Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 15 de junho de 2012

"A Montanha Mágica" – Crítica II: Christiane Zschirnt

Eis outro comentário à obra A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Desta feita, mais convencional em relação aos padrões costumeiros de crítica literária...

H.C./J.A.R.


ZSCHIRNT, Christiane. Livros: tudo o que você não pode deixar de ler. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Globo, 2006. p. 261-266.

Hans Castorp, o filho de 23 anos de uma família de comerciantes de Hamburgo, visita seu primo tuberculoso Joachim Ziemseen no sanatório Berghof, em Davos. As três semanas previstas da estada transformam-se em sete anos. E, gradualmente, Hans Castorp vai se entranhando no isolado mundo dos Alpes suíços, no qual nada é igual à sua casa em Hamburgo, e onde Castorp deveria iniciar sua carreira de engenheiro. Ele se afunda no mar do tempo – da mesma maneira que o sanatório Berghof afunda nas massas de neve, que a cada ano duram mais e que transformam A Montanha Mágica em um reino congelado onde os enfermos febris aguardam a morte.

A ideia para o romance veio em 1912, durante uma visita Davos, onde Katia, a mulher de Thomas Mann, recebeu durante alguns meses tratamento para tuberculose. Quando o marido ficou resfriado, os médicos o aconselharam a curar a infecção no sanatório Mann, entretanto, deixou o sanatório e começou, de volta ao lar a registrar em forma de narrativa as impressões que tinha tido da viagem. Nos sete anos seguintes essa história cresceu e tornou-se um dos romances mais bonitos do modernismo.

A Montanha Mágica é o romance sobre o fim da sociedade burguesa antes da Primeira Guerra Mundial. A imagem que Mann encontrou para a morte da sociedade europeia enraizada em tradições é o mundo do sanatório. Ali, nas alturas da montanha, onde o ar se torna rarefeito, reúnem-se enfermos abastados de toda a Europa. Eles vêm da Inglaterra, da Itália, da Rússia ou da Alemanha a fim de se curar da tuberculose, observam a decadência de outros pacientes e intuem que, num futuro próximo, o mesmo destino lhes baterá à porta. Mesmo quem não está desenganado passa a maior parte do tempo na horizontal, ou seja, no tratamento de repouso. E se assemelha a um morto.

O cotidiano no sanatório restringe-se essencialmente a quatro itens: comer, conversar, repousar deitado e receber tratamentos médicos (mais ou menos nessa sequência, embora o interesse primário pela alimentação ou por conversas possam se inverter de acordo com as necessidades individuais). Para as cinco fartas refeições, os hóspedes reúnem-se no refeitório em volta de sete mesas. A distribuição dos lugares é determinada pela administração do sanatório e produz encontros de sutis diferenças — como, por exemplo, aquela entre as mesas russas “boas” e “ruins”. Ou acontecem combinações de pessoas sensíveis de diversos níveis de instrução — como entre Hans Castorp e a sra. Stör, com sua blusa escocesa de lã, e que tem a mania de usar palavras estrangeiras sem saber seu significado.

A vida na montanha mágica é esperar. Espera-se pela próxima refeição, pela notícia redentora dos médicos sobre a alta, ou pela morte. Os poucos ruídos que interrompem o silêncio mortal do afastado lugar de montanha são as tosses enfermiças dos doentes que vão esmorecendo. Até a primavera, o Berghof está envolto numa gigante coberta de neve, e o sanatório transforma-se num mundo à parte. Bem abaixo da superfície das geladas massas de neve, somente o ânimo dos pacientes permanece febril e tenso: todos eles estão ocupados em vigiar suas temperaturas corporais. A montanha mágica é um mundo intermediário entre a vida e a morte, simultaneamente explosivo e frio.

O herói Hans Castorp prolonga sua estada também por causa da presença da russa Clawdia Chauchat. Numa noite de Carnaval ela o inicia nas artes do amor. O capítulo (metade escrito em francês) alude à montanha das bruxas de Fausto, de Goethe, com o título de “Noite de Valpúrgis”. Quando madame Chauchat vai embora, Castorp fica com a radiografia do tórax da moça tomado pela tuberculose como consolo.

Ao lado de madame Chauchat, o mórbido mundo do sanatório exerce uma atração irresistível sobre Castorp. Para poder ficar em Berghof, ele acaba desenvolvendo, surpreendentemente, uma leve sintomatologia de tuberculose.

Enquanto madame Chauchat apresentou o amor a Hans Castorp, outro hóspede, o italiano Settembrini, ocupa-se de diversos aspectos do desenvolvimento de sua personalidade. Settembrini, de aparência um tanto desleixada, compensa seu aspecto exterior com a riqueza de sua erudição. Ele acredita no uso da razão de acordo com o espírito do Iluminismo e advoga princípios democráticos básicos. Em conversas intermináveis, explica os grandes temas da civilização ocidental. Castorp bebe as palavras de seu mestre.

Na medida em que A Montanha Mágica descreve as transformações intelectuais de seu jovem e ingênuo herói, o romance se encaixa na tradição do romance de formação do século XVIII. No romance de formação clássico, a educação representa “a formação moral e intelectual do ser humano, a formação de sua personalidade”. Trata-se do gradual aprendizado de um jovem, guiado por seu mestre; no final, surge a própria capacidade de entendimento e o ingresso no mundo. No caso de Hans Castorp, porém, a formação de sua personalidade não é completa, pois apenas alguns dos discursos inflamados de Settembrini trazem-lhe um entendimento real.

Depois de algum tempo, Settembrini recebe a companhia de um opositor intelectual: Leo Naphta. Jesuíta de origem judaica e de notável feiúra, Naphta advoga, ao contrário das posições burgueso-democráticas de Settembrini, uma postura complicada entre a filosofia medieval e a ditadura do povo. As inflamadas conversas dos dois eruditos sobre filosofia, história do mundo e política mundial, nas quais Hans Castorp é simples ouvinte, geram mais confusão do que esclarecimento ao rapaz. Em geral, Castorp concorda ora com um, ora com outro dos galos de rinha. (O filósofo e crítico Georg Lukács serviu de modelo vivo ao personagem Naphta, embora ele não se reconhecesse no papel).

O reaparecimento de madame Chauchat, em companhia do comerciante holandês de café Mynheer Peeperkorn, também traz confusão. Com seu rosto vermelho e sua presença jovial, o massudo Peeperkorn, ao contrário de ambos os delicados intelectuais Settembrini e Naphta, é a personificação da vitalidade. Ele bebe quantidades imensas de café e de vinho, bate com o punho na mesa e fala por meio de frases entrecortadas, enérgicas. Depois de superado o ataque de ciúme, Castorp encontra no desintelectualizado, afável, mas despótico Peeperkorn um novo modelo.

Peeperkorn se suicida quando percebe que sua vitalidade foi atacada pela doença. (Thomas Mann inspirou-se no dramaturgo Gerhart Hauptmann para compor Peeperkorn. Hauptmann foi autor, entre outros, de Die Weber [Os Tecelões]). A violência dos duelos verbais entre Settembrini e Naphta faz com que aconteça um duelo real, no qual Naphta se mata.

No final do romance, o fragor da Primeira Guerra irrompe na espera e no silêncio da montanha mágica. O grande final acontece nas trincheiras. Foi para lá que Hans Castorp foi arrastado após sete anos na montanha mágica.

O fim do romance não revela se Hans Castorp morre como soldado ou não. Sua pista se perde no tumulto da guerra. Esse epílogo diferencia o romance de formação de Thomas Mann de seus clássicos antepassados. Enquanto nestes últimos há sempre um herói que no final sabe quem é, e cuja personalidade está moldada, nada resta de Hans Castorp. A última visão do herói do livro assemelha-se a uma imagem cada vez menos nítida, que acabou perdendo todos os seus contornos. Com o final da sociedade burguesa, cuja morte se iniciou na montanha mágica, some também o sujeito burguês.

Thomas Mann definiu A Montanha Mágica como um “romance contemporâneo”. De um lado, o livro é a descrição de determinado período (ou seja, um romance de época); do outro, é um romance sobre a vivência individual da dimensão do tempo. A estrutura do romance aparece mais uma vez na utilização dupla do conceito de tempo, que mostra a decadência de toda uma cultura (na imagem do sanatório) e a desaparição do sujeito burguês (no exemplo de Hans Castorp).

A primeira significação do conceito de tempo é facilmente compreendida: Mann descreve o final histórico da sociedade burguesa, une é a sociedade doente do sanatório. A segunda significação é um pouco mais complicada. Trata-se de como o tempo é percebido. Na montanha mágica, lá, onde chega a nevar também no começo do verão e onde anos são passados entre o refeitório e o repouso, o tempo ganha uma dimensão totalmente nova. Já no primeiro dia, Castorp descobre irritado que lá em cima é necessário mais tempo que nos outros lugares: três semanas no sanatório equivalem a um dia nas “terras baixas”. Mas quanto mais ele vive na montanha mágica, mais perde o próprio sentido do tempo. Não lê mais jornais e se esquece cada vez mais frequentemente de dar corda no relógio à noite. Essa atemporalidade é a expressão de que a montanha mágica é um reino intermediário único, no qual o indivíduo vai perdendo gradualmente todos os pontos de orientação.

Certa vez, vivendo no Berghof há mais de um ano, Castorp faz um passeio de esqui. O inverno aterrou a montanha sob imensas quantidades de neve, e continua nevando. Nessa silenciosa caída da neve, a paisagem desaparece no nada neblinoso, os contornos do pico se dissolvem. Não há mais caminhos, o mundo é um caos de escuridão branca. Não há pontos de orientação. Equipado com uma barra de chocolate e uma pequena garrafa de vinho do Porto, Castorp penetra nessa paisagem fantasmagórica. Ele entra numa tempestade de neve, movimenta-se em círculos e passa a correr risco de vida. Meio congelado, exausto e levemente bêbado, Castorp procura abrigo numa cabana. Começa a sonhar, esquece do tempo e acaba num fantasioso cenário fronteiriço: em algum lugar entre a vida e a morte, o estar acordado e o sonhar, a cultura e a natureza, temporalidade e atemporalidade. Esse episódio do famoso capítulo “Neve” de A Montanha Mágica é o ponto central do romance. Aqui estão reunidos todos os temas importantes: o isolado mundo do sanatório; a confusão do herói, que procura por orientação; a dissolução das formas; a proximidade entre a vida e a morte; e a perda do conceito de tempo como indício da incessante dissolução de uma forma de existência.

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