolo cortado em fatias para o chá da tarde.
Desfruta do estímulo intelectual da conversação de Settembrini e se compraz em
ter o muito menos próspero humanista italiano compartilhando suas iguarias. Os
dois homens tornam-se pedagogos rivais, paladinos intelectuais a competir pela
atenção de seu menos intelectual, porém muito curioso e receptivo, discípulo, o
jovem engenheiro alemão.
Naptha
é jocosa e descaradamente negativo ante todas as crenças mais apreciadas por
Settembrini. Desdenha a democracia, o ateísmo e o progresso tal e como são
definidos pela ciência moderna e pelo capitalismo. Não deixa lugar ao otimismo
sobre a educabilidade do ser humano médio. Não tem senão desprezo pelos maçons
e pelas várias organizações internacionalistas a que Settembrini pertence.
Quando se lhe insiste sobre a verdade da ciência moderna, declara que Ptolomeu
acabará eventualmente por triunfar sobre Copérnico, que a verdade é questão de
fé, não de evidência empírica, que a terra e a humanidade são, na verdade, o
centro do universo.
A
ideia de sociedade de Naptha é inteiramente hierárquica e expõe uma inusual
teoria do progresso que atribui a São Bernardo. Há três estágios de progresso
humano potencial: o “moinho”, associada ao trabalho físico; o “campo”, que
corresponde à educação cristã tal como a que o ser humano ordinário pode
absorver; e o “leito do repouso”, a vida contemplativa dos monges escolásticos,
caracterizada pelo matrimônio do homem com Deus, em devoto retiro (p. 513).
Settembrini não só rechaça a teoria, como também contempla a imagem do “leito
de repouso” como tipicamente perversa e voluptuosa.
Naptha
exalta a vida rural e considera o desenvolvimento das cidades modernas como o
puro resultado da concupiscência burguesa. Quando Settembrini elogia os avanços
da medicina, Naptha replica que os recentes triunfos da higiene e da reforma
social teriam feito mais dano do que bem na Idade Média. As mortes por
enfermidade e inanição não hão de ser lamentadas. O corpo humano é um
receptáculo de pecado que não merece descanso ou reverência. A tortura e a pena
capital são boas para a alma. A excomunhão e as queimas na fogueira foram
adotadas pela Igreja como uma via para salvar as almas dos homens.
Todas
essas questões não são relegadas de modo algum ao passado medieval. Naptha prevê
uma revolução mundial, cujo programa será a destruição do liberalismo burguês,
da democracia e do capitalismo, seguida pelo estabelecimento de um comunismo
patrocinado pela Igreja, imposto, ali onde fosse necessário e sem as menores
desculpas, pelo terror. E o que Naptha quer dizer com tal vocábulo não é o
terrorismo de grupos revolucionários minoritários como o ETA ou o Exército
Republicano Irlandês, senão bem mais o modelo da Inquisição Espanhola dos anos
1480: absolutismo ideológico reforçado pelo Estado, a exercer sem contrapeso o
poder sobre a vida e a morte (p. 502-528; 528-562; 580-600).
O
leitor pode muito bem perguntar se um modelo de comunismo cristão inquisitorial
projeta luz realmente sobre os regimes totalitários de Hitler e Stalin. No
tempo em que esses regimes se desenvolveram a maioria dos comentaristas os viu
não apenas como completamente irreligiosos, mas também como polarmente opostos:
um, alimentado pelo nacionalismo racista e pela vingança militar, ao mesmo
tempo que, de fato e simultaneamente, manipulado e servido pela alta burguesia;
e o outro, buscando desde logo a destruição da burguesia e do capitalismo e
tratando de estabelecer uma sociedade sem classes, potencialmente
internacionalista.
Porém
se alguém reflete sobre o substrato emocional desses regimes e em seus métodos
de impor conformidade, a comparação com a visão de Naptha não se mostra
inverossímil. O nazismo e o estalinismo foram, ambos, religiões comutadoras
cujo credo propagandístico substituiu a ética e a religião tradicionais, e
cujos líderes foram deificados nada menos que como salvadores. Em ambos os
regimes a verdade foi definida pelas proclamações do líder, não pela evidência
empírica ou documental.
Ambos
os regimes glorificaram os setores não burgueses da população obreira, e
expressaram todo o ódio, inveja e desdém pelo mundo burguês que eram
manifestados por Naptha. Não pretenderam substituir Copérnico por Ptolomeu,
porém ambos destroçaram a ciência da genética: Hitler a serviço de seu racismo
assassino, Stalin porque julgou que a doutrina de Lisenko, segundo a qual a
herança de traços adquiridos era mais “marxista” que os princípios definidos
pela herança genética.
O
julgamento do incêndio do Reichstag de 1933, os julgamentos de Moscou de
1936-38, a purga dos partidos comunistas do Leste Europeu nos últimos quarenta
anos [2] e o macabro “complô de doutores no Kremlin”, em que
os acusados – a maioria judeus – foram salvos apenas pela morte do próprio
Stalin, são todos eventos psicologicamente similares às ações da Inquisição em
suas fanáticas décadas temporãs, assim como ao terror ardentemente invocado por
Naptha. A Igreja (ou o partido) onipresente decreta o que é a verdade, à margem
da evidência empírica. Os súditos aceitam o domínio e o credo autoritários ou
morrem na fogueira pelo bem de suas almas eternas (prestam um último serviço ao
partido, confessando crimes imaginários e sendo executados).
Tal
como sugeri no primeiro parágrafo, o aspecto político mais notável deste
romance é o feito de que Thomas Mann, em 1924, logra antecipar o tipo de terror
de Estado invocado e praticado por Hitler e Stalin. O fato de que ele o
imaginara como um tipo de terror patrocinado pela Igreja, mais do que como uma
ditadura totalitária de partido, não diminui o extraordinário pressentimento
por meio do qual foi capaz de antecipar a forma, os métodos e o estilo de
propaganda desses dois terríveis ditadores.
Configura,
do mesmo modo, um pressentimento a relativa debilidade da defesa da democracia
burguesa ocidental, tal e como Settembrini a ofereceu. O humanista italiano
mostra-se incapaz de negar seus próprios sentimentos nacionais, inábil para
refutar os muitos exemplos, declinados por Naptha, de intolerância, crueldade,
soberbia, estupidez, interesses materiais puramente egoístas e, em última
instância, de contradições na história real das nações que Settembrini tanto
admira. Sua única resposta efetiva é enfatizar a destrutividade e a
perversidade dos pontos de vista de seu oponente, de modo similar à forma como
os líderes das democracias ocidentais, nos anos de 1933 a 1953, foram capazes
de condenar Hitler e/ou Stalin como males absolutos, porém sem oferecer
soluções construtivas às graves deficiências de seus próprios sistemas sociais
e econômicos.
A
apaixonada pugna de ideias e a convincente incorporação dessas ideias a
caracteres de ficção se deve muito à amarga luta, no coração do próprio autor,
durante a Primeira Guerra Mundial. Porque, em agosto de 1914, Thomas Mann era
um romancista e ensaísta de grande êxito, que havia se casado no seio de uma
rica família judia profissional e se sentia cômodo, financeira e socialmente,
tanto com a alta burguesia quanto com os mundos teatrais e artísticos da
Alemanha Imperial. Profundamente alemão em cultura e sensibilidade emocional,
além de orgulhosamente apolítico, havia prestado pouca atenção à corrida
armamentista, às rivalidades imperialistas na África, no Oriente Médio e na
Ásia, às sucessivas crises diplomáticas e às justificações antecipadas, em
favor da guerra, que haviam caracterizado a cena política europeia durante os
quase vinte anos que precederam a eclosão real da guerra geral.
Intuitiva
e articuladamente, compartilhava a convicção da classe dominante alemã de que a
Inglaterra e a França estavam amargamente ciumentas da nova prosperidade da
Alemanha, do prestígio de sua ciência e de sua música, de sua competência
industrial e militar. Motivados por esses ciúmes e aliando-se ao “atrasado”
“despotismo asiático” da Rússia czarista, haviam movido a Alemanha a uma guerra
de sobrevivência. Quando o Kaiser proclamava que a Inglaterra e a França
estavam tratando de negar à Alemanha o seu “lugar ao sol”, Thomas Mann e muitos
outros escritores e cientistas alemães de renome internacional interpretavam
que a guerra era uma defesa dos valores culturais da Alemanha contra os da
“utilitarista” Inglaterra e os da (superficialmente) “clássica” e “jacobina”
França.
A
amargura pessoal de Mann e seu sentimento de perseguição se intensificaram pelo
fato de que seu irmão mais velho, Heinrich, também uma prestigiosa figura
literária, era o líder dessa minoria de intelectuais alemães que viu o seu
próprio país como agressor, condenou a invasão da Bélgica e, mais tarde, a
guerra submarina ilimitada etc. Não foi até começos de 1918 que Mann passou a
vacilar em sua defesa da Alemanha Imperial, quando então a perspectiva de
derrota de seu país, tanto quanto certa mudança de opinião, o levaram a pensar em
termos de reconciliação internacional, ampliando o escopo a todos os interesses
culturais e políticos europeus, mais do que especificamente alemães.
Nos
primeiros anos do pós-guerra [3], Mann testemunhou a debilidade e os erros da
República de Weimar, assim como a inflação que liquidou suas economias junto às
de todo o povo alemão, fatos esses mitigados pelo mútuo desejo de reconciliação
com seu irmão, bem assim por outros profundos sofrimentos psicológicos no cerne
de sua família, que o levaram a repensar sua inteira relação tanto com a
cultura e a política europeia quanto com a alemã.
O
resultado artístico mais importante dessa reavaliação foi A Montanha Mágica. Na retórica e nos ideais de Settembrini o leitor
ouve ecos das palavras de Heinrich Mann, defensor do classicismo italiano e
francês, dos ideais do Renascimento e das Revoluções de 1789, 1830 e 1848; o
proponente da liberdade política, da democracia e do internacionalismo como
contrários a todas e a cada uma das formas de poder autoritárias, política e
religiosamente dogmáticas. Por outro lado, na retórica e no raciocínio de
Naptha se ouvem ecos de ódio e de desespero, através dos quais o grande artista
teve que trilhar o seu próprio caminho, recobrar algum tipo de atitude
filosófica positiva depois do trauma da Primeira Guerra Mundial, tal e como foi
experimentada por um homem que havia amado a Alemanha Imperial, nela havia
crido a havia defendido apaixonadamente.
O
resultado de sua reavaliação não é uma afirmação settembriniana das tradições
revolucionárias da França e da Itália, tampouco um hino à democracia
contemporânea. O máximo que o autor compromete a si mesmo com uma posição
específica se aproxima daquela visão de seu jovem herói no episódio da obra
intitulado “Neve”. Hans Castorp sai para um aventurado passeio de esqui pelo
terreno nevado, em uma tarde de tempo ameaçador. Reflete, como em muitas
ocasiões anteriores, sobre as intensas leituras e conversações que hão
constituído sua educação no sanatório. Perde-se meio que voluntariamente e
depois, brevemente, adormece-se ao amparo de uma cabana de montanha, quando
então tem um sonho completo. No sonho, num mesmo cenário de um templo clássico,
vê seres humanos agindo com a mais requintada cortesia e serena alegria, e
bruxos com aspecto de feiticeiros devorando os ossos de uma criança
assassinada.
Ao
despertar, o jovem passa imediatamente a matutar sobre o significado desse
estranho e poderoso sonho. Tem tido nos últimos tempos preocupação constante
com a relação entre enfermidade e saúde, morte e vida, e sua inquietude por
tais fenômenos é muito mais profunda que seu interesse pela política. Agora lhe
parece como se seu interesse pela morte não fosse o contrário de sua
preocupação pela vida, senão que o interesse pela enfermidade e pela morte nada
mais consiste do que “outra expressão de interesse pela vida” (p. 676). Devem
ser tratados e compreendidos conjuntamente “a alegria e a paz e o sacrifício
sangrento [...], um estado social cortês e ilustrado” e o canibalismo bestial
(p. 678).
Politicamente,
rechaçará a crueldade, a negatividade extrema e a teologia dogmática de Naptha.
Porém também Settembrini é um “charlatão”, um otimista fácil que recusa ver a
relação integral entre vida e morte no sentido puramente físico, e entre o bem
e o mal no reino da atividade e da motivação humanas. Os belos jovens do sonho
são plenamente conscientes dos bruxos canibais e é assim, portanto, como Hans
Castorp deve aceitar a existência de ambos.
Na
interpretação final de seu sonho, parte do princípio de que o amor, e não a
razão, é a única força que pode sobrepujar a morte. Resume seu significado em
uma frase que o próprio autor sublinha no texto: “Por respeito à bondade e ao amor, o homem não deve deixar que a morte
seja soberana de seus pensamentos” (p. 678). Uma afirmação com intenção
clara, uma afirmação que posiciona Hans Castorp, e por implicação o seu
criador, do lado de Settembrini bem mais do que de Naptha, do lado do esforço
em favor do progresso humano bem mais que do lado dos motivos de dominação e de
destruição. Essa frase transfere a ênfase moral a partir das posições políticas
rivais de Settembrini e de Naptha ao reino das atitudes pessoais fundamentais.
Evita cuidadosamente um elogio a qualquer forma ou programa político específico
(p. 638-680).
Como
a enfatizar a tenuidade da frase, Hans Castorp tem dificuldade em recordar o
sonho e sua interpretação quando retorna ao sanatório. Também, quando a guerra
eclode em 1914, alista-se voluntariamente para a defesa de seu país, a
Alemanha, sem bradar slogans de ódio
em direção ao seu oponente militar, mas degustando um sentido de camaradagem e
de sacrifício; em qualquer caso, sem sequer sonhar em ser opositor da
consciência.
Há
outro aspecto político do romance, não tão dramático assim, tampouco como a
confrontação entre Settembrini e Naptha, contudo importante para o entendimento
de Thomas Mann: em concreto, as implicações políticas da música. Hans Castorp é
tão receptivo à música como o é à discussão política ou à beleza feminina do
tipo eslavo. Durante um concerto da banda, em um domingo pela manhã, seu
autonomeado mentor Settembrini expõe a ideia de que a música exerce uma influência
na vida humana que é “equívoca, irresponsável [...] e politicamente suspeita”
(p. 158). Settembrini sente desassossego pela intrínseca imprecisão do
“significado” musical. Insiste em que a razão, e portanto a palavra, deve
preceder, e presumivelmente guiar, o espírito da música.
Quando
Hans Castorp e seu primo Joachim replicam que a música agita a alma, estimula a
própria energia e lhe dá uma consciência espiritual da passagem do tempo e,
logo, do valor do tempo, Settembrini concede que às vezes a música tem tal
qualidade digna de elogio. Todavia, também, pode embotar o espírito, atuar como
um opiáceo. Então, o quê? Para ele, é uma arte ambígua, em suma, “politicamente
suspeita” (p. 152-159).
Próximo
ao final do romance, na seção intitulada “Plenitude de Harmonia”, o autor
descreve o amor de Hans pela música e sua zelosa guarda do fonógrafo e da
coleção de discos do hospital. Parte da discussão versa sobre as implicações
políticas e filosóficas de duas óperas, Aída
e Carmem. Uma vez que as tramas e os
diálogos dessas óperas são perfeitamente indicativos de seus conteúdos, Mann
não pode, em minha opinião, apresentar um argumento muito convincente em favor
da influência independente da música. Na ópera, como Settembrini poderia
afirmar, a palavra, desde logo, precede a música. A música realça as emoções,
ajuda a convencer o ouvinte do significado da ação, porém as ações e suas
implicações filosóficas são claramente levantadas no texto verbal.
A
discussão de uma das mais conhecidas canções (lieder) de Schubert, “A Tília” (Der
Lindenbaum), contém a quintessência do difícil, embora importante, conceito
que Mann está a propor (p. 874-899). O texto (descrito, porém não citado, no
romance) é tal como segue:
A Tília
Por trás da fonte do pátio se ergue uma tília.
Quantas vezes à sua sombra doces sonhos vieram a mim.
Em seu tronco perfumado tenho lavrado palavras
encantadas.
Na alegria ou na tristeza sua amigável sombra hei
buscado.
Hoje vagueei tristemente ao cair da noite profunda.
Ocultei a árvore na escuridão, resguardei-a de minha
vista.
O sussurrar de seus ramos pareciam palavras como se
dissessem:
“Vem aqui, amado companheiro, e encontra o teu antigo
descanso”.
Os mais amargos ventos sopravam tão friamente em meu
rosto!
Meu chapéu voou às minhas costas, deu uma volta e
fugiu do lugar.
Agora muitas alianças me separam daquela querida tília.
E apesar disso ainda ouço seu murmúrio: “poderias
encontrar descanso em mim”.
Para
Hans Castorp há algo misterioso no fato de que uma canção com um texto tão
simples e inocente possa causar-lhe uma emoção tão profunda. Se ama tão
intensamente essa canção em particular, deve haver amado o mundo que ela
representa, a memória nostálgica dos sussurros das folhas e da sombra daquela
árvore. Por meio de sua intensidade lhe parece que ela assinala um mundo de
“amor proibido”.
E
o que subjaz a esse mundo de amor? “Morte [...] assuntos sinistros. Fantasmais,
obscuros, misantrópicos, pensamentos de câmara de tortura, hipocondria
espanhola, luxúria e não o amor – estes a resultante de um puro encanto” (p.
898). Encontra morbidez em investir tantas emoções numa canção simples. Ela
traz à mente a necessidade de “autoconquista, que poderia ser muito bem a
essência do triunfo sobre tal amor, esse encantamento de alma que produz tão
sinistros frutos” (p. 899). E segue assim entrelaçando metáforas de
autoconquista e de morte, “em seus lábios a nova palavra de amor que até agora
não sabia pronunciar” (p. 899).
Há
uma combinação de intensidade descritiva e ambiguidade intelectual nessas páginas
que não tratarei de elucidar. Não sou um desses leitores a pensar que pode afirmar
mais claramente aquilo que o próprio poeta quis dizer. Porém as sensações
descritas ilustram desde logo a noção da música como “politicamente suspeita”
no sentido de encantar, drogar, minar o controle da razão. Apesar disso, como
no sonho de “Neve”, o amor, assumindo plenamente a presença do horror, torna-se
a chave para a salvação individual, para a união aceita de vida e morte por
intermédio do amor – como na conduta de muitos dos pacientes de Berghof, e como
na conduta do próprio Hans enquanto soldado voluntário que, encantado, arrisca
sua vida ao final do romance.
Não
apenas Hans Castorp, senão também o autor, Thomas Mann, creram em toda sua vida
que os alemães eram um povo especialmente musical. Duas décadas depois de A Montanha Mágica, Mann haveria de
escrever um romance que tratava metaforicamente do significado da era nazi e
que tinha como herói um genial compositor de música atonal [4]. Limitando, contudo, minha discussão à evidência do
presente texto, sugeriria as seguintes como ideias diretrizes no quanto
concerne à relação da música com a cultura alemã e, por extensão, com a
política alemã: o povo alemão como particularmente sensível à influência da
música; o Lied como “canção popular
artificial”, cujo poder emocional deriva do uso artístico consciente de
melodias de origem popular; a música como algo “politicamente suspeito” em
decorrência de sua tendência a drogar os impulsos racionais do cérebro; a
música como expressão suprema da fusão do bem e do mal, da vida e da morte,
pela via do amor.
_______________
[1] O artigo reporta-se a um momento próximo ao final da década de 90 do século XX, exato instante em que, com a “Queda do Muro de Berlim”, uma sucessão de reviravoltas políticas varreu os países por trás da denominada “Cortina de Ferro”.
[2] A descrição nos traz à memória alguns dos fatos que marcaram indelevelmente o pós-2GM, como a repressão soviética aos “desvios burgueses” na Hungria ou, mais à frente, o freio à “Primavera de Praga”.
[3] Nomeadamente, pós-1GM, está claro.
[4] Trata-se de Doutor Fausto, de 1947, romance em cujo enredo a vida do músico Adrian Leverkühn é narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom.
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[1] O artigo reporta-se a um momento próximo ao final da década de 90 do século XX, exato instante em que, com a “Queda do Muro de Berlim”, uma sucessão de reviravoltas políticas varreu os países por trás da denominada “Cortina de Ferro”.
[2] A descrição nos traz à memória alguns dos fatos que marcaram indelevelmente o pós-2GM, como a repressão soviética aos “desvios burgueses” na Hungria ou, mais à frente, o freio à “Primavera de Praga”.
[3] Nomeadamente, pós-1GM, está claro.
[4] Trata-se de Doutor Fausto, de 1947, romance em cujo enredo a vida do músico Adrian Leverkühn é narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom.
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