Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Dimensão Política de "A Montanha Mágica"


ANÁLISE POLÍTICA DE “A MONTANHA MÁGICA”


Não é sem motivo que obras literárias com temática multifacetada podem engendrar uma torrente de interpretações a partir de pontos de vista distintos. A Montanha Mágica, de Thomas Mann é bem um romance que ilustra essa tese: de imediato, parecem-me lícitos os enfoques filosóficos, políticos, religiosos e, em especial, médicos, afinal, o seu tema medular – ainda que alguns intérpretes o avistem como uma metáfora – fixa-se na busca e nas técnicas existentes até então, digo, em meados da primeira metade do século XX, para a cura da tuberculose.
Em tradução própria para o português, apresento em seguida um artigo do professor de História Moderna da Universidade da Califórnia (EUA), Gabriel Jackson, no qual a abordagem preferencial é a política.
Jackson empreende oportuna incursão sobre as motivações que levaram Mann a debater, sob a forma literária, muitas das ideias políticas que eram veiculadas àquela altura, colocando nos argumentos antitéticos de dois personagens – Settembrini e Naptha – as contendas que levaram, a posteriori, à divisão do mundo em blocos rivais, a espicaçar disputas, no mais das vezes desleais, com fulcro em binômios como “capitalismo x comunismo”, “democracia x totalitarismo” ou, de modo mais lato, “liberdade x igualdade”.
Informo que as referências às páginas no corpo do artigo dizem respeito ao local em que se encontram na tradução de Herbert Caro para o português, embora o texto, especificamente, busque ser fiel ao original do artigo em espanhol. Tal é o motivo por que menciono, entre as referências, a versão brasileira da obra.
Se for de algum interesse, poder-se-ia informar que o tradutor Herbert Moritz Caro, advogado de formação, um alemão de origem judaica que imigrou para a Região Sul do Brasil em razão das medidas nazistas restritivas, verteu maravilhosamente para a nossa língua várias outras obras em alemão, tanto do próprio Thomas Mann – como, por exemplo, Doutor Fausto e Morte em Veneza –, quanto de outros autores, como A Morte de Virgílio, de Hermann Broch.
Por fim, destaco que as notas de rodapé, poucas e de minha autoria, buscam apenas atualizar os pontos do texto vencidos pelo transcorrer do tempo.
Ótima leitura.
J.A.R. – H.C.

Referências:
JACKSON, Gabriel. A Montanha Mágica como um romance político. Revista del Centro de Estudios Constitucionales, nº 5, Enero/Abril 1990, Madrid, p. 125-134.
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2. ed. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 992 p.

“A MONTANHA MÁGICA” COMO UM ROMANCE POLÍTICO
(Gabriel Jackson)

A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é, em minha opinião, um romance tão maravilhoso em termos de narrativa, caracteres, cenário, diálogo e ação dramática, que pode parecer um elogio algo duvidoso anunciar que vou tratá-lo especificamente como um romance político. Não obstante, tenho a sensação de que há uma relativa justificação para fazê-lo, pois, com a exceção de Guerra e Paz, de Tolstoy, e A Cartuxa de Parma, de Stendhal, não conheço outro romance clássico no qual relevantes filosofias políticas estejam incorporadas, de modo exaustivo, em caracteres de ficção tão plenamente acabados e ricamente desenvolvidos como no caso de A Montanha Mágica, em cujo enredo Settembrini incorpora as tradições políticas europeias constitucionais, democráticas, racionais e seculares, e Elie Naptha as tradições políticas autoritárias, comunais, religiosas e apaixonadamente antiburguesas.
À luz de um ponto de vista político, o mais extraordinário desse romance é a maneira pela qual Mann, que escreve justamente nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial e antes da aparição das ditaduras nazi ou stalinista, consegue com credibilidade e dramatismo por na boca de Elie Naptha todos os principais temas de propaganda comuns às ditaduras, tanto fascistas quanto comunistas, que se propagaram em grande parte da Europa, entre os anos trinta e oitenta do século, e que, todavia, existem em versões arterioesclerotizadas na Alemanha do Leste, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária [1]. O apelo a irracionais ódios nacionais e raciais, o desdém à democracia ou a qualquer forma de governo limitado, a aversão às classes médias urbanas tanto sob o prisma econômico quanto ideológico, o recurso a tradições comunais como justificação para um governo de terror, a exaltação de camponeses e trabalhadores contra comerciantes, profissionais e intelectuais etc. Todos esses ingredientes da propaganda nazi e stalinista figuram no arsenal de argumentos de Naptha. Falaremos mais disso, porém, depois de elaborarmos uma revisão sistemática das personalidades em contraste e de suas visões políticas.
O romance se desenvolve nos Alpes suíços, em um dos mais luxuosos sanatórios, de quantos havia ali, dedicados ao tratamento da tuberculose pelos únicos métodos disponíveis antes da descoberta dos antibióticos: repouso, pequenos passeios, ar puro da montanha e dieta saudável para aqueles cujos casos fossem diagnosticados mais tempestivamente; cirurgia da garganta e do peito, além dos prescritos anteriormente, para aqueles casos mais sérios. A linha principal do romance é a educação intelectual, política e sentimental – sem nenhuma pressa – de um jovem engenheiro alemão, Hans Castorp. Uma educação que se desenvolve entre os anos de 1907 e 1914, ou, em termos da idade de Castorp, de seus 23 a 30 anos. Sob o ponto de vista médico, o caso do herói é um dos mais benignos. De fato, o leitor poderia duvidar, em diversas ocasiões, se Castorp tem uma razão médica legítima para permanecer no sanatório. O romance finda com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e o retorno de Hans Castorp à “planície”, para servir voluntariamente no exército do império federal alemão, sua pátria em armas.
A dimensão política da educação do jovem consiste, sobretudo, de extensas conversações, primeiro com um paciente italiano, Ludovico Settembrini, e depois como testemunha participante nas conversações argumentativas entre Settembrini e Naptha, conversações essas em que os dois oradores competem conscientemente pela influência sobre o muito inteligente e aparentemente receptivo Castorp.
Settembrini é filho e neto de republicanos italianos que haviam combatido nas Revoluções de 1830 e 1840 (p. 194-220). Trata-se de um orgulhoso membro da Liga para a Organização do Progresso e, na medida em que sua saúde lhe permite, está a editar um dos volumes de um projeto de Patologia Sociológica. É um advogado beligerante, com frequência engenhoso, daquilo que considera os únicos princípios legítimos da civilização moderna: democracia política, igualdade social, educação universal, progresso continuado nas artes e nas ciências, a estender-se até uma eventual república democrática mundial.
Considera que a tecnologia e o comércio hão de estar, antes de tudo, a serviço da causa da liberdade e, nesse sentido, pensa na Inglaterra e na França como as mais avançadas entre as nações europeias. Atribui à Alemanha a pólvora e a imprensa. A Itália é a pátria da liberdade e da cultura clássica, isto é, da cultura fundamentada em princípios racionais, ponderados, humanos e ilustrados. Julga que a Rússia czarista é um império “asiático” baseado na força, na tirania e na superstição. Porém a sua inimizade mais apaixonada reserva-a à Áustria dos Habsburgo, o império conservador centro-europeu, que mantém a Itália e os povos balcânicos sob a sua esfera de domínio. Ainda que seja, em princípio, pacifista e internacionalista, seu ódio a Áustria é tal que, candidamente, não descarta o uso de força para desmembrar o império, muito se parecendo nesse âmbito a um patriota italiano.
Tem outros traços que, ainda que não sejam necessariamente relevantes para as suas crenças políticas, são parte essencial do caráter que personifica essas crenças. Fala como agudeza e sorri com frequência, porém nunca ri espontaneamente. Não pode permitir-se mais que um traje e um casaco, porém os leva com grande dignidade e os mantém sempre bem passados. Tende a envergonhar-se de sua enfermidade, a despeito de ser perfeitamente evidente que não escolheu contrair a tuberculose. Refere-se indiscriminadamente a todos os pacientes eslavos como “partos e citas” (p. 306). Está penosamente consternado por ver o respeitável e jovem engenheiro ficar loucamente enamorado por uma mulher russa de desconhecidas, porém evidentemente não puritanas, crenças morais. Aprecia dar cantadas em moças bonitas, porém desaprova todo impulso irracional e romântico, qualquer coisa que implique a perda do autocontrole emocional.
Do conceito darwiniano de evolução deduz não uma luta amoral pela sobrevivência física, senão a convicção de que “o mais profundo impulso natural do homem se orienta à autorrealização” (p. 334). É um ateu e um otimista no que respeita à perfectibilidade da natureza humana. Espera desejosamente a criação de “universidades do povo”, a resolução de todos os conflitos nacionais e de classe, assim como a abolição da guerra por meio do desenvolvimento do direito internacional. Vê a literatura como a combinação do humanismo clássico com a política democrática. Outorga primazia ao intelecto sobre o corpo e ao discurso racional sobre o romanticismo. “Eu represento o mundo, esta vida, contra a negação e a rendição sentimental, o classicismo contra o romanticismo” (p. 323-343).
Elie Naptha, porta-voz da política autoritária e religiosa, aparece alguns meses depois que Settembrini haja estabelecido sua amizade pedagógica com Hans Castorp. Naptha é professor de uma escola secundária jesuíta, um judeu converso cujo pai havia sido schochet, açougueiro ritual, em um povoado polaco. O pai de Naptha, um homem de intelecto agudo, havia sido linchado em um dos frequentes casos nos quais a desaparição de uma criança cristã foi interpretada pelos camponeses locais como um assassinato ritual por parte dos judeus. O autor sugere que a crueldade das doutrinas políticas de Naptha pode ser parcialmente atribuída a associações gravadas em sua mente por suas experiências de infância: a vinculação de um pai intelectual com a morte por sangramento de animais sacrificados ritualmente, a que se alia a crueldade cega e o preconceito assombrosamente errôneo dos camponeses que assassinaram aquele pai.
Os gastos de Naptha como paciente são pagos pela Companhia de Jesus. Vive num pequeno apartamento pouco ostentoso, porém luxuosamente mobiliado, no mesmo edifício em que Settembrini ocupa o ático. Veste-se com roupas finas e lhe trazem ao apartamento dispendioso bolo cortado em fatias para o chá da tarde. Desfruta do estímulo intelectual da conversação de Settembrini e se compraz em ter o muito menos próspero humanista italiano compartilhando suas iguarias. Os dois homens tornam-se pedagogos rivais, paladinos intelectuais a competir pela atenção de seu menos intelectual, porém muito curioso e receptivo, discípulo, o jovem engenheiro alemão.
Naptha é jocosa e descaradamente negativo ante todas as crenças mais apreciadas por Settembrini. Desdenha a democracia, o ateísmo e o progresso tal e como são definidos pela ciência moderna e pelo capitalismo. Não deixa lugar ao otimismo sobre a educabilidade do ser humano médio. Não tem senão desprezo pelos maçons e pelas várias organizações internacionalistas a que Settembrini pertence. Quando se lhe insiste sobre a verdade da ciência moderna, declara que Ptolomeu acabará eventualmente por triunfar sobre Copérnico, que a verdade é questão de fé, não de evidência empírica, que a terra e a humanidade são, na verdade, o centro do universo.
A ideia de sociedade de Naptha é inteiramente hierárquica e expõe uma inusual teoria do progresso que atribui a São Bernardo. Há três estágios de progresso humano potencial: o “moinho”, associada ao trabalho físico; o “campo”, que corresponde à educação cristã tal como a que o ser humano ordinário pode absorver; e o “leito do repouso”, a vida contemplativa dos monges escolásticos, caracterizada pelo matrimônio do homem com Deus, em devoto retiro (p. 513). Settembrini não só rechaça a teoria, como também contempla a imagem do “leito de repouso” como tipicamente perversa e voluptuosa.
Naptha exalta a vida rural e considera o desenvolvimento das cidades modernas como o puro resultado da concupiscência burguesa. Quando Settembrini elogia os avanços da medicina, Naptha replica que os recentes triunfos da higiene e da reforma social teriam feito mais dano do que bem na Idade Média. As mortes por enfermidade e inanição não hão de ser lamentadas. O corpo humano é um receptáculo de pecado que não merece descanso ou reverência. A tortura e a pena capital são boas para a alma. A excomunhão e as queimas na fogueira foram adotadas pela Igreja como uma via para salvar as almas dos homens.
Todas essas questões não são relegadas de modo algum ao passado medieval. Naptha prevê uma revolução mundial, cujo programa será a destruição do liberalismo burguês, da democracia e do capitalismo, seguida pelo estabelecimento de um comunismo patrocinado pela Igreja, imposto, ali onde fosse necessário e sem as menores desculpas, pelo terror. E o que Naptha quer dizer com tal vocábulo não é o terrorismo de grupos revolucionários minoritários como o ETA ou o Exército Republicano Irlandês, senão bem mais o modelo da Inquisição Espanhola dos anos 1480: absolutismo ideológico reforçado pelo Estado, a exercer sem contrapeso o poder sobre a vida e a morte (p. 502-528; 528-562; 580-600).
O leitor pode muito bem perguntar se um modelo de comunismo cristão inquisitorial projeta luz realmente sobre os regimes totalitários de Hitler e Stalin. No tempo em que esses regimes se desenvolveram a maioria dos comentaristas os viu não apenas como completamente irreligiosos, mas também como polarmente opostos: um, alimentado pelo nacionalismo racista e pela vingança militar, ao mesmo tempo que, de fato e simultaneamente, manipulado e servido pela alta burguesia; e o outro, buscando desde logo a destruição da burguesia e do capitalismo e tratando de estabelecer uma sociedade sem classes, potencialmente internacionalista.
Porém se alguém reflete sobre o substrato emocional desses regimes e em seus métodos de impor conformidade, a comparação com a visão de Naptha não se mostra inverossímil. O nazismo e o estalinismo foram, ambos, religiões comutadoras cujo credo propagandístico substituiu a ética e a religião tradicionais, e cujos líderes foram deificados nada menos que como salvadores. Em ambos os regimes a verdade foi definida pelas proclamações do líder, não pela evidência empírica ou documental.
Ambos os regimes glorificaram os setores não burgueses da população obreira, e expressaram todo o ódio, inveja e desdém pelo mundo burguês que eram manifestados por Naptha. Não pretenderam substituir Copérnico por Ptolomeu, porém ambos destroçaram a ciência da genética: Hitler a serviço de seu racismo assassino, Stalin porque julgou que a doutrina de Lisenko, segundo a qual a herança de traços adquiridos era mais “marxista” que os princípios definidos pela herança genética.
O julgamento do incêndio do Reichstag de 1933, os julgamentos de Moscou de 1936-38, a purga dos partidos comunistas do Leste Europeu nos últimos quarenta anos [2] e o macabro “complô de doutores no Kremlin”, em que os acusados – a maioria judeus – foram salvos apenas pela morte do próprio Stalin, são todos eventos psicologicamente similares às ações da Inquisição em suas fanáticas décadas temporãs, assim como ao terror ardentemente invocado por Naptha. A Igreja (ou o partido) onipresente decreta o que é a verdade, à margem da evidência empírica. Os súditos aceitam o domínio e o credo autoritários ou morrem na fogueira pelo bem de suas almas eternas (prestam um último serviço ao partido, confessando crimes imaginários e sendo executados).
Tal como sugeri no primeiro parágrafo, o aspecto político mais notável deste romance é o feito de que Thomas Mann, em 1924, logra antecipar o tipo de terror de Estado invocado e praticado por Hitler e Stalin. O fato de que ele o imaginara como um tipo de terror patrocinado pela Igreja, mais do que como uma ditadura totalitária de partido, não diminui o extraordinário pressentimento por meio do qual foi capaz de antecipar a forma, os métodos e o estilo de propaganda desses dois terríveis ditadores.
Configura, do mesmo modo, um pressentimento a relativa debilidade da defesa da democracia burguesa ocidental, tal e como Settembrini a ofereceu. O humanista italiano mostra-se incapaz de negar seus próprios sentimentos nacionais, inábil para refutar os muitos exemplos, declinados por Naptha, de intolerância, crueldade, soberbia, estupidez, interesses materiais puramente egoístas e, em última instância, de contradições na história real das nações que Settembrini tanto admira. Sua única resposta efetiva é enfatizar a destrutividade e a perversidade dos pontos de vista de seu oponente, de modo similar à forma como os líderes das democracias ocidentais, nos anos de 1933 a 1953, foram capazes de condenar Hitler e/ou Stalin como males absolutos, porém sem oferecer soluções construtivas às graves deficiências de seus próprios sistemas sociais e econômicos.
A apaixonada pugna de ideias e a convincente incorporação dessas ideias a caracteres de ficção se deve muito à amarga luta, no coração do próprio autor, durante a Primeira Guerra Mundial. Porque, em agosto de 1914, Thomas Mann era um romancista e ensaísta de grande êxito, que havia se casado no seio de uma rica família judia profissional e se sentia cômodo, financeira e socialmente, tanto com a alta burguesia quanto com os mundos teatrais e artísticos da Alemanha Imperial. Profundamente alemão em cultura e sensibilidade emocional, além de orgulhosamente apolítico, havia prestado pouca atenção à corrida armamentista, às rivalidades imperialistas na África, no Oriente Médio e na Ásia, às sucessivas crises diplomáticas e às justificações antecipadas, em favor da guerra, que haviam caracterizado a cena política europeia durante os quase vinte anos que precederam a eclosão real da guerra geral.
Intuitiva e articuladamente, compartilhava a convicção da classe dominante alemã de que a Inglaterra e a França estavam amargamente ciumentas da nova prosperidade da Alemanha, do prestígio de sua ciência e de sua música, de sua competência industrial e militar. Motivados por esses ciúmes e aliando-se ao “atrasado” “despotismo asiático” da Rússia czarista, haviam movido a Alemanha a uma guerra de sobrevivência. Quando o Kaiser proclamava que a Inglaterra e a França estavam tratando de negar à Alemanha o seu “lugar ao sol”, Thomas Mann e muitos outros escritores e cientistas alemães de renome internacional interpretavam que a guerra era uma defesa dos valores culturais da Alemanha contra os da “utilitarista” Inglaterra e os da (superficialmente) “clássica” e “jacobina” França.
A amargura pessoal de Mann e seu sentimento de perseguição se intensificaram pelo fato de que seu irmão mais velho, Heinrich, também uma prestigiosa figura literária, era o líder dessa minoria de intelectuais alemães que viu o seu próprio país como agressor, condenou a invasão da Bélgica e, mais tarde, a guerra submarina ilimitada etc. Não foi até começos de 1918 que Mann passou a vacilar em sua defesa da Alemanha Imperial, quando então a perspectiva de derrota de seu país, tanto quanto certa mudança de opinião, o levaram a pensar em termos de reconciliação internacional, ampliando o escopo a todos os interesses culturais e políticos europeus, mais do que especificamente alemães.
Nos primeiros anos do pós-guerra [3], Mann testemunhou a debilidade e os erros da República de Weimar, assim como a inflação que liquidou suas economias junto às de todo o povo alemão, fatos esses mitigados pelo mútuo desejo de reconciliação com seu irmão, bem assim por outros profundos sofrimentos psicológicos no cerne de sua família, que o levaram a repensar sua inteira relação tanto com a cultura e a política europeia quanto com a alemã.
O resultado artístico mais importante dessa reavaliação foi A Montanha Mágica. Na retórica e nos ideais de Settembrini o leitor ouve ecos das palavras de Heinrich Mann, defensor do classicismo italiano e francês, dos ideais do Renascimento e das Revoluções de 1789, 1830 e 1848; o proponente da liberdade política, da democracia e do internacionalismo como contrários a todas e a cada uma das formas de poder autoritárias, política e religiosamente dogmáticas. Por outro lado, na retórica e no raciocínio de Naptha se ouvem ecos de ódio e de desespero, através dos quais o grande artista teve que trilhar o seu próprio caminho, recobrar algum tipo de atitude filosófica positiva depois do trauma da Primeira Guerra Mundial, tal e como foi experimentada por um homem que havia amado a Alemanha Imperial, nela havia crido a havia defendido apaixonadamente.
O resultado de sua reavaliação não é uma afirmação settembriniana das tradições revolucionárias da França e da Itália, tampouco um hino à democracia contemporânea. O máximo que o autor compromete a si mesmo com uma posição específica se aproxima daquela visão de seu jovem herói no episódio da obra intitulado “Neve”. Hans Castorp sai para um aventurado passeio de esqui pelo terreno nevado, em uma tarde de tempo ameaçador. Reflete, como em muitas ocasiões anteriores, sobre as intensas leituras e conversações que hão constituído sua educação no sanatório. Perde-se meio que voluntariamente e depois, brevemente, adormece-se ao amparo de uma cabana de montanha, quando então tem um sonho completo. No sonho, num mesmo cenário de um templo clássico, vê seres humanos agindo com a mais requintada cortesia e serena alegria, e bruxos com aspecto de feiticeiros devorando os ossos de uma criança assassinada.
Ao despertar, o jovem passa imediatamente a matutar sobre o significado desse estranho e poderoso sonho. Tem tido nos últimos tempos preocupação constante com a relação entre enfermidade e saúde, morte e vida, e sua inquietude por tais fenômenos é muito mais profunda que seu interesse pela política. Agora lhe parece como se seu interesse pela morte não fosse o contrário de sua preocupação pela vida, senão que o interesse pela enfermidade e pela morte nada mais consiste do que “outra expressão de interesse pela vida” (p. 676). Devem ser tratados e compreendidos conjuntamente “a alegria e a paz e o sacrifício sangrento [...], um estado social cortês e ilustrado” e o canibalismo bestial (p. 678).
Politicamente, rechaçará a crueldade, a negatividade extrema e a teologia dogmática de Naptha. Porém também Settembrini é um “charlatão”, um otimista fácil que recusa ver a relação integral entre vida e morte no sentido puramente físico, e entre o bem e o mal no reino da atividade e da motivação humanas. Os belos jovens do sonho são plenamente conscientes dos bruxos canibais e é assim, portanto, como Hans Castorp deve aceitar a existência de ambos.
Na interpretação final de seu sonho, parte do princípio de que o amor, e não a razão, é a única força que pode sobrepujar a morte. Resume seu significado em uma frase que o próprio autor sublinha no texto: “Por respeito à bondade e ao amor, o homem não deve deixar que a morte seja soberana de seus pensamentos” (p. 678). Uma afirmação com intenção clara, uma afirmação que posiciona Hans Castorp, e por implicação o seu criador, do lado de Settembrini bem mais do que de Naptha, do lado do esforço em favor do progresso humano bem mais que do lado dos motivos de dominação e de destruição. Essa frase transfere a ênfase moral a partir das posições políticas rivais de Settembrini e de Naptha ao reino das atitudes pessoais fundamentais. Evita cuidadosamente um elogio a qualquer forma ou programa político específico (p. 638-680).
Como a enfatizar a tenuidade da frase, Hans Castorp tem dificuldade em recordar o sonho e sua interpretação quando retorna ao sanatório. Também, quando a guerra eclode em 1914, alista-se voluntariamente para a defesa de seu país, a Alemanha, sem bradar slogans de ódio em direção ao seu oponente militar, mas degustando um sentido de camaradagem e de sacrifício; em qualquer caso, sem sequer sonhar em ser opositor da consciência.
Há outro aspecto político do romance, não tão dramático assim, tampouco como a confrontação entre Settembrini e Naptha, contudo importante para o entendimento de Thomas Mann: em concreto, as implicações políticas da música. Hans Castorp é tão receptivo à música como o é à discussão política ou à beleza feminina do tipo eslavo. Durante um concerto da banda, em um domingo pela manhã, seu autonomeado mentor Settembrini expõe a ideia de que a música exerce uma influência na vida humana que é “equívoca, irresponsável [...] e politicamente suspeita” (p. 158). Settembrini sente desassossego pela intrínseca imprecisão do “significado” musical. Insiste em que a razão, e portanto a palavra, deve preceder, e presumivelmente guiar, o espírito da música.
Quando Hans Castorp e seu primo Joachim replicam que a música agita a alma, estimula a própria energia e lhe dá uma consciência espiritual da passagem do tempo e, logo, do valor do tempo, Settembrini concede que às vezes a música tem tal qualidade digna de elogio. Todavia, também, pode embotar o espírito, atuar como um opiáceo. Então, o quê? Para ele, é uma arte ambígua, em suma, “politicamente suspeita” (p. 152-159).
Próximo ao final do romance, na seção intitulada “Plenitude de Harmonia”, o autor descreve o amor de Hans pela música e sua zelosa guarda do fonógrafo e da coleção de discos do hospital. Parte da discussão versa sobre as implicações políticas e filosóficas de duas óperas, Aída e Carmem. Uma vez que as tramas e os diálogos dessas óperas são perfeitamente indicativos de seus conteúdos, Mann não pode, em minha opinião, apresentar um argumento muito convincente em favor da influência independente da música. Na ópera, como Settembrini poderia afirmar, a palavra, desde logo, precede a música. A música realça as emoções, ajuda a convencer o ouvinte do significado da ação, porém as ações e suas implicações filosóficas são claramente levantadas no texto verbal.
A discussão de uma das mais conhecidas canções (lieder) de Schubert, “A Tília” (Der Lindenbaum), contém a quintessência do difícil, embora importante, conceito que Mann está a propor (p. 874-899). O texto (descrito, porém não citado, no romance) é tal como segue:

A Tília

Por trás da fonte do pátio se ergue uma tília.
Quantas vezes à sua sombra doces sonhos vieram a mim.
Em seu tronco perfumado tenho lavrado palavras encantadas.
Na alegria ou na tristeza sua amigável sombra hei buscado.

Hoje vagueei tristemente ao cair da noite profunda.
Ocultei a árvore na escuridão, resguardei-a de minha vista.
O sussurrar de seus ramos pareciam palavras como se dissessem:
“Vem aqui, amado companheiro, e encontra o teu antigo descanso”.

Os mais amargos ventos sopravam tão friamente em meu rosto!
Meu chapéu voou às minhas costas, deu uma volta e fugiu do lugar.
Agora muitas alianças me separam daquela querida tília.
E apesar disso ainda ouço seu murmúrio: “poderias encontrar descanso em mim”.

Para Hans Castorp há algo misterioso no fato de que uma canção com um texto tão simples e inocente possa causar-lhe uma emoção tão profunda. Se ama tão intensamente essa canção em particular, deve haver amado o mundo que ela representa, a memória nostálgica dos sussurros das folhas e da sombra daquela árvore. Por meio de sua intensidade lhe parece que ela assinala um mundo de “amor proibido”.
E o que subjaz a esse mundo de amor? “Morte [...] assuntos sinistros. Fantasmais, obscuros, misantrópicos, pensamentos de câmara de tortura, hipocondria espanhola, luxúria e não o amor – estes a resultante de um puro encanto” (p. 898). Encontra morbidez em investir tantas emoções numa canção simples. Ela traz à mente a necessidade de “autoconquista, que poderia ser muito bem a essência do triunfo sobre tal amor, esse encantamento de alma que produz tão sinistros frutos” (p. 899). E segue assim entrelaçando metáforas de autoconquista e de morte, “em seus lábios a nova palavra de amor que até agora não sabia pronunciar” (p. 899).
Há uma combinação de intensidade descritiva e ambiguidade intelectual nessas páginas que não tratarei de elucidar. Não sou um desses leitores a pensar que pode afirmar mais claramente aquilo que o próprio poeta quis dizer. Porém as sensações descritas ilustram desde logo a noção da música como “politicamente suspeita” no sentido de encantar, drogar, minar o controle da razão. Apesar disso, como no sonho de “Neve”, o amor, assumindo plenamente a presença do horror, torna-se a chave para a salvação individual, para a união aceita de vida e morte por intermédio do amor – como na conduta de muitos dos pacientes de Berghof, e como na conduta do próprio Hans enquanto soldado voluntário que, encantado, arrisca sua vida ao final do romance.
Não apenas Hans Castorp, senão também o autor, Thomas Mann, creram em toda sua vida que os alemães eram um povo especialmente musical. Duas décadas depois de A Montanha Mágica, Mann haveria de escrever um romance que tratava metaforicamente do significado da era nazi e que tinha como herói um genial compositor de música atonal [4]. Limitando, contudo, minha discussão à evidência do presente texto, sugeriria as seguintes como ideias diretrizes no quanto concerne à relação da música com a cultura alemã e, por extensão, com a política alemã: o povo alemão como particularmente sensível à influência da música; o Lied como “canção popular artificial”, cujo poder emocional deriva do uso artístico consciente de melodias de origem popular; a música como algo “politicamente suspeito” em decorrência de sua tendência a drogar os impulsos racionais do cérebro; a música como expressão suprema da fusão do bem e do mal, da vida e da morte, pela via do amor.
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[1] O artigo reporta-se a um momento próximo ao final da década de 90 do século XX, exato instante em que, com a “Queda do Muro de Berlim”, uma sucessão de reviravoltas políticas varreu os países por trás da denominada “Cortina de Ferro”.

[2] A descrição nos traz à memória alguns dos fatos que marcaram indelevelmente o pós-2GM, como a repressão soviética aos “desvios burgueses” na Hungria ou, mais à frente, o freio à “Primavera de Praga”.

[3] Nomeadamente, pós-1GM, está claro.

[4] Trata-se de Doutor Fausto, de 1947, romance em cujo enredo a vida do músico Adrian Leverkühn é narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom.

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