Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Faltam 60 Dias para o Natal de 2013


Faltando exatamente dois meses para o Natal de 2013, dou início, hoje, a um elenco de 'posts' relacionados à festa máxima da Cristandade. São poemas e contos que retratam, de algum modo, o que seja o clima da época.

Começamos com um conto da jovem escritora argentina Samanta Schweblin, extraído de sua coletânea "Pássaros na Boca", editado recentemente pelo grupo Benvirá. Nele se veem bem as características que marcam o seu estilo: períodos breves, diretos, às vezes alusivos, mas sempre em busca dos elementos determinantes de cada situação descrita, por mais que insólita, tal como a da presente historieta.

Ótimo proveito.

J.A.R. - H.C


PAPAI NOEL DORME EM CASA

O Natal em que Papai Noel passou a noite em casa foi a última vez que estivemos juntos; depois dessa noite, papai e mamãe pararam de brigar, apesar de eu não acreditar que Papai Noel tivesse algo a ver com isso. Papai vendera seu carro fazia uns meses porque perdera o emprego, e, apesar de mamãe não estar de acordo, ele disse que uma boa árvore de Natal seria importante daquela vez, e comprou uma de qualquer jeito. Vinha numa caixa de papelão, larga e plana, e trazia uma folha que explicava como encaixar as três partes e abrir os ramos de forma que parecesse natural. Armada, era mais alta que papai, era imensa, e acho que foi por isso que naquele ano Papai Noel dormiu em nossa casa. Eu havia pedido de presente um carro de controle remoto. Qualquer um seria legal, não queria um em particular, pois todos os garotos tinham um naquela época e quando brincávamos no pátio os carros de controle remoto se dedicavam a se chocar contra os carros comuns, como o meu. De modo que havia escrito minha carta e papai me levara até o correio para enviá-la. Ele disse ao sujeito do guichê:
-      Estamos enviando esta ao Papai Noel - e lhe passou o envelope.
O sujeito do guichê nem cumprimentou, pois havia muita gente e se via que já estava cansado de tanto trabalho; a época natalina deve ser a pior para eles. Pegou a carta, olhou para ela e disse:
-      Falta o código postal.
-     Mas é para o Papai Noel - disse papai, e sorriu e lhe deu uma piscadela para parecer amistoso, e o sujeito respondeu:
-      Sem o código postal não vai.
-      O senhor sabe que o endereço do Papai Noel não tem código postal - insistiu papai.
-      Sem código postal não vai - repetiu o sujeito, e chamou o seguinte.
E então papai subiu no balcão, agarrou o sujeito pelo colarinho da camisa, e a carta foi.
Por isso eu estava preocupado naquele dia, pois não sabia se a carta chegara ou não ao Papai Noel, e o tal assunto do carro era importante para que os meninos que brincavam no pátio do colégio me aceitassem.
Além disso, não podíamos contar com mamãe fazia uns dois meses, e isso também me preocupava, pois quem sempre cuidava de tudo era a mamãe, e então tudo corria bem. Um dia, porém, ela deixou de se preocupar, assim, de um dia para outro. Alguns médicos a viram, papai sempre a acompanhava e eu ficava na casa da Marcela, que é nossa vizinha. Mas mamãe não melhorou. Deixamos de ter leite e cereais de manhã, roupa limpa para vestir; papai sempre chegava atrasado aos lugares em que devia me levar, e depois chegava outra vez atrasado na hora de me buscar. Quando pedi explicações, papai disse que mamãe não estava doente, nem tinha câncer ou iria morrer. Que bem poderia ter acontecido algo assim, mas ele não era um homem de tanta sorte. Marcela me explicou que mamãe simplesmente havia deixado de acreditar nas coisas, que isso era estar "deprimido", e tirava a vontade de tudo, e demorava a acabar. Mamãe não ia mais trabalhar nem se juntava com amigas nem falava ao telefone com minha avó. Sentava-se com seu moletom diante do televisor, e mudava os canais a manhã inteira, a tarde inteira e a noite inteira. Eu era o encarregado de lhe dar comida. Marcela deixava comida pronta no freezer com as porções marcadas. Era necessário combiná-las; não podia, por exemplo, dar-lhe todo o bolo de batatas e depois toda a torta de legumes, precisava combinar as porções para que a alimentação fosse saudável. Descongelava-a no micro-ondas e a levava numa bandeja, com o copo d'água e os talheres. Mamãe dizia:
-      Obrigado, meu amor, não pegue friagem - dizia isso sem olhar para mim, sem perder de vista o que acontecia no televisor.
Na saída do colégio eu me agarrava à mão da mãe do Augusto, que era bem bonitona. Isso funcionava quando papai vinha me buscar, mas depois, quando Marcela começou a vir, nenhuma delas pareceu gostar disso, de modo que comecei a esperar debaixo da árvore da esquina. Qualquer pessoa que fosse me buscar sempre chegava atrasada.
Marcela e papai se tornaram muito amigos, e em algumas noites papai ficava com ela na casa ao lado, jogando pôquer, e era custoso para mim e mamãe dormirmos sem ele em casa; a gente se cruzava no banheiro e então mamãe dizia:
-      Cuidado, meu amor, não pegue friagem - e voltava para a frente do televisor.
Marcela permanecia em casa muitas tardes; eram as tardes em que cozinhava para nós e arrumava um pouco as coisas. Não sei por que fazia isso. Suponho que papai lhe pedisse ajuda e, como ela era sua amiga, sentia-se na obrigação, pois na verdade não parecia muito contente. Umas duas vezes desligou o televisor de mamãe, sentou-se na frente dela e lhe disse:
-      Júlia, precisamos conversar, isto não pode continuar assim...
Dizia que ela precisava mudar de atitude, que assim não chegaria a lugar nenhum, que ela não podia continuar cuidando de tudo, que mamãe precisava reagir e tomar uma decisão ou acabaria arruinando nossa vida. Porém, mamãe nunca respondia. E, no final, Marcela acabava indo embora e batendo a porta, e naquela noite papai pedia pizza porque não havia nada para jantar, e eu adoro pizza.
Eu tinha dito a Augusto que mamãe havia deixado de "acreditar nas coisas", e que andava "deprimida", e ele quis ver como era isso. Fizemos uma coisa muito feia da qual às vezes sinto vergonha: pulamos na frente dela durante um tempo, mas mamãe só se esquivava da gente com a cabeça; depois fizemos para ela um chapéu com folhas de jornal, experimentamos nela de várias maneiras, e o deixamos colocado durante a tarde inteira, mas ela nem se mexeu. Tirei o chapéu dela antes que papai chegasse. Tinha certeza de que mamãe não ia lhe dizer nada, porém me sentia mal de qualquer jeito.
Depois chegou o Natal. Marcela fez seu frango assado com legumes horríveis, mas como era uma noite especial ela também me preparou batata frita. Papai pediu à mamãe que deixasse a poltrona e jantasse com a gente. Levou-a cuidadosamente até a mesa - Marcela a preparara com uma toalha vermelha, velas verdes e os pratos que usamos para as visitas -, sentou-a em uma das cabeceiras e se afastou uns passos para trás, sem deixar de olhá-la; suponho que pensou que isso podia funcionar, porém, quando ele estava suficientemente longe dela, ela se levantou e voltou para sua poltrona. De modo que mudamos as coisas para a mesinha de centro do living e comemos ali com ela. A tevê estava ligada, claro, e o noticiário mostrava uma matéria sobre um lugar de gente pobre que recebera um montão de presentes e comida de gente mais rica, e então agora todos pareciam muito contentes. Eu estava nervoso e olhava a todo instante para a árvore de Natal, pois já ia dar meia-noite e queria meu carro. Então mamãe apontou para o televisor. Foi como ver um móvel se movimentar. Papai e Marcela se entreolharam. Na tevê, Papai Noel estava sentado no living de uma casa, com uma mão abraçava um menino sentado sobre suas pernas, e com a outra uma mulher parecida com a mãe de Augusto, e então a mulher se inclinava e beijava o Papai Noel e o Papai Noel olhava para você e dizia:
-      ... e quando volto do trabalho não quero nada além de estar com minha família - e uma marca de café aparecia na tela.
Mamãe começou a chorar. Marcela me pegou pela mão e me pediu que subisse para o quarto, mas me neguei. Voltou a me dizer isso, desta vez com o tom impaciente com que fala com mamãe, porém ninguém ia me afastar da árvore naquela noite. Papai quis desligar o televisor e mamãe começou a lutar com ele feito um bebê. A campainha soou e eu disse:
-      E o Papai Noel. - E Marcela me deu uma porrada e então papai começou a brigar com Marcela e mamãe ligou outra vez o televisor, porém Papai Noel já não estava em nenhum canal. A campainha voltou a soar e papai disse:
-      Quem é, merda?
Desejei que não fosse o cara do correio, pois voltariam a brigar e papai já estava de mau humor.
A campainha tocou outra vez, muitas vezes seguidas, e então papai se cansou, foi até a porta e quando a abriu viu que era o Papai Noel. Não era tão gordo como na televisão e parecia cansado, não podia se manter em pé e se apoiava um pouco de um lado da porta, e um pouco do outro.
-      O que quer?
-      Sou Papai Noel - disse Papai Noel.
-      E eu sou a Branca de Neve - respondeu papai e fechou a porta.
Então mamãe se levantou, correu até a porta, abriu-a e Papai Noel ainda estava lá, tratando de ficar em pé, e ela o abraçou. Papai teve um ataque:
-     Esse é o sujeito, Júlia? - gritou para mamãe, e começou a dizer palavrões e a tentar separá-los. E mamãe disse ao Papai Noel:
-      Bruno, não posso mais viver sem você, estou morrendo.
Papai conseguiu separá-los e deu uma porrada no Papai Noel e Papai Noel caiu para trás e ficou duro na entrada. Mamãe começou a gritar feito louca. Eu estava triste pelo que estava acontecendo com Papai Noel, e porque tudo aquilo atrasava o assunto do carro, embora por outro lado me alegrasse ver mamãe outra vez em movimento.
Papai disse para a mamãe que iria matar os dois e mamãe lhe respondeu que se ele era tão feliz com a amiga dele por que ela não podia ser amiga de Papai Noel, coisa que me pareceu muito lógica. Marcela se aproximou do Papai Noel para ajudá-lo, pois ele começava a se mexer no chão, e lhe deu uma mão para se levantar. Então papai começou outra vez a lhe dizer um monte de coisas e mamãe a gritar. Marcela dizia acalmem-se, vamos entrar, por favor, mas ninguém a escutava. Papai Noel levou a mão à nuca e viu que sangrava. Cuspiu em papai e papai lhe disse:
-      Bichona de merda.
E mamãe disse ao papai:
-      Bichona é você, filho da puta - e também cuspiu nele.
Deu a mão ao Papai Noel, fez com que ele entrasse em casa, levou-o ao seu quarto e se trancou.
Papai permaneceu como que congelado, e quando reagiu se deu conta de que eu ainda continuava ali e mandou furioso que eu fosse para a cama. Sabia que não estava em condições de discutir; fui para o quarto sem Natal e sem presente. Esperei deitado até que tudo ficasse em silêncio, olhando o reflexo dos peixes de plástico de meu abajur nadar nas paredes. Não ia ter meu carro de controle remoto, isso estava claríssimo, porém Papai Noel dormia em casa naquela noite e isso me garantia um ano melhor.

Referência:

SCHWEBLIN, Samanta. Papai Noel dorme em casa. In: Pássaros na boca. Tradução Joca Reiners Terron. São Paulo: Benvirá, 2012. p. 205-213.

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