Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Condição de Ser Judeu - Parte III

Foram as medidas ferozes e hipócritas do cristianismo que reduziram à usura os judeus medievais e renascentistas. E que fizeram um tipo da figura de Shylock. Mas há um elemento suplementar. A intimidade dos judeus com o dinheiro é, em certo sentido, visceral. Remonta aos múltiplos motivos e prescrições fiscais com que deparamos no livro de Moisés. Como talvez em nenhuma outra mitologia, o dinheiro desempenha um papel canônico nas narrativas da boa sorte e da traição. O vendedor ambulante habilidoso é identificado muitas vezes com o judeu errante. Acedendo a uma categoria superior, aquele tornar-se-á negociante avisado, mercador que atravessa as fronteiras, banqueiro e corretor do capitalismo. Independentemente das bases que possa ter no protestantismo, a evolução do capitalismo moderno e a crítica que inspirou encontram um quadro natural e adaptativo no interior das comunidades de judeus. Os Rothschild substituem Shylock. Dos finais do século XIX em diante, a assiduidade e o engenho dos judeus nos mercados financeiros, nos bancos de investimento, nos capitais de risco e nas bolsas foram praticamente dominadores. A aristocracia judaica, a dos Bleichröder, dos Rothschild, dos Warburg e Lazard foi uma aristocracia da alta finança. Companhias como a Goldman Sachs ou a Lehman Brothers, alquimistas individuais como George Soros, foram atores decisivos nos mecanismos fiscais do Ocidente. A economia das multinacionais mobilizou em seu proveito os instintos itinerantes e cosmopolitas dos judeus. E “naturaliza” a sua condição. É assim que, hoje, uma percentagem significativa da finança global se encontra sob a gestão de judeus. Os talentos analíticos e matemáticos revelados pelos lógicos e cientistas judeus afirmaram-se brilhantemente nos domínios, ao mesmo tempo hiper-racionais e demoníacos, do dinheiro. Daqui a consonância entre a Diáspora e os impulsos econômicos exuberantes que movem a vida americana. Mas igualmente na Rússia pós-comunista, muitos dos barões-salteadores, dos empresários multimilionários, parecem ter surgido como cogumelos do interior de uma minoria durante muito tempo desprezada e perseguida.
O reverso dialético da medalha é igualmente impressionante. Foi do interior do judaísmo, de Amos a Marcuse, que provieram as denúncias mais radicais e exaltadas da busca e da idolatria da riqueza. O mais intenso ódio frente ao Bezerro de Ouro. Todas as variedades de socialismo e de comunismo foram penetradas, tanto em termos de doutrina como de história, pelos valores e participação dos judeus. A retórica profética e acusatória de Karl Marx, a inspiração e a iconografia bíblicas das suas páginas são entranhadamente judaicas. Os judeus pululavam nas organizações mencheviques e bolcheviques. Considerando a figura tradicional de Mamona, os judeus radicais, socialistas, marxistas, de temperamento pragmático ou utópico, levantam-se contra os detentores da riqueza. O movimento de esquerda que implantou o kibbutz visava abolir por completo o regime governado pelo dinheiro e o seu sistema de remuneração e incentivos pecuniários. Em termos fulgurantes, Amos advoga a marcha dos habitantes do deserto ascéticos e sem dinheiro sobre as cidades corruptas e afogadas em riqueza. (Teria Mao lido estas páginas?) O Messias não trará uma moeda consigo.
No entanto, a partir do interior do próprio capitalismo, os judeus deram provas de criatividade, explorando, por assim dizer, o seu sucesso financeiro. Contribuíram muito mais do que qualquer outro grupo étnico para obras de assistência, para fundações de ensino e educação, para instituições culturais, para centros de investigação e de prestação de serviços médicos. Nos Estados Unidos, os melhores estabelecimentos de ensino superior, hospitais, museus e orquestras sinfônicas são significativamente financiados pela liberalidade dos judeus. À falta das generosas contribuições dos judeus, muitas vezes de origem imigrante, a situação financeira das artes e da investigação no Reino Unido seria ainda mais inquietante do que já é. Também a este nível, os ideais e critérios mobilizadores são de raiz bíblica. As escrituras hebraicas abundam em exortações à caridade, ao socorro dos desfavorecidos e dos estrangeiros. O excedente deve ser redistribuído, ainda que pelos ceifeiros moabitas. “Nesse ano de júbilo, a cada um de vós será restituída a sua propriedade” (Levítico 25, 13).
Forçados por uma pressão hostil, mas também por uma capacidade profundamente enraizada, ao exercício dos seus dons financeiros e comerciais exuberantes, os judeus alimentaram sempre o sentimento premente da existência de critérios e laços sociais anteriores ao dinheiro e que este não podia contaminar. Desfaziam-se, pois, do dinheiro como se este sujasse os dedos a que se prendia. Que haverá de mais judaico do que a invocação por Marx, nos Manuscritos de 1844, de uma sociedade na qual o amor fosse trocado pelo amor, a confiança pela confiança, em vez de o dinheiro por dinheiro? Há uma velha máxima judaica que diz que morrer rico é ao mesmo tempo uma derrota e uma loucura.
Poderiam também existir outros traços distintivos resultantes da ação simultânea do meio e de uma forma de hereditariedade ainda não descodificada. O humor judaico é um capítulo volumoso. Tem um sal próprio, uma espécie de desespero revigorante. A sua auto-ironia documenta uma resistência sortílega frente ao sofrimento e frente à exclusão. Não é por acaso que os dois únicos escritos filosóficos de primeira grandeza sobre os ditos de espírito se devem a Freud e a Bergson. Todos os povos acarinham os seus filhos. No judaísmo, a atenção de que são objeto mostra-se muitas vezes incomparável. Deste ponto de vista, Jesus de Nazaré é judeu num grau supremo. No clima ansioso dos dias que correm, os criminologistas referem que os casos de pedofilia e abuso de crianças são singularmente raros entre os judeus. As regras alimentares, originalmente higiênicas e terapêuticas, legaram aos judeus, onde quer que hoje os encontremos, certas aversões características. Estas conferiram aos judeus o seu lugar à parte, no que se refere às distinções antropologicamente fundamentais estabelecidas entre o puro e o impuro. A circuncisão é hoje largamente praticada. Terá este uso, a par de outros tabus, conferido um teor peculiar à sexualidade dos judeus? As questões não param de multiplicar-se.
Entre elas, a mais premente e intratável é a da constância do antissemitismo.
Será possível desenredar as suas causas subjacentes? Deverá durar para sempre?
As tentativas visando explicar este cancro são muitas. Os historiadores citam traços de ódio ao judeu na Antiguidade Mediterrânica. Detectam na Roma Imperial certas atitudes destinadas a persistir. A singularidade dos judeus alimentava suspeitas, e coisas ainda mais graves. A recusa por parte dos judeus de observarem as formalidades razoavelmente benignas estipuladas para as cerimônias cívicas e imperiais exasperava os governantes e os vizinhos. Parecia haver uma presunção teocrática irritante na base da sua recusa da assimilação. Numa atmosfera de ecumenismo sincrético, o Deus de Israel desprezava a companhia das outras divindades, e os conquistadores romanos de Jerusalém recuaram perante o vazio sem rosto do Santo dos Santos no templo saqueado. A abstração do que se supunha serem as crenças judaicas (de fato, o monoteísmo irrompera noutros lugares) e a ausência de imagens públicas engendravam inquietações malevolentes. Eis uma minoria intratável, um elemento de ruptura entre as nações, cm contacto com esferas ocultas e fontes secretas de poder.
No conjunto, todavia, a hostilidade frente à Judeia, ainda quando tomava uma forma violenta, era de ordem política e territorial, mais do que ideológica. É esse reflexo que encontramos documentado em Tácito.
Tudo mudou com o advento e o triunfo do cristianismo pauliniano, a mais ativa e carregada de consequências das formas de ódio de si da história do judaísmo. Seguiu-se a canonização das passagens incriminadoras dos judeus nos Evangelhos Sinópticos. O cristianismo não podia perdoar, nunca esqueceu a recusa por parte dos judeus de entrarem por sua livre vontade na ecclesia. Sob certos aspectos, essa recusa, que segundo a teologia pauliniana mantém na condição de refém a humanidade inteira, continua a ser de fato um enigma quando pensamos nas esperanças messiânicas e em certas predições apocalípticas do Antigo Testamento (talvez, segundo uma observação sarcástica de Scholem, os judeus tenham esperado uns quinze dias a partir da suposta ressurreição de Jesus, antes de concluírem que absolutamente nada mudara). A fúria dos Padres da Igreja e do clero nascente perante os que não queriam reconhecer em Cristo o prometido, o Messias ressuscitado, desencadeou milênios de ódio e de perseguições. O antissemitismo persistiu no seu avanço venenoso até uma “solução final”. As continuidades talvez sejam tortuosas e nalguns casos subterrâneas, mas são também inegáveis.
Não há documentos que possam prestar justiça a este prolongado horror. São famosos certos episódios, certos períodos de particular perseguição. Aí se incluem os massacres no tempo das Cruzadas, os pogroms na Europa Central e Oriental que da Idade Média se estendem até aos tempos modernos, a expulsão de Espanha e os seus atrozes efeitos inquisitoriais subsequentes, os inumeráveis casos de chacina desencadeados pelos pretensos “crimes rituais” (cuja bestialidade é ainda honrosamente comemorada nos meios rurais austríacos do século xxi). Mas não são estas explosões de terror a substância essencial da história: é a condição quotidiana do judeu num mundo cristão. Para além do calculável, como a “matéria negra” da cosmologia, há o ostracismo social, as extorsões, a discriminação judicial, a humilhação a que as judias e os judeus estavam expostos até mesmo no interior de comunidades relativamente liberalizadas e formalmente tolerantes. Não é possível listar as ocasiões em que as crianças se viram perseguidas nas ruas (desporto que conheço em primeira mão), cobertas de escarros ou maltratadas quando iam a caminho da escola; as situações, públicas e profissionais, em que os seus pais eram tratados com condescendência, injuriados ou postos na rua. Os judeus carregam consigo, desde a infância, o suor do medo. Talvez só os ciganos tenham suportado uma crônica de rejeição comparável. A loucura da Shoah, muito para além do inteligível ou narrável, teve a sua lógica – como é muitas vezes o caso da loucura. Só a aniquilação total podia pôr termo ao “problema judeu”. O assassínio tinha de ser ontológico. O que significa que tinha de eliminar o fato de existirem judeus. Não se podia permitir que o feto judeu viesse ao mundo. Devia ser abatido juntamente com a sua mãe grávida. No matadouro nazi, o pecado original do judeu, a lepra com que ameaçava o gentio de contágio, era a simples existência. As discussões sobre a possível unicidade Shoah são superficiais e degradantes. Estaline levou à morte muito mais seres humanos do que Hitler. Milhões de entre os chamados cúlaques e as suas famílias foram deliberadamente mortos de fome pelo crime de serem cúlaques. Os armênios, os indonésios e as populações da Somália foram massacrados em massa. De que relatos fiáveis dispomos no que se refere à eliminação dos aborígenes australianos, ao genocídio no Congo Belga (os historiadores situam o número das vítimas algures entre os cinco e os dez milhões). O Homo sapiens é uma criatura propensa ao homicídio, equipada para o sadismo. Estatisticamente, o Holocausto, quase sem margem para dúvidas, não terá sido o pior capítulo. A nossa Terra está semeada de campos de morte. E, contudo, há uma diferença. Que bem poderá ser decisiva. Nenhuma ideologia além do hitlerismo definiu e proclamou a existência e a sobrevivência como criminosas. Nenhuma outra ideologia e nenhum outro programa político proclamou abertamente que os seus fins não poderiam ser alcançados enquanto um judeu, apesar de não passar de um verme, pusesse em perigo, nos termos desta ou daquela patologia, a existência do não-judeu. Porque a persistência desse destroço longamente abominado poderia infectar o sangue e a alma dos seus companheiros de humanidade. Assim, dos massacres da Renânia e das piras da Inquisição às câmaras de gás, foi percorrida uma via sinuosa. Mas que podemos cartografar. Os amenos sentimentos de penitência de algumas declarações recentes do Vaticano são em grande medida cosméticos. A imagem do judeu como pária tem raízes profundas: “Erravam como cegos pelas ruas, manchados de sangue, ninguém podia tocar as suas vestes [...] espiavam os nossos passos, e proibiam-nos as nossas ruas” (Lamentações 4, 14-18).
Haverá uma explicação convincente? Para o fato de os japoneses, que quase nunca terão visto um judeu, serem tenazes editores e difusores desse livro inteiramente fraudulento, mas assassino, que é Protocolos dos Sábios de Sião? Para o incansável ódio aos judeus que, se mantém na Polônia, na Áustria, hoje mesmo, quando não subsistem praticamente judeus nesses países? Para o ressurgimento de um antissemitismo acerbo na Rússia pós-comunista e, de fato, em diferentes núcleos dispersos pela Europa Ocidental? Passar-se-á uma noite sem que um cemitério judeu seja vandalizado, até mesmo na tolerante Grã-Bretanha? “O tumulto dos teus inimigos cresce a cada momento” (Salmos 74, 23).
Por quê?
As teorias históricas, sociológicas e econômicas abundam. Devida tanto a fatores internos como à imposição do exterior, a singularidade do judeu, o seu isolamento, a sua recusa, na longa duração, de se fundir na humanidade comum, irritou e enfureceu o gentio. Foi uma espinha atravessada na sua garganta. O exclusor sentia-se excluído – combinação de papéis explosiva. A abstenção de proselitismo característica dos judeus, os obstáculos que levanta aos que possam querer participar no seu pacto – impulso excêntrico, mas não desconhecido –, agravaram o sentimento de ostracismo recíproco aqui em causa. Só a eliminação, ainda que por meio de um epitáfio pavoroso, poderia resolver esta intuição persistente de uma espécie de arrogância transcendental no judeu. No plano econômico, os judeus emprestavam dinheiro, embora desempenhassem com probidade e forçados esse papel. Matemo-lo, incendiemos a sua casa e os seus livros de contas, e as nossas dívidas serão anuladas. Este factor teve, sem dúvida, a sua importância nos pogroms, no entusiasmo posto na expulsão dos judeus da região. Com a fortuna próspera que os judeus conheceram, como já lembrei, no capitalismo avançado, a inveja do que pareciam capacidades ocultas de manipulação e previsão tendeu a intensificar-se. O antissemitismo conseguiu a proeza de caracterizar os judeus ao mesmo tempo como bolcheviques e plutocratas. Esta dupla figura ocupa um vasto lugar nos mitos nazis.
O ódio de si, esse emaranhado compósito, contribuiu com o seu vírus particular para agravar a situação do judeu. Encontramo-lo entre os mais dotados – em Marx, em Weininger, em certas passagens de Wittgenstein e, num grau feroz, em Simone Weil. Se judeus tão destacados podiam ironizar sobre a sua herança e repudiá-la, porque não faria o mesmo o gentio? A tudo isto devem acrescentar-se hoje os dilemas introduzidos pelo sionismo, pela instauração de um Estado militante em Israel. O judeu da Diáspora atual é inevitavelmente assombrado pelo conflito potenciai de duas lealdades. É membro da comunidade gentia em que vive, mas, voluntária e conscientemente ou não, está também ligado a Israel. Que pátria interior será, em última instância, a sua? Para sobreviver, Israel teve de se tornar uma sociedade nacionalista, e por vezes agressiva e repressiva. Fez-se chauvinista movida pela necessidade de enfrentar obstáculos tremendos. Voltarei a este aspecto . Mas o que se torna hoje patente é a utilização do antissionismo – opção defensável em si própria – para absorver e mascarar todos os matizes de antissemitismo. Torna-se cada vez mais difícil separar uma posição da outra. Em que medida a condenação de Israel pela (velha e nova) esquerda acabará por traduzir o que é fundamentalmente um ódio do judeu e um ódio de si (vejam-se as denúncias destemperadas que Noam Chomsky proclama do “fascismo israelita”)? Que ironia mórbida faz com que Israel receba os apoios da direita fanática, dos protonazis franceses ou das congregações fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos? Numa perspectiva mais generalizada, que fundamento atribuir à convicção, popular ou cultivada, de que o nosso mundo geopolítico não terá tranquilidade, não chegará a um entendimento com o islão, enquanto o destino de Israel desestabilizar não só o Médio Oriente, mas elementos importantes da Diáspora, como na ex-União Soviética? Que “besta feroz”, segundo a intuição de Yeats, “avança sobre Belém”?
Todos estes fatores e as suas conjunções são importantes. No seu todo, teceram uma teia sufocante. O nó torna--se duplo, e depois triplo, à medida que as reações dos judeus à sua interminável condição de párias reforçam precisamente os principais traços que desencadeiam o antissemitismo. Trata-se de uma espiral de inferno. Mas, ainda que combinados e analisados racionalmente, estes aspectos, materiais e psíquicos, do quadro das circunstâncias permitem um diagnóstico adequado? Poderão, repito a pergunta, explicar o antissemitismo em países onde não houve judeus ou dos quais os judeus foram completamente varridos?
Penso que não. Daí que recorra agora a conceitos vulneravelmente metafóricos e de raiz teológica.
Um antissemitismo teológico, cristológico, foi decisivo no início do cristianismo. A “cegueira” recairá sobre Israel devido à sua rejeição do Cristo crucificado. Não poderá haver Segunda Vinda, salvação última, enquanto os judeus se não tiverem convertido, lapso de tempo que Andrew Marvell, numa equação célebre, fazia corresponder à eternidade. Embora atenuada pelo agnosticismo contemporâneo, a polêmica mortal prossegue. Aparentemente impotente, disperso, desprezado, incapacitado, talvez duradouramente pela Shoah, o judaísmo mantém a sua grande heresia e assim mantém cativo o cristianismo, seu herdeiro. A Epístola aos Romanos 11 não deixa margem para dúvidas: só quando um Deus cristão “enxertar de novo os judeus”, a humanidade ferida acederá à paz universal. E, contudo, que sinais há desta integração abençoada? Entre todos os apóstolos, pelo nome e pelo aspecto físico, pela sua associação ao dinheiro, é Judas o arquijudeu. Dois mil anos de pregação e propaganda cristãs, de iconografia cristã, tornaram esse ponto definitivo. É ele o traidor imperdoável, com os seus cabelos ruivos, o seu nariz adunco e as suas moedas de prata.
Tentei levar esta ordem de ideias um pouco mais longe.
Em e por si própria, a acusação de deicídio que, ao longo dos séculos, o cristianismo infligiu ao judaísmo, é uma acusação demente. Como podem os homens matar Deus (embora talvez haja, na Eucaristia, uma prática repugnante para a sensibilidade judaica, vestígios de ritos do canibalismo)? Mas, apesar de insensata, a acusação segundo a qual os judeus “mataram Deus” na pessoa do seu filho nazareno, atravessou as eras. Proclamada pelo uivo das turbas cheias de ódio, glosada por teólogos entre os quais se incluiu Lutero, esta obscenidade ajudou a precipitar milhares de judeus, homens, mulheres e crianças, nas mortes mais atrozes. Num livro anterior, sugeri que esta denúncia dos judeus dissimulava de fato a verdadeira acusação. Graças a uma inversão que a mitologia e a psicanálise nos tornaram familiar, a acusação de deicídio representa exatamente o seu contrário. O judeu é odiado não porque matou Deus, mas porque O inventou e criou.
O monoteísmo, nos termos em que se desenvolveu a partir de Abraão e da revelação do Monte do Sinai, impôs ao homem um fardo moral e psicológico insuportável. O judaísmo primitivo insurgiu-se com frequência contra esse peso intolerável. O politeísmo, tanto nas suas formas pagãs como na sua versão de compromisso trinitária, gratifica necessidades e exigências imaginárias fundamentais da humanidade. Daí o encanto imperecível da mitologia clássica. A ideia de um Deus inimaginável, inatingível, inominável, vazio como o ar do deserto, declarando como injúria qualquer representação sensorial ou sequer alegórica, como que repugna, ao mesmo tempo que a repele, à sensibilidade humana comum. E, no sentido literal, “indizível”. E, todavia, dessa realidade infinita e sem rosto emanam mandamentos éticos, imperativos rígidos de conduta, exigências de justiça nas esferas privada e social que vão muito para além do que alcança a vasta maioria da humanidade. Omnipresente, omnipotente, implacável, o Deus do Sinai e do sopro do vento é uma crítica sem resposta do homem natural. O golpe de gênio sedutor do cristianismo pauliniano foi convidar os seres humanos a entrarem numa casa de Deus disposta ao perdão, cheia de amor, ricamente colorida, através da mediação sacrificial de Cristo. Reconhecer no homem “a criatura nua e bifurcada” que ele é, santificando ao mesmo tempo a sua enfermidade. O culto de Maria, o populoso panteão dos santos intercessores, as mediações da arte e da música, tudo coisas vedadas ao judaísmo iconoclasta, tornaram as relações com uma divindade trina como que familiares. Nada disto tem seja o que for em comum com as abstrações humildes, controversas, interminavelmente exigentes do monoteísmo judaico. Duas vezes mais, o judaísmo ou os seus derivados imediatos confrontaram os homens com a chantagem do absoluto, com ideais morais e sociais estranhos à natureza e às capacidades humanas. O Sermão da Montanha é em larga medida a transposição de uma citação do livro dos Profetas. Quando Jesus intima os seus seguidores a não pensarem nas suas vidas, a perdoarem os seus inimigos, a não julgarem para não serem julgados, a amarem os seus próximos como a si mesmos, está a reformular os ensinamentos de Isaías, as admoestações de Jeremias. O altruísmo e o desprendimento do mundo que implicam as exigências que Jesus impõe aos judeus são uma condenação sublime da existência terrena, do egocentrismo que move o nosso comportamento natural. A frase que remata o Sermão reza: “Sede pois perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu”. Nada menos. Esta prescrição não anda longe, para o dizermos moderadamente, de ser monstruosa. Um punhado de santos, de ascetas encerrados na sua solidão fanática, ter-se-ão esforçado por cumprir tal mandamento.
A mulher e o homem normais fingem aceitá-lo: não vivem, não podem viver os seus trabalhos e os seus dias a esta luz ofuscante. Mas essa incapacidade alimenta um ressentimento psicológico feroz.
O terceiro caso de exigência ética judaica é o do socialismo utópico, nomeadamente sob a versão messiânica do marxismo. Uma vez mais, é pedido,  ou, melhor, ordenado à humanidade que seja melhor do que é, que liquide a sua cupidez e os seus prazeres mesquinhos em nome de uma partilha sem distinções com outrem, fundindo-se o egoísmo de cada um dos seus membros no destino de uma coletividade disciplinada. O comunismo honrou os homens com uma esperança imensa. Expressando-se nalguns gestos revolucionários sacrificiais, nalgumas comunidades radicais, impôs uma diminuição espartana do eu, um empenhamento visionário que negava as nossas fraquezas. Mas era ao mesmo tempo sentido como um ideal, lançando as bases da justiça numa terra explorada e em vias de autodestruição.
Nada alimenta um rancor mais profundo do que as exigências que não somos capazes de cumprir, mas nas quais reconhecemos, ainda que intermitente ou subconscientemente, uma verdade irrefutável. É este rancor, este ressentimento, segundo creio, que subjaz ao ódio pelo judeu e o perpetua. Hitler dizia que a consciência era uma invenção dos judeus. Eu diria antes: “a má consciência”.
Continuo a acreditar na pertinência substancial desta explicação e etiologia do antissemitismo em termos morais e psicológicos. Mas hoje dou por mim a interrogar-me sobre a provocação que lança ao mundo dos gentios o simples fato (esse “escândalo”) da sobrevivência dos judeus. No que respeita aos chineses, o seu número esmagador proporciona uma justificação que leva a admitir a sua permanência. A insignificância demográfica das coletividades dos judeus e o modo como estas escaparam repetidamente à aniquilação são uma “estranheza” e uma “enormidade” aos seus próprios olhos. Sobre o não-judeu, produzem o efeito de uma irritação subcutânea. Há uma impertinência selvagem na sobrevivência judaica. É difícil definir a configuração social e psíquica das suas condições. E, contudo, descubro-me a perguntar de novo, movido por um caráter de urgência crescente, o que poderá tornar plausível, o que poderá justificar o fato decididamente fantástico que suscitou a interrogação inicial deste capítulo: Porque continuam a existir judeus?
O Estado de Israel fornece uma resposta triunfante, e por vezes triunfalista. Uma fênix renasce das suas cinzas, mas com garras de aço. O seu nascimento, a sua sobrevivência perante um cerco de inimigos mortais são um milagre. Do mesmo modo que o desbravamento da terra, pedra a pedra, a fundação de uma comunidade moderna, democrática e com padrões de instrução elevados, a sua capacidade de integrar hostes sucessivas de imigrantes. Cada judeu tem hoje na terra um lugar de refúgio assegurado. Tudo isto são prodígios sem paralelo efetivo em toda a história. Israel assinala um milagre ao mesmo tempo antigo e sem precedentes no destino dos judeus, e nas suas possibilidades de sobrevivência. Mas, para existir, Israel teve de regenerar capacidades e valores adormecidos desde o livro de Josué. Teve de cultivar e de glorificar os talentos militares e a sua feição implacável. Os custos internos foram consideráveis. A sociedade israelita é por necessidade militante e muitas vezes chauvinista. Nem sempre dispõe – como poderia fazê-lo? – do tempo, do espaço ou dos meios econômicos requeridos pelas atividades culturais, científicas e estéticas que enfeitam a Diáspora. Não é em Israel que os prêmios Nobel ou a criação filosófica medram com pujança. Mas ainda é cedo, e também não é este o problema de fundo.
Essencialmente sem poder durante cerca de dois mil anos, os judeus no exílio, nos ghettos, rodeados pela tolerância equívoca das sociedades gentias, não estavam em posição de perseguir outros seres humanos. Não podiam, fosse por que justa causa fosse, torturar, humilhar ou deportar outros homens e mulheres. Tal foi a nobreza singular dos judeus, uma nobreza que me parece muito maior do que qualquer outra. Para mim é uma verdade axiomática que seja quem for que torture outro ser humano, ainda que sob a pressão da necessidade militar e política, seja quem for que sistematicamente humilhe ou deixe sem o seu lar outro homem, mulher ou criança, degrada o núcleo essencial da sua própria humanidade. O imperativo da sobrevivência, as ambiguidades éticas da instalação no que era a Palestina (por meio de que sofística um israelita não-crente e não-praticante se autoriza a invocar a promessa de Deus a Abraão?) forçaram Israel a torturar, a humilhar, a expropriar – ainda que muitas vezes em menor medida do que os seus inimigos árabes e islâmicos. O Estado vive a coberto das suas muralhas. Armado até aos dentes. Conhece o racismo. Em resumo: transformou os judeus em homens comuns. A verdade é que a demografia ameaça esta normalidade contaminada. Em breve haverá mais árabes do que judeus no interior de Israel. Só uma catástrofe no mundo exterior poderia desencadear uma nova vaga de imigrantes. Parece mais do que verossímil que o colapso de Israel poderia produzir uma crise psicológica e espiritual irreparável na Diáspora. Mas não é certo. E muito possível que o judaísmo seja maior do que Israel, que nenhum revés histórico possa extinguir o mistério da sua persistência. O cristianismo talvez fosse mais forte nas catacumbas. Pura e simplesmente, são coisas que não sabemos. Entretanto, todavia, Israel está a reduzir o judeu à condição comum do homem nacionalista. Enfraqueceu essa singularidade moral e essa aristocracia da não-violência frente aos outros que foram a sua glória trágica.
Sei o preço inumano que esta impotência omnipotente implica. Sei como é fácil, como é gratuito criticar Israel quando se não quer compartilhar os seus fardos e perigos constantes. Mas foi sentir o enfraquecimento em causa que me impediu de ser sionista, de fazer a minha vida e a dos meus filhos em Israel. Os sionistas de salão são uma variedade tão desprezível como os companheiros de jornada que entoavam loas à União Soviética, mas tinham o cuidado de nunca pôr os pés dentro das suas fronteiras.
A própria Diáspora vive ameaçada. Referi-me às perdas constantes causadas pela assimilação e pelos casamentos mistos. Mas creio intensamente que para o judeu fora de Israel, para uma certa proporção de judeus fora de Israel, a sobrevivência se apresenta como uma missão. Em vários pontos fundamentais da lei mosaica e da exegese talmúdica, o judeu é ensinado a dar as boas-vindas ao estrangeiro. Nunca deverá esquecer que ele próprio foi um estrangeiro, um estranho na terra do Egito. Que também ele foi um sem eira nem beira e um refugiado numa terra que o recebia sem hospitalidade. A minha convicção é que o judeu da Diáspora deve sobreviver a fim de ser um hóspede entre os homens. Todos nós somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje estamos a tomar sombriamente consciência de que somos hóspedes de um planeta vandalizado. A menos que aprendamos a ser hóspedes uns dos outros, a humanidade sucumbirá na destruição mútua e no ódio sem tréguas. Um hóspede aceita as leis e usos do seu anfitrião, mas pode esforçar-se por reformá-las. Aprende as línguas dos que o acolhem, mas pode tentar falá-las melhor. Acima de tudo, se partir, livremente ou compelido a fazê-lo, procura deixar a morada do seu anfitrião mais limpa e mais bela do que a encontrou. Esforçar-se-á (é o conatus de Espinosa) a acrescentar alguma coisa de valor, de ordem intelectual, ideológica ou material, ao que encontrou quando bateu à porta.
A arte de ser hóspede é muitas vezes quase impossível de praticar. O preconceito, a inveja, os atavismos territoriais do anfitrião instauram uma ameaça constante. Por mais calorosas que tenham sido as boas-vindas, o judeu deve manter discretamente as malas feitas. Se for forçado a retomar a sua errância, não considerará essa experiência como uma punição lamentável. Ela é também uma oportunidade. Não há língua que não valha a pena aprender. Nem nação ou sociedade que não valha a pena conhecer. Não há cidade que não valha a pena deixar, se sucumbir à injustiça. Somos cúmplices do que nos deixa indiferentes. A senha do judaísmo é Exodus, impelindo a novos começos, apontando a estrela da manhã. Hitler falava sarcasticamente de Luftmenschen, dos judeus como “criaturas do ar”. Mas o ar pode ser um reino de liberdade e de luz. “Tornai-vos uma força de fertilidade entre os homens”, insistia um dos fundadores de Israel, “porque confinados num só país podeis converter-vos em estrume”. O nacionalismo, do qual Israel se tornou necessariamente figura emblemática, o apelo tribal, parece-me não só estranho ao gênio interior do judaísmo e ao enigma da sua sobrevivência: viola também o imperativo o Baal Shem Tov, mestre do hassidismo: “A verdade está sempre no exílio”. Esta máxima é a minha oração da manhã.
Compreendo inteiramente que uma condição de peregrino não convém a todos. Que os riscos que acarreta são extremos. A Shoah talvez tenha tornado ridícula a minha convicção. Mas repito: sobrevivamos, se sobrevivermos, como hóspedes entre os homens, como hóspedes da própria existência. A sua mesa dos dias de festa, a família do judeu deixa sempre um lugar vazio para o estrangeiro que poderá bater à porta. Talvez seja um mendigo, talvez um mensageiro velado de Deus. A entrada nunca lhe deverá ser recusada. Ser anfitrião é também ser hóspede. Tal é o sentido que define a Diáspora, a sua justificação.
Tinha pensado desenvolver estas teses numa obra de corpo inteiro. Faltou-me a visão clara necessária.
E o hebraico.
(FIM)

H.C./J.A.R.

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