Faltando
exatamente dois meses para o Natal de 2013, dou início, hoje, a um elenco de
'posts' relacionados à festa máxima da Cristandade. São poemas e contos que
retratam, de algum modo, o que seja o clima da época.
Começamos
com um conto da jovem escritora argentina Samanta Schweblin, extraído de sua
coletânea "Pássaros na Boca", editado recentemente pelo grupo
Benvirá. Nele se veem bem as características que marcam o seu estilo: períodos
breves, diretos, às vezes alusivos, mas sempre em busca dos elementos
determinantes de cada situação descrita, por mais que insólita, tal como a da
presente historieta.
Ótimo
proveito.
PAPAI NOEL
DORME EM CASA
O Natal em que Papai
Noel passou a noite em casa foi a última vez que estivemos juntos; depois dessa
noite, papai e mamãe pararam de brigar, apesar de eu não acreditar que Papai
Noel tivesse algo a ver com isso. Papai vendera seu carro fazia uns meses
porque perdera o emprego, e, apesar de mamãe não estar de acordo, ele disse que
uma boa árvore de Natal seria importante daquela vez, e comprou uma de qualquer
jeito. Vinha numa caixa de papelão, larga e plana, e trazia uma folha que
explicava como encaixar as três partes e abrir os ramos de forma que parecesse
natural. Armada, era mais alta que papai, era imensa, e acho que foi por isso
que naquele ano Papai Noel dormiu em nossa casa. Eu havia pedido de presente um
carro de controle remoto. Qualquer um seria legal, não queria um em particular,
pois todos os garotos tinham um naquela época e quando brincávamos no pátio os
carros de controle remoto se dedicavam a se chocar contra os carros comuns,
como o meu. De modo que havia escrito minha carta e papai me levara até o
correio para enviá-la. Ele disse ao sujeito do guichê:
- Estamos enviando esta ao Papai Noel - e
lhe passou o envelope.
O
sujeito do guichê nem cumprimentou, pois havia muita gente e se via que já
estava cansado de tanto trabalho; a época natalina deve ser a pior para eles.
Pegou a carta, olhou para ela e disse:
- Falta o código postal.
- Mas é para o Papai Noel - disse papai, e
sorriu e lhe deu uma piscadela para parecer amistoso, e o sujeito respondeu:
- Sem o código postal não vai.
- O senhor sabe que o endereço do Papai Noel
não tem código postal - insistiu papai.
- Sem código postal não vai - repetiu o
sujeito, e chamou o seguinte.
E
então papai subiu no balcão, agarrou o sujeito pelo colarinho da camisa, e a
carta foi.
Por isso eu estava
preocupado naquele dia, pois não sabia se a carta chegara ou não ao Papai Noel,
e o tal assunto do carro era importante para que os meninos que brincavam no
pátio do colégio me aceitassem.
Além disso, não podíamos
contar com mamãe fazia uns dois meses, e isso também me preocupava, pois quem
sempre cuidava de tudo era a mamãe, e então tudo corria bem. Um dia, porém, ela
deixou de se preocupar, assim, de um dia para outro. Alguns médicos a viram,
papai sempre a acompanhava e eu ficava na casa da Marcela, que é nossa vizinha.
Mas mamãe não melhorou. Deixamos de ter leite e cereais de manhã, roupa limpa
para vestir; papai sempre chegava atrasado aos lugares em que devia me levar, e
depois chegava outra vez atrasado na hora de me buscar. Quando pedi
explicações, papai disse que mamãe não estava doente, nem tinha câncer ou iria
morrer. Que bem poderia ter acontecido algo assim, mas ele não era um homem de
tanta sorte. Marcela me explicou que mamãe simplesmente havia deixado de
acreditar nas coisas, que isso era estar "deprimido", e tirava a
vontade de tudo, e demorava a acabar. Mamãe não ia mais trabalhar nem se
juntava com amigas nem falava ao telefone com minha avó. Sentava-se com seu
moletom diante do televisor, e mudava os canais a manhã inteira, a tarde
inteira e a noite inteira. Eu era o encarregado de lhe dar comida. Marcela
deixava comida pronta no freezer com as porções marcadas. Era necessário
combiná-las; não podia, por exemplo, dar-lhe todo o bolo de batatas e depois
toda a torta de legumes, precisava combinar as porções para que a alimentação
fosse saudável. Descongelava-a no micro-ondas e a levava numa bandeja, com o
copo d'água e os talheres. Mamãe dizia:
- Obrigado, meu amor, não pegue friagem -
dizia isso sem olhar para mim, sem perder de vista o que acontecia no
televisor.
Na saída do colégio eu
me agarrava à mão da mãe do Augusto, que era bem bonitona. Isso funcionava
quando papai vinha me buscar, mas depois, quando Marcela começou a vir, nenhuma
delas pareceu gostar disso, de modo que comecei a esperar debaixo da árvore da
esquina. Qualquer pessoa que fosse me buscar sempre chegava atrasada.
Marcela e papai se
tornaram muito amigos, e em algumas noites papai ficava com ela na casa ao
lado, jogando pôquer, e era custoso para mim e mamãe dormirmos sem ele em casa;
a gente se cruzava no banheiro e então mamãe dizia:
- Cuidado, meu amor, não pegue friagem - e
voltava para a frente do televisor.
Marcela permanecia em
casa muitas tardes; eram as tardes em que cozinhava para nós e arrumava um
pouco as coisas. Não sei por que fazia isso. Suponho que papai lhe pedisse
ajuda e, como ela era sua amiga, sentia-se na obrigação, pois na verdade não
parecia muito contente. Umas duas vezes desligou o televisor de mamãe,
sentou-se na frente dela e lhe disse:
- Júlia, precisamos conversar, isto não pode
continuar assim...
Dizia que ela precisava
mudar de atitude, que assim não chegaria a lugar nenhum, que ela não podia
continuar cuidando de tudo, que mamãe precisava reagir e tomar uma decisão ou
acabaria arruinando nossa vida. Porém, mamãe nunca respondia. E, no final,
Marcela acabava indo embora e batendo a porta, e naquela noite papai pedia
pizza porque não havia nada para jantar, e eu adoro pizza.
Eu tinha dito a Augusto
que mamãe havia deixado de "acreditar nas coisas", e que andava
"deprimida", e ele quis ver como era isso. Fizemos uma coisa muito
feia da qual às vezes sinto vergonha: pulamos na frente dela durante um tempo,
mas mamãe só se esquivava da gente com a cabeça; depois fizemos para ela um
chapéu com folhas de jornal, experimentamos nela de várias maneiras, e o
deixamos colocado durante a tarde inteira, mas ela nem se mexeu. Tirei o chapéu
dela antes que papai chegasse. Tinha certeza de que mamãe não ia lhe dizer
nada, porém me sentia mal de qualquer jeito.
Depois chegou o Natal.
Marcela fez seu frango assado com legumes horríveis, mas como era uma noite especial
ela também me preparou batata frita. Papai pediu à mamãe que deixasse a
poltrona e jantasse com a gente. Levou-a cuidadosamente até a mesa - Marcela a
preparara com uma toalha vermelha, velas verdes e os pratos que usamos para as
visitas -, sentou-a em uma das cabeceiras e se afastou uns passos para trás,
sem deixar de olhá-la; suponho que pensou que isso podia funcionar, porém,
quando ele estava suficientemente longe dela, ela se levantou e voltou para sua
poltrona. De modo que mudamos as coisas para a mesinha de centro do living e
comemos ali com ela. A tevê estava ligada, claro, e o noticiário mostrava uma
matéria sobre um lugar de gente pobre que recebera um montão de presentes e
comida de gente mais rica, e então agora todos pareciam muito contentes. Eu
estava nervoso e olhava a todo instante para a árvore de Natal, pois já ia dar
meia-noite e queria meu carro. Então mamãe apontou para o televisor. Foi como
ver um móvel se movimentar. Papai e Marcela se entreolharam. Na tevê, Papai
Noel estava sentado no living de uma casa, com uma mão abraçava um menino
sentado sobre suas pernas, e com a outra uma mulher parecida com a mãe de
Augusto, e então a mulher se inclinava e beijava o Papai Noel e o Papai Noel
olhava para você e dizia:
-
... e quando volto do trabalho não
quero nada além de estar com minha família - e uma marca de café aparecia na
tela.
Mamãe começou a chorar.
Marcela me pegou pela mão e me pediu que subisse para o quarto, mas me neguei.
Voltou a me dizer isso, desta vez com o tom impaciente com que fala com mamãe,
porém ninguém ia me afastar da árvore naquela noite. Papai quis desligar o
televisor e mamãe começou a lutar com ele feito um bebê. A campainha soou e eu
disse:
- E o Papai Noel. - E Marcela me deu uma
porrada e então papai começou a brigar com Marcela e mamãe ligou outra vez o
televisor, porém Papai Noel já não estava em nenhum canal. A campainha voltou a
soar e papai disse:
- Quem é, merda?
Desejei que não fosse o
cara do correio, pois voltariam a brigar e papai já estava de mau humor.
A campainha tocou outra
vez, muitas vezes seguidas, e então papai se cansou, foi até a porta e quando a
abriu viu que era o Papai Noel. Não era tão gordo como na televisão e parecia
cansado, não podia se manter em pé e se apoiava um pouco de um lado da porta, e
um pouco do outro.
- O que quer?
- Sou Papai Noel - disse Papai Noel.
- E eu sou a Branca de Neve - respondeu
papai e fechou a porta.
Então mamãe se levantou,
correu até a porta, abriu-a e Papai Noel ainda estava lá, tratando de ficar em
pé, e ela o abraçou. Papai teve um ataque:
- Esse é o sujeito, Júlia? - gritou para
mamãe, e começou a dizer palavrões e a tentar separá-los. E mamãe disse ao
Papai Noel:
- Bruno, não posso mais viver sem você,
estou morrendo.
Papai conseguiu
separá-los e deu uma porrada no Papai Noel e Papai Noel caiu para trás e ficou
duro na entrada. Mamãe começou a gritar feito louca. Eu estava triste pelo que
estava acontecendo com Papai Noel, e porque tudo aquilo atrasava o assunto do
carro, embora por outro lado me alegrasse ver mamãe outra vez em movimento.
Papai disse para a mamãe
que iria matar os dois e mamãe lhe respondeu que se ele era tão feliz com a
amiga dele por que ela não podia ser amiga de Papai Noel, coisa que me pareceu
muito lógica. Marcela se aproximou do Papai Noel para ajudá-lo, pois ele
começava a se mexer no chão, e lhe deu uma mão para se levantar. Então papai
começou outra vez a lhe dizer um monte de coisas e mamãe a gritar. Marcela
dizia acalmem-se, vamos entrar, por favor, mas ninguém a escutava. Papai Noel
levou a mão à nuca e viu que sangrava. Cuspiu em papai e papai lhe disse:
- Bichona de merda.
E mamãe disse ao papai:
- Bichona é você, filho da puta - e também
cuspiu nele.
Deu a mão ao Papai Noel,
fez com que ele entrasse em casa, levou-o ao seu quarto e se trancou.
Papai permaneceu como
que congelado, e quando reagiu se deu conta de que eu ainda continuava ali e
mandou furioso que eu fosse para a cama. Sabia que não estava em condições de
discutir; fui para o quarto sem Natal e sem presente. Esperei deitado até que
tudo ficasse em silêncio, olhando o reflexo dos peixes de plástico de meu
abajur nadar nas paredes. Não ia ter meu carro de controle remoto, isso estava
claríssimo, porém Papai Noel dormia em casa naquela noite e isso me garantia um
ano melhor.
Referência:
SCHWEBLIN, Samanta. Papai Noel dorme em casa. In: Pássaros na boca. Tradução Joca
Reiners Terron. São Paulo: Benvirá, 2012. p. 205-213.
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