Ao
ler a obra “The Novel 100”, encontrei a seguinte análise, do literato
norte-americano Daniel S. Burt, sobre o título de referência deste blog. A
tradução é minha e por ela me responsabilizo pelos seus erros e acertos. Como
não há quaisquer referências no texto de Burt em conexão com as passagens que menciona, procurei indicá-las nesta versão, nos pontos específicos em que as
encontrei (quando as encontrei!). As notas que apresento, ao final da resenha de Burt, são de minha autoria.
Boa
Leitura.
J.A.R
– H.C.
Referências:
BURT, Daniel S. The
novel 100: a ranking of the greatest novels of all time. Revised edited.
New York, USA: Facts on File, 2010. p. 39-43.
MANN,
Thomas. Der Zauberberg. Stuttgart; Hamburg; München: Deutschen Bücherbund GmbH
& Co., 1952.
MANN,
Thomas. The Magic Mountain. Translated by H. T. Lowe-Porter. New York: Vintage
Books, 1969.
MANN,
Thomas. A Montanha Mágica. Tradução
Herbert Caro. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
Thomas Mann – A
Montanha Mágica (1924)
“Der Zauberberg” (“A Montanha Mágica”) é a mais
complexa criação de Thomas Mann. É a suma de sua vida, pensamento e realização
técnica à idade de cinquenta anos. É sua autobiografia, confissão e apologia espiritual,
uma intrincada alegoria, uma espécie de romance histórico, uma análise do homem
e uma declaração de princípio do humanismo prático.
–
T. J. Reed, Thomas Mann: Os Usos da
Tradição
“A
Montanha Mágica” é o grande romance filosófico do Século XX. Nele, Thomas Mann empreende
uma renovação e reformulação radical do “bildungsroman” – termo alemão empregado
para o romance de aprendizagem e de formação –, bem como um alongamento expressivo
do assim chamado “conte philosophique” (conto filosófico), de Voltaire. No
romance de Mann, um confronto de ideias se move para o primeiro plano de um
drama intelectual, que consegue ser emocionalmente cativante, ao mesmo tempo que
investiga o significado da cultura ocidental. Junto com outras grandes
realizações romanescas do modernismo europeu – “Em Busca do Tempo Perdido”, “O
Homem sem Qualidades”, “Os Sonâmbulos” e “Ulysses” –, “A Montanha Mágica”
ajudou a redefinir o que o romance poderia ser. Todos, de diferentes modos, expandiram
a tradição épica e traçaram uma busca experimental de relevo. O impacto
cultural do romance de Mann, em particular, tem sido imenso. Como o crítico
alemão Arthur Eloesser bem o observou em 1925, “com este romance o povo alemão
aprendeu a ler novamente” e, em certo sentido, nós continuamos a aprender o
modo e o motivo pelos quais “A Montanha Mágica” deve ser lido: como um desafio
para a nossa mais ampla e completa consideração acerca do mistério da
existência.
A
gênese de “A Montanha Mágica” remonta ao verão de 1912, quando Mann visitou sua
esposa, em Davos, onde estava sendo tratada de um acesso de tuberculose num
sanatório. De forma similar ao ocorrido com o personagem central de seu
romance, Hans Castorp, Mann tornou-se um paciente em potencial: depois de dez dias,
Mann pegou um resfriado e consultou o especialista do sanatório, que descobriu
uma mancha úmida em seu pulmão e pediu-lhe para permanecer em tratamento. Ele
se recusou. Como recordou mais tarde: “Se eu tivesse sido Hans Castorp, a
descoberta poderia ter mudado todo o curso da minha vida. O médico me garantiu
que eu deveria agir com sabedoria, para lá permanecer por seis meses e obter a
cura. Se eu tivesse seguido o seu conselho, quem sabe, eu poderia ainda estar
lá! Em vez disso, escrevi ‘A Montanha Mágica’” (MANN, 1969, p. 487) [1]. Perto
de concluir sua novela “Morte em Veneza”, quando partiu para Davos, Mann
concebeu a ideia de converter as experiências de que lá usufruísse numa
“reunião de companheiros bem-humorados”, como uma “peça satírica depois da
tragédia”. Seria um complemento satírico à sua representação de destruição
fatal do escritor Aschenbach, o que se deveu, segundo o diagnóstico de Mann, “ao
fascínio da ideia de morte, o triunfo da embriagada desordem sobre as forças da
vida consagrada à regra e à disciplina” (MANN, 1969, p. 488). Tal como a sua
visão de Veneza, Mann adjetivou seu sanatório suíço como simbólico e
sintomático, um “círculo encantado de isolamento e invalidez”. Ironicamente, na
visão de Mann, além de oferecer cura à tuberculose, o sanatório poderia “alhear
totalmente um jovem de uma vida real e ativa”, a tal ponto que “depois dos seis
primeiros meses, a pessoa jovem não terá nenhuma outra ideia que esteja a salvo
do flerte e do termômetro sob a língua. E depois de um ano, na maioria das
vezes, chegará a perder a capacidade de ponderar sobre quaisquer outras ideias.
Virá a tornar-se completamente incapaz de viver na planície”. Em sua concepção
original, Mann descreveu Hans como um “herói simplório, em conflito entre o
decoro burguês e a aventura macabra” (MANN, 1969, p. 488). A dedicação à
história, que se expandiu na mente do escritor como um “complexo de ideias
perigosamente rico”, foi interrompida pela Primeira Guerra Mundial. Mann sentiu-se
compelido a defender a entrada da Alemanha na guerra com o polêmico “Reflexões
de um Homem Não Político”. Em sua óptica, tanto a guerra em si, quanto a sua
luta pelas ideias e valores subjacentes ao conflito, preparam-no para um
projeto artístico amplamente expandido e com “conteúdo enriquecido de forma inimaginável”.
Publicado em 1924, “A Montanha Mágica” solidificou a reputação internacional de
Mann como o maior escritor alemão desde Goethe. Como romancista, Mann, em seu
primeiro romance, “Os Buddenbrooks” (1901), teria produzido o que alguns veem
como o maior romance alemão com características realistas; com o seu terceiro
trabalho, revitalizou o “bildungsroman” clássico como um romance simbólico a
redefinir radicalmente o tempo, a caracterização e a ação dramática em um construto
intelectual e estético sem precedentes. “O Trabalho Como uma Obra de Arte”, tal
como especula Theodore Ziolkowski, “aproxima-se da perfeição em grau raramente
atingido numa escala tão monumental”.
Nos
moldes de um romance convencional de iniciação e desenvolvimento, transmutado
em busca de aventuras espiritualizadas, “A Montanha Mágica” introduz Hans
Castorp, um engenheiro naval recém-graduado de Hamburgo, numa “estranha mistura
de morte e vertigens”, num cenário remoto de uma montanha com atmosfera
rarefeita, onde se encontra o elegante Sanatório Internacional Berghof. As três
semanas de visita a seu primo Joachim, concebidas por Hans como férias antes de
dar início à sua carreira, transforma-se numa estadia de sete anos, que se
protrai de 1907 até o início da Primeira Guerra Mundial. A refletir a noção propalada
por Mann de “doença e morte como via necessária para o conhecimento, a saúde e a
vida”, o romance prescreve a Castorp uma “terapia” paralela à cura médica do
sanatório; “na hermética e febril atmosfera da montanha encantada, o material
comum de que ele é feito passa por um processo de intensificação que o torna
capaz de aventuras nas esferas sensual, moral e intelectual, jamais sonhadas na
‘planície’” (MANN, 1969, p. 490). Castorp resvala pela rotina inalterável do
sanatório, em companhia de sua coleção internacional de pacientes. Tal como o
protagonista Ulrich de Robert Musil, em “O Homem sem Qualidades”, que opta por “sair
da vida” para reavaliar as formas mais eficazes de viver, Hans Castorp troca a
planície e sua entorpecente rotina pela liberdade e diversão oferecidas por esse
refúgio na montanha, onde a temporalidade dá espaço ao atemporal e a ação é
substituída pelo embate de modos antitéticos de compreensão da experiência
humana e da natureza, em face da ameaça onipresente da doença e da morte. Na descrição
oferecida por Mann, Castorp é um “neófito curioso típico [...] que,
voluntariamente, muito voluntariamente, abraça a doença e a morte, porque o seu
primeiro contato com elas oferece-lhe a promessa de esclarecimento
extraordinário e ousado avanço, em conexão, obviamente, com os riscos
correspondentes de maior monta” (MANN, 1969, p. 492). Assim como outros heróis que
são o encanto do “bildungsroman”, Castorp é ainda informe, um questionador
maleável que, nas palavras de Hermann J. Weigland, “evolui de um jovem simples a
um gênio no campo da experiência”. A sua iniciação reverbera internamente, como
efeito de uma lídima aventura na formação da personalidade e de uma visão de
mundo firmada com o auxílio de uma variedade de mentores. Eliminando
virtualmente qualquer ação externa, povoando o cenário com personagens que são “nada
mais do que eles mesmos, – com efeito, não sendo importantes, não deixam de ser
expoentes, representantes, emissários do mundo, principados, domínios do espírito”,
Mann habilmente convoca o leitor para os confrontos dialéticos do romance. Como
Henry Hatfield veio a observar: “É um tributo ao livro o fato de que raramente
se ouvem críticas contra ele como ‘nada acontece’, ‘não há um verdadeiro herói’,
ou ainda ‘não há personagens credíveis’”.
Uma
das primeiras amizades de Castorp no sanatório é o humanista italiano
Settembrini, cuja defesa do racionalismo ocidental entra em conflito com a
atração do jovem pela sensual Chauchat Clavdia. Mais tarde Settembrini enreda-se
com o seu oponente intelectual, o jesuíta e comunista de origem judaica Naphta,
numa série de deslumbrantes duelos verbais. As posições opostas de ambos os
homens - razão contra a fé, disciplina contra destruição, nacionalismo contra
anarquia –, de fato anulam-se mutuamente e, no final, Castorp resiste a
qualquer pretensa dominação de um mentor. A quarta influência é o hedonista
holandês Mynheer Peeperkorn, que, como Madame Chauchat, oferece a emoção como alternativa
ao intelectualismo de Settembrini e Naphta, a quem Peeperkorn desdenhosamente
rejeita como “tagarelas”, caracterizando a conversa como “Cerebrum, cerebral!” (MANN, 2000, p. 809). Nenhuma ideologia
permanece não testada ou sem oposição na sinfonia irônica de conflitantes
pontos de vista, elaborada por Mann, e cada contraparte, em última análise, revela-se
decepcionante. Naphta, havendo desafiado Settembrini a um duelo, dirige a arma
contra si mesmo, num acesso de raiva frustrada, depois que o italiano atira
para cima; Settembrini, o defensor do envolvimento comprometido, retira-se então
para a sua cama; Peeperkorn, o representante da força de vida sensual, vital,
comete suicídio quando seu vigor físico falha, e Clavdia Chaucat, o símbolo da
receptividade passiva, simplesmente se afasta. Em resumo: nenhuma ideologia, tampouco
uma simples atitude perante a vida, presidem o desenvolvimento espiritual de
Castorp; antes, tudo contribui para uma filosofia evolutiva fundamentada na
intensa exposição aos muitos juízos contraditórios que o romance encarna, por
meio de seus cativantes personagens. Tal filosofia, uma visão das
possibilidades humanas que não privilegia qualquer sistema único de crenças,
permite que Hans Castorp, finalmente, quebre o encanto da montanha mágica e se
reintegre à vida da planície.
A epifania crucial de Castorp ocorre no capítulo
intitulado “Neve”, em que sai sozinho com os seus esquis, deixando para trás o
abrigo do sanatório, e vê-se envolto numa tempestade de neve ofuscante,
desorienta-se e corre risco de morte por expor-se ao “branco, girando no nada”.
É quando então Castorp tem um sonho no qual à visão de um paraíso terrestre vêm
conjugar-se imagens de horror destrutivo e de sacrifício humano; nos termos
empregados por Nietzsche, o apolíneo em contrapeso ao dionisíaco, numa síntese
criativa que nem Settembrini nem Nafta poderiam alcançar. “A deserção da morte
está encerrada na vida”, admite Castorp; “sem ela não haveria vida” (MANN,
2000, p. 677). Reconhecendo que “Mann é o senhor das contraposições”, Castorp
resolve opor-se às insolúveis antinomias da vida e da morte:
O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais
forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a
forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma
coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano [2], na recordação
silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e “reger”
bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e,
contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é
apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina
os nossos pensamentos e atos de governo. Em
consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum
poder sobre os seus pensamentos (MANN, 2000, p. 678).
Embora
a realização do sonho comece imediatamente a se desvanecer assim que Castorp retorna
à segurança do sanatório, é dele a consciência essencial, expressa no romance,
de que a morte não pode ser ignorada, mas pode ser combatida. Para tanto, Castorp
há de descer da montanha mágica, obtendo o discernimento final de que a
liberdade e o alívio que o seu mundo hermético oferece é um tipo de morte por
estagnação. O ímpeto para quebrar o feitiço é, ironicamente, a guerra que
engolfa a planície, a que Castorp adere voluntariamente. O leitor recebe um
vislumbre final de Hans Castorp no meio do sacrifício de sangue real, em plena
frente ocidental, e Mann termina o romance com uma pergunta sem resposta acerca
de Castorp e o destino da raça humana: “Momentos houve em que, cheio de
pressentimentos e absorto na tua obra de ‘rei’, viste brotar da morte e da
luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte,
da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa,
surgirá um dia o amor?” (MANN, 2000, p. 986).
O
romance impele Hans Castorp e o leitor à “compreensão de uma humanidade que, na
verdade, não ignora racionalisticamente a morte, tampouco despreza o lado obscuro
e misterioso da vida, mas leva em conta tais aspectos, sem permitir que
alcancem o controle da mente” (MANN, 1969, p. 491). A questão maior acerca do
que dimanará de tal visão é deixada sem resposta. A um grupo de estudantes de
uma escola secundária americana, que consultou o romancista sobre o que veio a
ocorrer com Hans Castorp, Mann respondeu que caso tenha sobrevivido à guerra, “certamente
terá permanecido o aluno, o ouvinte, testando, rejeitando, escolhendo, não como
escravo de si mesmo, mas como amigo de todos os bons homens”. A predição de
Mann é, substancialmente, uma análise apropriada do método e da intenção de “A
Montanha Mágica”: não é uma filosofia de vida, mas uma projeção imaginativa para
o alcance da filosofia, pela apreciação mais plena de como a vida humana pode
ser apreendida.
Notas:
[1].
Esta passagem pertence à própria nota do autor, intitulada “The Making of ‘The Magic
Mountain”, a constar em (MANN, 1969, p. 485-494).
[2].
A tradução para o inglês, transcrita por Burt, apresenta o termo “human
intercourse”, ou seja, “relações humanas”, algo bem distante do que Herbert Caro
traduz por “Estado humano”. Considerando que tais termos não são plenamente
convergentes – haja vista que o primeiro remete à ideia de recesso ao convívio
entre pares, e o segundo a uma forma política bem definida –, entendemos por
bem transcrever as passagens em inglês e em alemão, para que possam ser
avaliadas pelo leitor mais habilitado:
Love stands
opposed to death. It is love, not reason, that is stronger than death. Only
love, not reason, gives sweet thoughts. And from love and sweetness alone can
form come: form and civilization, friendly, enlightened, beautiful human
intercourse − always in silent recognition of the blood sacrifice. Ah, yes, it
is well and truly dreamed. I have taken stock. I will remember. I will keep
faith with death in my heart, yet well remember that faith with death and the
dead is evil, is hostile to humankind, so soon as we give it power over thought
and action. For the sake of goodness
and love, man shall let death have no sovereignty over his thoughts (MANN apud BURT, 2010, p. 42).
Die Liebe steht dem Tode entgegen, nur sie, nicht die
Vernunft, ist stärker als er. Nur sie, nicht die Vernunft, gibt gütige
Gedanken. Auch Form ist nur aus Liebe und Güte: Form und Gesittung
verständig-freundlicher Gemeinschaft und schönen Menschenstaats - in stillem
Hinblick auf das Blutmahl. Oh, so ist es deutlich geträumt und gut regiert! Ich
will dran denken. Ich will dem Tode Treue halten in meinem Herzen, doch mich
hell erinnern, daß Treue zum Tode und Gewesenen nur Bosheit und finstere
Wollust und Menschenfeindschaft ist, bestimmt sie unser Denken und Regieren.
Der Mensch soll um der Güte und Liebe willen dem Tode keine Herrschaft
einräumen über seine Gedanken (MANN, 1952, p. 625).