George Steiner – francês de origem judaica ou judeu de origem francesa? –, um dos maiores críticos literários do século XX, discorre, no ensaio a seguir transcrito em três partes, sobre o que ele interpreta ser a condição do judeu.
Da leitura atenta do texto sobressai a impressão de que se trata da aposição de loas aos judeus de todo mundo – salvo algumas inflexões menos encomiásticas aqui e acolá – que, indiscutivelmente, têm-se sobressaído do mar de mesmice em que paira a “pós-modernidade”. Ocorrem exageros é claro – “Haverá escritor maior do que Franz Kafka?” –, embora muito do que ele retrate demarca o que se pode perceber até num plano empírico bem terra-a-terra: “Mais do que nunca, não há justificação sustentável para seja que definição for dos judeus como raça”.
Boa leitura!
H. C. / J. A. R.
Referência: STEINER, George. Sião. In: Os livros que não escrevi. Tradução de Serras Pereira. 1. ed. Lisboa: Gradiva, 2008. p. 135-178.
SIÃO
QUE MULHER ou HOMEM pensante não procura, nalgum momento da sua vida, chegar a uma imagem clara, a uma ideia verificável da sua própria identidade? A pergunta “Quem sou eu?” é um reflexo primeiro da consciência humana. “Posso definir-me a mim próprio para mim próprio” e, ou imediata ou indiretamente, definir-me a mim próprio para os outros? Estes dois modos de autodefinição coincidem ou há entre eles um fosso intransponível? Que “eu”, que “ego” está conceptual e existencialmente implícito na asserção, filosófica ou trivial, interior ou declarada, de que “eu sou”, ou, mais precisamente, de que “eu sou eu” – descoberta sempre vulnerável aos desafios da esquizofrenia, do autismo ou da demência? O ergo sum cartesiano esquiva uma incerteza intrínseca. É uma expressão de orgulho mais do que uma verdade evidente por si própria.
A minha impressão é que, para os judeus, homens e mulheres, e sendo o simples termo “judeu” de molde a suscitar complicações persistentes, tanto este auto-questionamento como a questão geral que é o seu ponto de partida, assumem uma acutilância particular. Só ao Deus de Moisés é dado afirmar para além de toda a dúvida “Eu sou o que sou” (a tradução vacila). As relações de um judeu ou de uma judia com a sua identidade podem ser tão opacas, tão atribuladas e tão cheias de ambiguidades históricas, sociais e psicológicas, que sejam elas a definir – se a definição puder comportar a indecidibilidade – a própria condição judaica. A nomeação, como garantia da substância real e da presença real, é um dos dons iniciais de Deus a Adão: “E o que Adão chamava a cada criatura viva, tal era o seu nome”. Um poder fantástico de impor uma função de verdade. A queda do homem no lamaçal e na licença do indefinido, no fosso que é por vezes abismo, entre a palavra e o objeto, entre o nome e a essência: eis o primeiro exílio. Numa medida maior ou menor, todos os seres humanos compartilham este ostracismo, e são numerosas as mitologias que o refletem. O pecado original inscreve-se na gramática. Na experiência do judeu, todavia, este exílio assume um papel determinante. Para um judeu, a consciência de si, um ato de equilíbrio difícil de realizar ou de manter, comporta c banimento, ou antes um esforço, muitas vezes desesperado, de levar a cabo uma certa maneira de regresso ao lar. Adorno insistia numa máxima profundamente judaica segundo a qual nenhum homem ou mulher que se sinta em seu lar está no seu lar. A qual – num movimento pendular incessante – Samuel 2, 14 responde: “Deus não respeitou pessoa alguma, contudo estabelece meio de o Seu banido não ser Dele expulso”. O Seu banido, a inflexão é altiva. A distinção rigorosa entre “banimento” e “expulsão” caracteriza o espaço onde transcorre a história dos judeus. Se o Deus de Israel está, segundo uma exultante definição, em toda a parte, não pode haver expulsão ontológica da Sua presença. Mas, no interior desta ubiquidade, pode haver banimento. De si e em si próprio, em primeiro lugar e fundamentalmente. Mais, talvez, do que qualquer outro tipo étnico, social ou até mesmo mitológico, o judeu pode ser um estrangeiro para si próprio. A sua errância célebre é a representação alegórico-empírica de uma busca, de uma incessante peregrinação interior. O judeu é estranho a si próprio, antes de ser estranho aos outros. Estes, pelo seu lado, evitam o sem eira nem beira, que carrega consigo uma aura estranha e perturbante. Conscientemente ou não, o judeu é, no seu modo de ser mais fundo, alguém que não sossega. Em que outro credo, em que outro cânone, poderíamos encontrar esta injunção: “O amor não dorme” (Provérbios 20, 13)? Uma exortação cujo alcance imenso, cuja singularidade não devemos considerar ligeiramente. Freud despojá-la-á do que lhe restava de inocência. Também ele, como antes dele os profetas judeus, foi um “vigilante na noite”. Qualquer ser humano que se olhe como “judeu” – e “olhar-se” pode incluir aqui um sem-número de cambiantes de orgulho ou de vergonha, de prestação de testemunho ou de dissimulação, de autenticidade ou de artifício, de risco ou de oportunismo – terá de pôr uma questão inicial e fundamental: porque foi que a autodesignação e a designação pelo exterior de certas comunidades e indivíduos como “judeus”, por mais controversas que possam ser, perduraram no tempo? Que significações associar à sobrevivência desta identificação ao longo de mais de três milênios? Outras constelações étnicas e outras sociedades, outras coletividades não menos distintivamente marcadas, não menos dotadas, acabaram por perecer. Porque continua presente “Jerusalém” quando a Tebas egípcia, a Atenas de Péricles e a Roma Imperial se tornaram arqueológicas? Como podem existir ainda judeus (aqui o termo grego e teológico apropriado é o de “escândalo”)?
Para o leitor crente da Torah, para os literalistas que incluem os cristãos com fé das Escrituras, a resposta é manifesta. A sua fórmula desmedida encontra-se no Gênesis 22, 18: “Farei a tua descendência tão múltipla como estrelas do céu, como a areia das praias do mar [...]. E na tua descendência todas as nações da Terra serão abençoadas”. É uma promessa de cortar a respiração, cujo efeito excede o alcance das palavras. Para o crente, trata-se de uma garantia e de uma garantia renovada da própria vida. Que homem ouviu ou escreveu semelhantes palavras? Se Deus falou verdade a Abraão – e como poderia Ele não ter falado verdade? –, não há massacres, nem Shoah, nem deportações, nem dispersão nos ventos negros e mortíferos, que possam extinguir os judeus. Eles renascerão das suas cinzas para de novo se multiplicarem e de novo reivindicarem Sião. A sua herança é um pacto como nenhum outro alguma vez celebrado com outro povo. Em breve, existirão no planeta tantos judeus como os que nele viviam antes da Shoah. Sob certos aspectos, trata-se de um fato chocante e estarrecedor; sob outros, trata-se simplesmente do legado inelutável prometido por Deus ao patriarca. Outras crenças, outras nações sucumbem ao tempo e à destruição. Não é o caso do judaísmo. Dessa pequena pedra contundente no sapato da humanidade. “Nesses dias, porei de pé o tabernáculo caído de David, e repararei as suas brechas; e levantarei as suas ruínas, e edificá-lo-ei como nos dias de outrora” (Amos 9, 11). Eis, uma vez mais, a promessa devastadora que Deus faz ao seu pobre servo ferido Israel. Tão absurdamente improvável e “contrafactual” tanto junto às águas de Babilônia como aos campos de extermínio nazis. Uma promessa, contra todas as aparências e toda a razão. Mas cumprida.
Tal é o enigma que se põe ao não-crente, ao racionalista e ao agnóstico, aos que leem a Bíblia hebraica como o acervo dos mitos de um povo, de rituais arcaicos, de propaganda tribal, de minuciosas prescrições alimentares absurdas e de imagens morais e metafóricas inspiradas. Que, na esteira de Espinosa, têm a impressão de se confrontar com uma produção inteiramente humana, atravessada de contradições e de maneira nenhuma inocente de selvajaria (consulte-se o livro de Josué). E, contudo, não há ceticismo argumentativo nem crítica textual que possam negar, refutar ou anular o pacto de sobrevivência estabelecido no livro de Moisés, celebrado nos livros dos Salmos e dos Profetas. Os recursos da refutação racional, ainda que reformados pelos contributos da antropologia e da desconstrução da composição do texto, não podem refutar o que os crentes, que não são necessariamente fundamentalistas, consideram ser a palavra de Deus, ainda que limitada pela linguagem e pelo entendimento finito dos seres humanos. Para pensadores como Leo Strauss, este enigma da irrefutabilidade é ao mesmo tempo ofuscante e insolúvel. A revelação não é vulnerável perante a razão. Até hoje, e apesar ou toda a espécie de múltiplos obstáculos, a história tem corroborado a mensagem bíblica. Depois de Auschwitz, Sião está a ser reconstruída. Há judeus.
Mas o que os faz ser assim? A questão mostra-se extraordinariamente difícil e controversa. A resposta de Sartre segundo a qual é o antissemita que define o judeu é uma hábil meia verdade, perfeitamente em consonância com a declaração de um dos presidentes da municipalidade de Viena, hostil aos judeus: “Sou eu que decido quem é e quem não é judeu”. Para os ortodoxos, a solução do problema é óbvia, um judeu, um verdadeiro judeu, é alguém que observa as várias centenas de instruções, prescrições, proibições rituais, normas dietéticas e de indumentária que regulam cada hora, todas as circunstâncias e exigências concebíveis da vida quotidiana entre um e outro sabat. É alguém, e fundamentalmente um homem, que “disporá na devida ordem as lâmpadas no candelabro puro e as manterá permanentemente diante do Senhor” (Levítico 24, 4); que não comerá “o mocho, a coruja, o íbis” (Deuterônimo 14, 16); que sabe que nenhum utensílio de ferro deverá ser utilizado para erigir um altar de pedra a Deus (Deuterônimo 27, 5); e que compreende porque é que, no seio do matrimônio, a esposa deve cuidar constantemente de não “afligir a alma do seu marido”, para que este não anule o casamento de ambos (Números 30, 13). A esta prodigalidade das prescrições mosaicas e levíticas, as interpretações talmúdicas e a tradição halachica (normativa e jurídica) acrescentaram um sem-número de outras práticas e fórmulas consagradas. Essencialmente de certo modo, a observância pesa mais do que a crença, uma vez que estabelece o judeu ortodoxo à parte, incontaminado pelo mundo dos gentios. Para o judeu “liberal”, moderno, para já não falarmos do que se coloca à margem do judaísmo, muitas destas injunções e tabus raiam o absurdo. E o mesmo se aplica às mímicas e gestos quase histéricos de adoração, de recitação interminável e monótona na escola ortodoxa e na casa de oração. Que tem ele em comum com a matilha fanatizada vestida de negro que lhe atira pedras para o expulsar do santuário que é o ghetto?
Indiscutivelmente, todavia, é o judeu ortodoxo, na sua fortaleza de Jerusalém ou de Williamsburg, que se sente mais à vontade na sua identidade, que se sente mais seguro da promessa endereçada a Abraão, que espera paciente, mas confiante, a vinda do Messias. São ele, a sua mulher e o seu rancho de filhos que saem dos banhos rituais ao pôr do Sol de sexta-feira, com as roupas a ressumar de renovação, e os seus rostos iluminados como são os dos judeus que não aceitam compromissos. É o ortodoxo que corre menos riscos de assimilação. E uma observância rigorosa e estrita, e não uma aquiescência especulativa, o que garante a eleição e a sobrevivência do povo judeu. Não é, paradoxo assustador, a fé em Deus, mas a leitura diária da Torah, ou a recusa de quebrar o jejum quando a alternativa é morrer de fome. Ele, que conhece, sem o interrogar, o preceito segundo o qual nenhum homem com “o pé partido ou a mão partida” pode aproximar-se do tabernáculo para ofertar o seu pão a Deus (Levítico 21, 19), nunca será apóstata, por maiores que sejam as seduções da tolerância ou do senso comum. Este literalismo pragmático é profundamente clarividente. A identidade, familiar e comunitária, compõe-se de movimentos e reiterações partilhados, e não de abstrações filosóficas ou de intimidade. Uma fé segura é um estilo de vida.
Os custos, apesar disso, podem ser enormes. Como os outros fundamentalistas, os ortodoxos cultivam o desprezo e até a abominação dos elementos exteriores. Consideram os judeus reformados abjetos. Os que vivem em Israel condenam o seu Estado por este não ter sido validado pelo Messias. Uma turba ortodoxa, que procura anular pela intimidação ou pela violência qualquer sinal de liberdade secular, é uma paródia dos valores ético-filosóficos dos judeus, ainda que ao mesmo tempo garanta o prodígio da sobrevivência. Para o ortodoxo que gesticula diante do muro (mítico) do Templo ou assedia o turista com apelos estridentes ao arrependimento, um Espinosa ou um Freud são tão estranhos e tão insuportáveis (ou, na realidade, mais ainda) como os seus perseguidores de origem cristã ou islâmica. Os fundamentalistas judeus ortodoxos e os muçulmanos são primos carnais. Mas foram os rabis ortodoxos e os seus acólitos que entoaram salmos ao mesmo tempo de luto e de júbilo à beira das valas comuns.
Para os “reformados”, os “liberais”, para os que são judeus a título ocasional e respeitem, talvez, uma vez por ano, as festividades santificadas por piedade filial – para o judeu ignorante do hebraico ou ateu, o problema da identidade é uma questão conturbada. Cada vez mais judeus, em particular no clima de aceitação da indiferença dos Estados Unidos, tendem a abandonar por completo a questão. Os casamentos mistos abrem o caminho à amnésia. Só quando o veneno antissemita irrompe num novo surto, ameaçando, por exemplo, os seus filhos que andam na escola, este judeu secular e não-observante desperta para a sua condição. Encontramos aqui o grão de verdade da tese de Sartre. Dadas as múltiplas combinações, sempre instáveis, que ocorrem entre a não-ortodoxia e a automarginalização, que fator comum, vinculativo, podemos apontar no judaísmo atual?
Desde a Antiguidade, a ideia de “raça” esteve fatalmente (fatutn) associada ao destino do judeu. Em boa parte, esta fixação tem origem no interior do próprio judaísmo. A proclamação de que os judeus são um “povo eleito”, um núcleo étnico à parte na sua singularidade, é veiculada pelo Pentateuco e retomada em diversas passagens capitais das escrituras hebraicas. Esta proclamação enfureceu outros povos e nações. Houve sábios e moralistas judeus que se esforçaram por combater esse ressentimento, caracterizando a “eleição” a uma luz trágica e quase masoquista. Deus singularizou o judeu não para que este se vangloriasse ou para que os outros o invejassem, mas para sua perpétua aflição. O judeu foi escolhido por Deus como para-raios, foi o bode expiatório que a exasperação divina designou perante uma humanidade renitente e pecadora. Mas nem esta leitura um pouco forçada atenua o ressentimento perante a condição isolada autoproclamada pelos judeus, perante o orgulho que os judeus, muitas vezes ostensivamente, extraem do seu sofrimento. O judeu não se insere no lugar-comum – e devemos ter bem presente este termo. Terá este “racismo” psíquico e emblemático uma qualquer concebível base biológica no plano dos fatos? Haverá, quer em termos de autodefinição, quer em termos de definição por outros, alguma coisa que se pareça com uma “raça” do judeu?
O recurso demente e homicida a uma classificação racial sob o nazismo e ao longo de toda a monstruosa história dos pogroms e expulsões tornou praticamente impossível e indefensável qualquer discussão independente do problema. O “racismo”, ainda que metafórico, é um motivo repugnante e inadmissível. Além disso, como insistem a biologia e a genética atuais, a simples ideia de impureza ou pureza racial não é senão um contra-senso perigoso. Podem existir algumas pequenas bolsas étnicas, insulares e em condições de isolamento prolongado, cuja herança genética talvez exiba um certo grau de hereditariedade invariante. Mas nem isso, em todo o caso, é certo. A rejeição pelas outras comunidades, uma forte tendência para o casamento endogâmico, a concentração no interior de espaços ou castas circunscritos, podem preservar e transmitir uma herança genética identificável. Mas semelhante identificação é altamente duvidosa. Só a susceptibilidade relativa a certas enfermidades específicas parece proporcionar algum elemento de prova consistente. Até mesmo um ghetto está exposto a receber contributos genéticos híbridos. Ao longo de milênios, e através da simbiose ativa da migração, os judeus, como os outros povos, “miscigenaram-se”. As medidas políticas e legislativas que visam impedir esta miscigenação, determinar proporções exatas de “sangue” e laços de parentesco judeus, refletem a loucura, o tribalismo invertido e as neuroses do inquisidor espanhol ou do esbirro fascista. O mesmo se diga das descrições, que uma vez mais remontam à Antiguidade Clássica, que pretendem estabelecer traços físicos distintivos para os judeus (o “nariz judeu” é conhecido entre todos). Há judeus louros e de olhos azuis, do mesmo modo que os há de pele escura e hirsutos. Que ligação genética direta e controlável existe entre o judeu que vem de Marrocos e o judeu da Lituânia? Que há em comum entre Maimônides e os bandidos de Odessa, entre o pugilista peso-pesado Max Baer e a figura espectral de Kafka? Os casamentos mistos do Ocidente agnóstico contemporâneo aceleram a hibridização. Quase sem esforço, os jovens judeus americanos podem desligar-se do seu legado histórico e familiar. Ao cabo de uma ou duas gerações, o seu judaísmo ancestral é uma memória esbatida, um rasto folclórico. Mais do que nunca, não há justificação sustentável para seja que definição for dos judeus como raça. Assim seja.
E contudo.
[Continua aqui: http://blogdocastorp.blogspot.com.br/2012/05/condicao-de-ser-judeu-parte-ii.html]
H.C./J.A.R.
H.C./J.A.R.
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